Entre mortos e feridos, pérolas no mangue


Cosme Soares em O Velho, o Mar e o Lago de Camilo Cavalcante

As sessões de curta-metragem do 5º Festival do Recife tinham algo do sabor de um antepasto. Antes de cada longa-metragem, três curtas (a regra tentava passar um filme em 16mm e dois em 35mm) eram exibidos para o público que chegava na sala do Centro de Convenções. Se foi a melhor saída para a organização do festival, não se sabe. Mas do ponto de vista da apreciação, a lógica da exibição foi um pouco injusta: das melhores coisas que se viu no Recife, a maior parte pode ser atribuída aos curtas-metragens.

Na competição de 16mm, algo não parecia correto: desde o primeiro dia, as projeções eram muito ruins, sempre tremidas e eternamente fora de foco. Os filmes, já tendo sofrido da péssima exibição, ainda sofriam das deficiências de orçamento e de proposta, como no caso de Cá e Lá e Bumba, dois filmes de baixíssimo orçamento que acabavam tendo que recorrer a simbologias um pouco fáceis demais para a produção de emoção. A Caravela e Assombrações do Recife Velho, ao contrário, nos parecem ter sido feitos ignorando formato e orçamento. Resultado: o filme que se vê está logicamente muito aquém da proposta. Macabéia, filme de inspiração em Clarice Lispector, quase encontra alguma graça em algum momento, mas consegue estragar tudo num final absolutamente idiótico. Por fim, o vencedor da competição, Intestino Grosso: uma historieta banal que assume ares de embate metafísico, com mise-en-scène e trilha musical querendo nos mostrar que tudo aquilo ali é muito importante. Não é, e o filme peca demais por querer ser alguma coisa a mais do que é. No fim, viu-se que o prêmio poderia ter sido disputado em adedanha, por não haver nenhuma prevalência clara de um dos candidatos. Entre os documentários em 16mm, pouco havia o que se dizer: um era um filme indígena de valor meramente etnográfico (Ari Okata Haka), outro um amontoado de imagens sem qualquer definição ou valor plástico (Canaval, Carnavais) e outro um painel da infância cotidiana (A Invenção da Infância) que, se revelava-se mais bem construído que os outros, não deixava de denotar uma falta de estrutura e uma lógica um pouco obtusa para tentar provar que ser criança é importante.

Na competição de curtas em 35mm pelo menos pode-se dizer que havia filmes o suficiente em exibição que se permitisse traçar algum tipo de painel. Na verdade, embora a seleção tenha sido bastante contestada, com a exclusão de alguns títulos muito elogiados do ano passado, como Outros ou Tropel, não parece que isso seja uma crítica consistente, uma vez que seleções são seleções, são seleções. Cada um faz a sua, e isso é normal. De qualquer jeito não nos pareça que haja nenhum Ilha das Flores neste ano que justifique maior reclamação de injustiça inexplicável.

Belos títulos na cometição de curtas, mas entre os filmes em cartaz havia pelo menos um excepcional, O Velho, o Mar e o Lago, de Camilo Santos Cavalcante. A diferença é de princípios: alguns filmes são notáveis, alguns mesmo mais do que isso, mas o filme de Cavalcante foi o único a fazer o espectador questionar-se: "afinal, o que é isto que eu estou vendo?" Na história de um senhor que trabalha solitário num lago e recebe a estranha visita de um pombo-correio que lhe revela uma admiradora distante, há muito mais do que a história de um velho solitário em meio às divagações de sua idade. Há antes de tudo um homem face ao Tempo, a esse adversário imbatível que entretanto tentamos todos capturar. Fugindo, porém, do sentimentalismo que quase sempre se compra com um projeto desses, O Velho, o Mar e o Lago sabe ser lúdico (num dado momento, o personagem cai ao chão, se mistura com a areia e grita: "eu sou um velho à milanesa") e poético, mas de uma poesia dura, deserta e densamente povoada como a paisagem do filme, evitando a beleza fácil ou prevista.

Assim como o melhor curta de ficção, o melhor documentário do festival foi também de Recife: Brennand, de Ovo Omnia, de Liz Donovan, foi extremamente feliz ao misturar o universo erótico do ceramista e escultor Brennand com a gravidez da própria realizadora, conseguindo enfim como poucos um filme sobre arte que de fato coloque a obra de um artista em questão e diga por que ela vem ao mundo. Brennand explica tudo em belos depoimentos, mas mesmo que não falassem as imagens já nos dariam a ver: elas mergulham nos painéis e esculturas do artista e revelam um mundo cheio de curvas – bundas, seios, falos, sempre presentes e nunca óbvios – numa obra que transcende o sexual para falar diretamente de sexo como um princípio universal de permanência do mundo. Aproveitando a feliz coincidência de estar a própria cineasta em tempos de dar à luz, o filme consegue obedecer à lógica de Brennand sem soar falso ou pseudo-moderno. Brennand, assim como O Velho, o Mar e o Lago, ganharam os principais prêmiso de sua categoria, sem qualquer bairrismo, por puro merecimento.

Ainda nas premiações acertadas, Almas em Chamas fez barba, cabelo e bigode na cetegoria de animação. Também de inclinação erótica, dessa vez aproveitando-se da liberdade que dá a animação, o filme esbanja cenas de sexo explícito (todas as modalidades de coito natural, além de sexo oral, masturbação..) na história de um pacato bombeiro que salva um mulherão de um prédio em chamas e trata de fazer sexo com ela ali mesmo. Almas em Chamas causa ludicamente um desconforto sui generis na platéia, que pode ver um casal chegar às vias de fato sem entretanto ser considerado pornô. Com um rock pesado de trilha e um desenho que não economiza nas curvas (como poderia ser diferente), o filme de Arnaldo Galvão é uma das gratas surpresas do festival.

Um filme que merecia algum tipo de reconhecimento pelo júri foi BMW Vermelho, de Reinaldo Pinheiro e Eduardo Ramos. Num festival onde foi regra a preconceituosa representação do universo da classe pobre, um filme sobre uma família favelada que recebe de prêmio um BMW zero km que, por contrato, não poderia vender por dois anos chega em boa hora. O interesse de BMW Wermelho é observar como um objeto cultural carregado de significação pode perder todo seu significado quando transportado a outro contexto social. Em uma seqüência particularmente interessante, depois de uma vaquinha para conseguir gasolina, o dono do BMW liga o carro para ouvir o ronco do motor (que é esperado por uma pequena multidão do lado de fora do carro) e só ouve um leve barulhinho: o que é símbolo de potência para um mundo é sinal de obsolescência para outro.

Os Outros, de Fernando Mozart, se aproveita de um argumento muito bem feito para realizar um filme-ensaio sobre a condição brasileira. Tomando como ponto de partida a música de Beth Carvalho enviada para o espaço juntamente com uma sonda para provar vida na terra (que diz: "ô coisinha mais bonitinha do pai"), o filme caminha, inicialmente, com irreverência, pelo ponto de vista de dois ETs encarregados de fazer um relatório sobre a tal "coisinha". Quando dá a virada séria, tentando comprovar uma tese (a saber: brasileiro é isso, brasileiro é aquilo, mas brasileiros são os outros), o filme não vai tão bem, mas consegue mesmo assim a simpatia e a admiração nem tanto pelo tratamento, mas pela ousadia do tema.

A Visita de Hilton Lacerda, representa também um sopro de coragem em meio a uma produção que, no geral, está cada vez menos corajosa. O diretor opta por um enredo absolutamente obtuso, de difícil comunicação, e uma interpretação dos atores completamente "over", de um anti-naturalismo não como o da comédia rasgada, mas lembrando principalmente o Teatro do Absurdo. Na verdade, esta parece ser a mais forte influência do filme, que transita por uma série de cenas e diálogos que parecem traçar uma espiral rumo, primeiramente, ao vazio. Mas, lentamente, a intenção do diretor vai se esclarecendo: ele fala justamente do imponderável que pode tomar a vida das pessoas de súbito, dando a elas uma chance de mudar tudo na vida. E fala do fato que na maioria das vezes as pessoas não estão preparadas para abraçar esta mudança, e que reclamam do seu cotidiano, mas temem muito mudá-lo. O que impressiona mais no filme, no entanto, é que esta reflexão vem embrulhada num pacote de dificílima aceitação por um público, no geral, preguiçoso. E mais, extremamente corajoso porque sabe-se da preguiça ainda maior das comissões de seleção dos festivais, que costumam cair de amores por besteiras engraçadinhas antes de uma reflexão corajosa. Tomara que este não seja um filme injustiçado, pois vale mais que boa parte da produção atual.

Célia e Rosita, de Gisella de Mello, merecia ter ganho prêmio de melhor atriz, tanto para Dirge Migliaccio quanto para Cleyde Yáconis. Mesmo sem considerar o percurso do filme de sua captação até sua realização (as duas personagens principais morreram), o filme sabe ser interessante por apresentar a história de duas senhoras de terceira idade que se aprontam para dar um curso diferente às suas vidas. Quando pegam o carro, vem logo à cabeça um fim à Thelma e Louise, mas é aí que o filme consegue ser mais esperto: elas vagam pela praia de Copacabana, atropelam uma jovem, fumam um baseado (para delírio da platéia) e afugentam um ladrão que tenta roubá-las. O conflito juventude/velhice é inteligentemente adaptado para a imagem, por uso do backprojection nas viagens de carro, mas que infelizmente não deixam as imagens em nada bonitas. O percurso final das duas senhoras não será a morte: elas farão piercings, se tatuarão e usarão maquiagem aberrante e terminarão como capa de uma revista modernosa, para um desabafo de uma hilária e inesperada Derci Gonçalves ao fim do filme: "Quem elas acham que são?"

Outro filme que tem sido prejudicado, principalmente nas premiações, é a animação Cavaleiro Jorge, de Otto Guerra. Quem olhar o resultado dos festivais que tenham animação no biênio 2000/01, vai achar que só uma havia sido feita: Almas em Chamas. Que, aliás, é de fato um filme marcante. Mas o trabalho de Guerra merecia muito mais atenção. Assim como no trabalho de Hilton Lacerda, o que mais chama a atenção é a opção por uma narrativa muito pouco "popular", no sentido que escolhe personagens absolutamente estranhos, de pouca empatia com a platéia, e os trata com um pé no surrealismo. A reinvenção do mito de São Jorge e o Dragão tem o problema grave de um final absolutamente apressado e mal resolvido, mas até lá tem momentos belíssimos numa reflexão sobre o medo do estranho e os jogos de aparência. Tudo com um humor extremamente particular, uma animação propositadamente "tosca", e ao mesmo tempo, charmosa. Um filme com passagens realmente bonitas.

Mais tosco ainda é Os Idiotas Mesmo, de Allan Sieber. Com base nos mesmos ideais do Dogma 1,99 que fizeram Deus É Pai, o novo filme de Sieber narra a nada gloriosa saga de uma equipe de criação publicitária em meio a reuniões e idéias banais para realizar uma campanha para cigarros. Punk nos princípios e na realização, Os Idiotas Mesmo é ácido com os publicitários da mesma forma que foi com a conversa de Deus com Jesus no divã psicanalítico do primeiro filme: a estagiária moderninha que transa com o chefe, duas bichas loucas recacadas e um modernex politicamente correto repetem, asneira por asneira, tirando da profissão todo o glamour, todo o senso comum da vida publicitária. Nada brilhante, mas realiza tudo que quer, e é de fato engraçado.

Há um grupo grande de filmes que mira em alvos muito interessantes, mas que não chegam a se realizar completamente. Destes, fez especial sucesso com o público, jurados, e até mesmo críticos, um filme que provavelmente ainda vai ganhar muitos prêmios: Palíndromo de Philippe Barcinski. A obra de Barcinski (já composta de 4 curtas, e outro em finalização) possui uma coerência impressionante, lidando sempre com o Homem frente a suas impossibilidades e angústias, mas sempre a partir de um jogo técnico preciso na realização, buscando na montagem (A Escada), ou na fotografia (A Grade), ferramentas expressivas de uma sensação. Neste sentido, o novo filme é uma radicalização disso, pois trata-se de uma narrativa toda montada em cima de um artifício técnico: a exibição do filme (e som) de trás para diante. Como sempre, Barcinski atinge uma exuberância no uso desta técnica, mas o problema do principal do filme é que passada a surpresa inicial do processo, é simplório demais o desenvolvimento da vida de seu personagem, as razões e as cenas que levam à sua destruição gradual não trazem uma só surpresa, e se causam sensação é por estarem de trás para diante. Sob muitos aspectos intrigante, o filme acaba perdendo a chance de propor um novo olhar, uma nova realidade que se desvendasse com esse efeito. A realidade que o efeito revela é a mais óbvia, então fica a pergunta: para quê estar de trás para a frente? Se lembramos do fascínio recente que acometeu, por exemplo, Júlio Bressane sobre este efeito, percebemos quão longe Barcinski passa das possibilidades expressivas. Como afirma a sinopse, é apenas "uma história simples contada de forma inusitada". Nada contra, mas nesta seara preferimos as "histórias inusitadas contadas de forma simples". Se a forma é inusitada, porque não propor conclusões idem?

Da mesma forma que Palíndromo, Sinistro se adapta muito bem a uma determinada localidade do cinema, o "cinema de autor". Se o filme de Barcinski encontra eco no cinema mais existencialista, o de René Sampaio utiliza-se do roteiro cheio de malabarismos e na lógica do derrisório, à maneira do Tarantino de Pulp Fiction. O que não impede o diretor de fazer um filme bem realizado tecnicamente, virtuoso até, mas que se fecha num vazio de referencialidade e citação, sem que saibamos muito por que estamos vendo tudo que vem da tela. Se Sinistro parece uma assimilação simples do esquema Tarantinesco-Bonassi a serviço de um bom diretor, um exemplo dos maus resultados deste sistema pode ser o filme paraense Dias. Fascinado com a montagem paralela como estrutura narrativa, o filme revela uma extrema incapacidade de propor absolutamente nada de novo, ou seja, as regras daquele joguinho de armar se revelam e logo se tornam desinteressantes. O fascínio que acomete os curtametragistas de brincar de narrar pela brincadeira parece desde já extremamente repetitivo.

Outro filme que resvala em inúmeras possibilidades interessantes é Distraída pra Morte, de Jefferson De. O filme se propõe, através do mais marqueteiro que qualquer coisa (Jefferson é o primeiro a dizer isso) "Dogma Feijoada" propor um novo olhar sobre o negro no cinema brasileiro. Se o Dogma em si é esquemático em suas regras, o filme vale bem mais. Consegue propor uma ficção atual com personagens negros, sem se valer de sociologismos, que incorpora referências histórico-geográficas sem ser didático, que fala de revolta sem ser panfletário, que incorpora a cultura negra sem ser óbvio. Um filme que é mais um painel que qualquer coisa, mas que possui uma interessante estrutura de "street movie" (um road movie urbano), onde há espaço para cenas altamente expressivas. Ainda assim, é inegável a sensação de um esboço de algo que se seguirá, mais elaborado. Mas, Distraída é energético e empolgado, características em falta no cinema nacional atual.

O interessante de outro filme, Capiba – 96 Anos se Deus Quiser, é exatamente o contrário. Aparentemente um filme de modestas intenções (prestar uma homenagem ao compositor pernambucano), o filme acaba ganhando muitos pontos por conseguir momentos extremamente poéticos e emocionantes. Embora qualquer filme passado em rios de Recife sofra da comparação com o excepcional Recife de Dentro para Fora, o que cativa aqui é justamente a simplicidade da narrativa, dos signos usados, dos objetivos do projeto. Provando como a luz de Recife é cinematográfica, o filme cria imagens belíssimas num passeio com o compositor Capiba (já morto, trata-se de um ator – aliás também já falecido) pelo rio Capibaribe, com direito a frases ditas pelo compositor que se unem de forma harmoniosa com as imagens criando uma singela declaração de amor à cidade, ao compositor, e acima de tudo ao frevo. A passagem sob a ponte é especialmente bem sucedida.

Falando em homenagens a cidades e no uso sem muitas pretensões do mecanismo cinematográfico, não deixaremos aqui de falar do amável São Luiz Caleidoscópio, de Hermano Figueiredo que, na apresentação do filme, recomendou o cuidado com as curvas. Sim, é de fato uma obra viva, cheia de amor por aquilo que filma, e que deseja transmitir ao espectador toda a dinâmica da produção cultural de São Luiz, pouco se atendo à singularidade de cada manifestação mas compondo um mosaico de imagens e músicas da cidade. O filme, como um piloto de altas velocidades, tem voltas boas e algumas nem tanto: não consegue a pole position mas faz belas ultrapassagens. Se dois mecânico fosse melhor (o uso da poesia quase concreta de um aedo local mais incomoda com as assonâncias e os quase trocadilhos do que ajuda, e o filme não tem uma lógica – nem uma lógica tênue, musical – de modo que tudo acaba se equivalendo), um pódio não seria nada impossível.

Qual o problema de Sargento Garcia? O filme de fato não é mal interpretado, adapta o interessante relato de Caio Fernando Abreu, tem uma direção que não incomoda, mas o resultado é insuficiente em relação a tudo que se vê na tela. Duas opções: a) o tom menor do filme foi equivocado; b) o fim do filme, que precisa mostrar ao público a força que tem a decisão existencial do personagem principal, Não chega a um bom termo. Amantes do tom menor, escolheremos a segunda opção.

A Sintomática Narrativa de Constantino, de Carlos Dowling, já não sofre desta simplicidade. Encenado de forma tão anti-naturalista quanto A Visita, não consegue os mesmos resultados, essencialmente por dois motivos: se alonga mais do que o necessário, e se repete demais, uma vez entendidas suas intenções. Falta ao filme uma concisão que garanta à sua estranheza maior impacto e mistério. É verdade que possui inúmeras cenas altamente interessantes, mas na estrutura mesmo de seus diálogos abunda um certo "hal hartleirismo" onde o que era para ser estranho torna-se excessivamente auto-congratulatório e referente. Ainda assim, um filme simpático.

É interessante, mas o mesmo acontece com Pixaim do baiano Fernando Beléns. Trabalhando com ótimos atores numa estrutura claramente teatral, ele começa muito bem, nos anos 70, criando o tipo de visão micro histórica que podia dar muitos panos para manga, se ficasse feliz em ser apenas isso. Quando o filme começa a dar saltos históricos (à la Terceira Morte de Joaquim Bolívar), perde seu impacto, se alonga e se dilui ao mesmo tempo. Falta, como no filme acima, uma capacidade de "acabar" simplesmente.

E há a série de filmes que se poderia chamar de efetivamente mal sucedidos. Eles variam da deturpação do universo rodriguiano de Os Filhos de Nélson, que parece compreender ainda mais simploriamente o que o compõe do que um filme como Gêmeas, até o absolutamente profissional e bem realizado bolo de noiva que é Imminente Luna, um filme pretensioso na sua suposta simplicidade, como o próprio título indica. Disputaria com Os Cristais Debaixo do Trono e O Sonho de Rose o título de musiquinha mais irritante, fácil, fácil. E da história de "compreensão, superação e bons sentimentos" o inferno está cada dia mais cheio. E já está devolvendo o excedente a tempos. Cateaubriand, Cabeça de Paraíba poderia ser tudo, menos irrelevante – mas consegue. Tocando em momentos profundos da história do audiovisual brasileiro, consegue sempre dar mais atenção a outras coisas, jamais nos tocando politicamente ou transmitindo qualquer empatia com a história contada ou com o personagem de Chatô, que incrivelmente (como se conseguiu isso?) não está nada carismático. Outro filme que se quer necessário e é igualmente desimportante é O Cabeça de Copacabana, de Rosane Svartman. Apresentando a história de um pai de família reclamão que não consegue ser desenterrado da areia da praia e vira um fait-divers da televisão, o filme acaba dando atenção a uma subtrama (sua família quer faturar com o caso) e acaba sendo da mesma utilidade que o próprio personagem principal, que fica inutilmente reclamando da política no Brasil da maneira mais simplória (os políticos são corruptos, ninguém faz nada, etc.). Não se pode esquecer do aparentemente inofensivo e agradável Sintonia Fina que se torna bem menos agradável quando se considere que no mesmo tema o filme da FAAP Linha Burra tinha muito mais idéias a propor, e nem tão inofensivo quando o diretor faz o equivocado discurso de apresentação que fez no Festival, explicando sua estrutura em dois "planos-seqüência"(?!?), e demonstrando profundo desconhecimento da história do cinema brasileiro pedindo "mais filmes que falem com o público". Hein?!

Mas, mais preocupante sempre do que os filmes mal resolvidos são os que possuem atrativos na sua estrutura o suficiente para esconder suas falhas profundas e completamente destrutivas de suas próprias intenções. Talvez o caso mais claro disso seja o documentário A Composição do Vazio. A platéia aplaude entusiasmada o que parece ser a revitalização de um filósofo pernambucano pouquíssimo conhecido, Evaldo Coutinho. No entanto, o filme está em desacordo, para início de conversa, com seu próprio "homenageado". Seguidas vezes ele aparece no filme dizendo que não se importa em ser lembrado, desde que sua obra fique. Pois bem, ao longo de quase meia hora, o filme só consegue fazer o oposto do que o seu objeto deseja. Saímos da sessão conhecendo bem Evaldo, o homem, e sabendo de acordo com inúmeros depoimentos que "devíamos mesmo conhecê-lo", mas lá pela vigésima afirmação desta, a vontade de gritar é grande: "Tá bom, já entendi!! Agora, que tal um pouquinho da obra dele??" Claro, pode-se dizer que filosofia é para ser lida e estudada, não filmada. Mas, além da afirmativa ser tola e falsa, o filme tenta seguidamente usar umas cartelas com escritos do filósofo, até mesmo com separação das cenas, mas elas nada acrescentam, nada passam. Ao final, muito pouco se sabe sobre Coutinho, apenas que devíamos saber. E 30 longos minutos de "talking heads" não ajudaram nada.

E o que dizer de O Branco, filme que vem cativando audiências e recebendo prêmio após prêmio com a história de um menininho cego que num determinado dia, sem querer, caminha por uma cidade que mais parece uma terra de ninguém, onde ninguém percebe que ele é cego e se dispõe a ajudá-lo, até chegar a um parquinho onde ele pretende encontrar a amiguinha para tomar sorvete. No meio de tudo isso: a obsessão pela cor branca, um banco de praça com um furo no assento onde o menino coloca dois dedos (?), um diálogo sobre o que é "simbólico" (será que colocar dois dedos no buraco é simbólico) e uma terrível musiquinha melosa, de piano, que retorna a cada instante. Se os prêmios dados a esse filme revelam que cinema de qualidade é isso, então tomemos cuidado, porque já vimos o que vem por aí. Preocupante.

Eduardo Valente e Ruy Gardnier