Filmes
na TV: A Cor da Mentira, de Claude Chabrol (Ruy
Gardnier)
FILMES NA TV Anualmente esperamos pelo próximo filme de Claude Chabrol. Prolífico como poucos na década de 90 – realizou 9 longas-metragens de 1990 até hoje –, seus filmes conseguem manter mesmo assim um nível impressionantemente alto e um conjunto de preocupações que reaparecem a cada obra. É um pouco, como já se falou mais de uma vez, aquela ânsia herdada imediatamente de Balzac de retratar psicologicamente todos os tipos da vida parisiense em suas patologias mais sombrias, em seus arroubos mais doentios. Só que a doença, em Chabrol, jamais é vista como aquilo que sai dos limites do humano; em seus filmes, ao contrário, a doença, o pathos, é aquilo que é o mais intimamente compartilhado entre todos os homens. Claude Chabrol pode ter momentos altos ou baixos, mas seu olhar sobre o mundo permanece impiedoso. Para nós, cinéfilos a partir dos anos 90, uma bela notícia: o diretor de Les Bonnes Femmes conseguiu manter-se uma década de altíssimo nível, somente comparável ao seu áureo período dos anos 60, época de eclosão da nouvelle vague. Temos ao menos duas obras-primas (Betty e La Cérémonie, traduzido no Brasil como Mulheres Diabólicas), mas absolutamente nenhuma obra equivocada, algo incomum de acontecer com cineastas que filmam muito (e como foi comum com o próprio Chabrol em outros momentos). A Cor da Mentira (Au Cœur du Mensonge, "no coração da mentira", como seria um título mais literal), que a Eurochannel exibe a partir do mês de maio, retoma sem sobressaltos o estilo chabroliano de filmar: uma casa, personagens seriamente envolvidos em problemas sociais e emocionais. Seu objeto de predileção é sempre o conflito que funciona no seio de um relacionamento, seja marido-mulher (como no caso desse filme ou de O Ciúme/L'Enfer), patrão-empregado (La Cérémonie) ou em relação não muito claras, como em Negócios à Parte/Rien ne va Plus, anterior imediato de A Cor da Mentira. O estilo é imutável desde seus primórdios: movimentação de câmera sempre presente, sempre muito rigorosa; uma palheta que privilegia as cores menos vivas (cinza, azul, verde escuro, marrom) numa fotografia naturalista e sempre muito seca; e com os atores um trabalho sempre muito estrito, de contenção e de carga muito forte somente nos olhares (o que o obriga a trabalhar sempre com suas atrizes fetiche: Sandrine Bonnaire, Isabelle Huppert, Marie Trintignant...). A história nos coloca na Bretanha, numa cidade de campo (Chabrol, como Balzac, adora as cidades pequenas), onde um estupro infantil seguido de assassinato acaba de ser realizado. A menina morta acabara de sair da aula de desenho do pintor René Sterne, o que faz dele a principal testemunha e o primeiro suspeito. Ele leva uma vida calma mas muito pouco serena com sua esposa: manco e sem vender quadros há anos, vive a tensão do artista desiludido da vida e da obra. Sua esposa, Vivianne, se ressente disso e acaba tentando encontrar segurança num jornalista e escritor arrivista que acaba de voltar de Paris, Desmot. Desmot, por sua vez, tem negócios escusos com contrabandistas de obras de arte, principalmente ex-votos. Um cenário especialmente do gosto de Chabrol, pois aí ele poderá tocar vários dos temas que o fizeram célebre: mesquinharia humana, fraqueza emocional, arrivismo e, à frente de tudo, o pathos máximo, o do assassinato. Ele é por excelência o cineasta do patético: observa o mundo como um demiurgo, apaixonado por todos os acertos e erros de seus personagens (ama os erros mais que os acertos, com toda a certeza...). A narrativa do filme é a história da investigação do assassinato da menina – levada a cabo por uma investigadora vinda recentemente de Paris – e também a história da aproximação progressiva de Vivianne em direção a Desmot, que acaba resultando em mais uma desgraça. Contada não a partir do ponto de vista de um ou dois personagens mas antes como um relato "da cidade", a narrativa é polifônica e misteriosa, o que remete imediatamente a Twin Peaks, a famosa série de David Lynch. Mas a grande pergunta de A Cor da Mentira não é "quem fez?". O suspense passa por outro lugar. Está antes na pergunta "quem mente?"; ou ainda, "devemos suportar essa mentira?". Não é à toa que a mentira está no filme desde seu título. Ela não tem cor (ah, mais um título equivocado...), mas penetra profundamente em todo o tecido da trama: quando o Sr. Sterne ouve de sua esposa respostas que lhe parecem desculpas deslavadas, ele deve acreditar? E sua esposa deve acreditar quando o marido diz que não assassinou sua aluna? A investigadora deve acreditar naquilo que os investigados dizem? E o espectador, o que ele sente? Desde a primeira cena do filme – e nisso Chabrol sabe ser magnífico –, ele é inclinado a suspeitar do pintor, a crer em sua culpabilidade como a crer na traição da Sra. Sterne... A rede de inverdades permanecerá ainda depois do final do filme, onde a mentira será partilhada, e será necessária inclusive para o renascimento do casal (as últimas palavras do filme são "renais, René", renasça, René) e para o prosseguimento de suas vidas. Não por acaso, o pintor é especialista em realizar "trompe l'œil" (engana o olho), pintura realizada diretamente em paredes para dar aparência de fundo falso. O trabalho de Chabrol, obviamente, não se reduz a isso. A intriga o fascina, mas a lapidação dos personagens nos atores é uma paixão talvez mais forte ainda. E é instigante observar uma Valeria Bruni-Tedeschi terna, serena, hesitante para interpretar uma investigadora de polícia, personagem que nos filmes policiais sempre deve ser ágil, rascante e cínica. Ou Jacques Gamblin, marido ciumento que entretanto não tem arroubos de ódio nem derruba tudo no chão como é tão comum... Chabrol passa tudo pelas entrelinhas, tudo pelos comportamentos de seus personagens muito mais do que por suas ações (age-se muito pouco, graças!, em seus filmes). Mas se o Au Cœur du Mensonge é um ensaio sobre a mentira, ele não exclui a verdade. Ele diz, "a verdade, ela não é tão importante", mas ela está lá, batendo à porta. E quem responde é a arte: um quadro de René, ao meio do filme, materializa em forma de pintura o que havia em forma de obsessão em seus pensamentos: sua mulher nua, e um homem com seu vestido nas mãos. Esse quadro desencadeará o grande mistério do filme, colocará tudo em pratos limpos, mesmo que precise utilizar-se de outros subterfúgios. E não é essa, tal qual o quadro do pintor, a grande astúcia do próprio filme de Chabrol? Ruy Gardnier No crepúsculo de uma terça-feira, tive a oportunidade de assistir a uma palestra realizada no pátio do Iacs (Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF), em cuja mesa estavam meu companheiro de karma Daniel Caetano, uma outra estudante que eu não conhecia, representando o Centro acadêmico, e o cineasta José Joffily. Meu companheiro de karma, aliás, expunha com paciência didática todo o abecedário de nossa saga cinematográfica Conceição – Autor Bom é Autor Morto, atendo-se com freqüência à letra O de orçamento, que requeria todo um desfiar de penitências. Sentei-me e escutei suas considerações, que já compartilhava, aliás, eram considerações que qualquer cineasta de bom senso compartilharia, já que apontava com propriedade os muitos vícios que hoje imperam dentro do regime de captação para a realização de longa-metragens. Assisti a tudo com autocompaixão e letargia, como também faria qualquer cineasta de bom senso acuado pelas impossibilidades. Ia assim, remoendo minhas raras esperanças junto ao meu companheiro, aquiescendo, aquiescendo. Até que o Joffily tomou a palavra. Há cerca de um mês, aquelas palavras proferidas pelo renomado cineasta salvariam um outro debate realizado no CCBB, com a presença de Nelson Hoineff e o editor da revista Sinopse, que tinha como tema a democratização da televisão brasileira. Nós, que diariamente nos deparamos com os fatos, sabemos o quanto pesa falar sobre isso, pois a verdade é que toda vez que se tenta mostrar as vicissitudes do processo, um gigantesco martelo imaginário fica suspenso sobre a cabeça daquele que pretende, ainda que timidamente, ainda que num sussurro, dizer a verdade que clama: A Rede Globo de televisão é... O indivíduo parece atrair para si um julgamento maior e mais impiedoso que a intenção de suas palavras interditas, que poderão lhe reduzir os quinze minutos de fama a que tem direito durante a vida. Caso complete a frase, pode perder definitivamente seu lugar ao sol, ou melhor, sob os refletores, para se tornar o mais anônimo e miserável dos homens. Para minha surpresa, a única pessoa que levantou a mão, sem o medo do limbo existencial, foi uma senhora que, numa primeira vista, dava a impressão de ser uma passiva espectadora de novelas. Sem esperar muito a autorização da mesa, foi dizendo o que achava dos folhetins globais, denunciando veementemente o padrão que se quer naturalista, mas que no fundo é uma caricatura, e por aí foi, destruindo, um por um, todos os sinais que a tornavam uma aparente e simpática noveleira. O resto do debate, como era de se esperar, foi uma constante e inconsciente fuga do cerne da questão, pois sabemos que, enquanto houver reservas com relação a este assunto, a democratização das comunicações será um mito cultivado pelo desemprego de jornalistas, cineastas e publicitários, que deliram em meio a um paraíso de imagens que não encontram registro. Talvez, se Joffily estivesse no CCBB, não encontraria as palavras e colaboraria até para a consagração deste clima hipnótico evocado pelo poder de tal emissora. Quem sabe? Mas o cineasta encontrava-se em meio a estudantes de comunicação, professores e alguns passantes descompromissados. Estava no coração de uma Universidade Pública Federal, de onde poderia surgir a fagulha da revolta. Logo que meu companheiro de karma passou a palavra, Joffily respirou fundo e começou a desnudar a verdade, ao ponto de deixá-la nua, repugnantemente nua. Estava ali, para todo mundo ver: a musa inspiradora do cinema nacional chupava seus próprios seios, requebrava-se já sem juventude, com a barriga roxa pelas incisões de lipo, com a bunda rochosa de silicone. As pessoas viram e não se chocaram. Também não jogaram moedas. Nada. Pouco a pouco, Joffily dava-se conta de que, por mais que ele enfeiasse a situação, aquilo não causava espanto. A verdade era essa: no fundo, dava no mesmo, pois todos estavam com os olhos voltados para a Miss Mississipi, para miss América, para a miss novela. Percebendo a indiferença do público, o professor soltou a última bomba, muito bem guardada. Disse "Sabia que, quando vocês saírem daqui, só terão um patrão? Trabalharão sob as ordens de um único patrão, trabalharão sob os telhados de uma única empresa, falarão mal dos mesmos colegas, terão filhos que serão protegidos pelas leis formuladas por ela mesma... sabiam?" Aquelas palavras, ditas com energia, causaram profunda impressão. Os que até ali eram simplesmente estudantes, tornaram-se possíveis candidatos a uma vaga de estagiário no Projac, e o instinto colocou-os em estado de alerta, pois todos eram concorrentes de uma única empresa, entregariam seus currículos mixurucas à mesma secretária. A maioria, se não todos, obviamente ficaria de fora. No final, Joffily disse que se unir e enfrentar essa realidade não tinha nada a ver com ideais socialistas, ou coisas do gênero, mas era um ato de extrema individualidade, pois era uma questão de sobrevivência. Para onde iriam depois de terminada a faculdade? Isso, realmente é um fato. Todos sentimos na pele a coerência daquele discurso. Hoje, tem-se muita preocupação de formar profissionais de audiovisual. Cria-se uma faculdade de cinema, um curso de cinema, todos os anos. Mas a verdade é que não existe nenhuma garantia de trabalho. Depois do discurso, fui beber uma cerveja com meu companheiro de karma e ficamos conversando até nos cansar de tanta coerência. Guilherme Sarmiento
OUTRA VISÃO Terence Davies, o talentoso e intenso diretor inglês, ama Charles Dickens, defensor dos oprimidos e grande cronista da classe operária inglesa do século 19. Seus três primeiros filmes, todos eles curtas autobiográficos, são dickensonianos até a medula. Seus trabalhos se caracterizam, também, por aguda sensibilidade, avessa às injustiças. Como Dickens. Edith Newbold Jones Wharton foi a corrosiva cronista da alta sociedade novaiorquina na virada do século 20. Suas obras mais conhecidas sobre o assunto são A Idade da Inocência e The House of Mirth (A Casa da Alegria). Mudou-se para a França, onde morreu em 1937. Detestava o chauvinismo, a frivolidade e as injustiças, típicas da chamada aristocracia . Como Dickens. Agora junte os três , Davies, Wharton e Dickens, e você terá uma mistura que só poderia resultar num filme extraordinário – na plena acepção do termo – como A Essência da Paixão (The House of Mirth). O filme é sobre a hipocrisia e a falsidade, mas não é só sobre isso. É sobre a destruição de uma alma feminina que queria ser independente numa sociedade machista, mas não é só isso. É sobre a crueldade e a inveja, mas também não é só isso. É a história de uma Anna Karenina americana cujo único crime foi ser diferente demais, moderna demais, atraente demais e – para sua desgraça – ingênua e transparente demais. É a crônica que nos faz acompanhar, passo a passo, a caça e a imolação pela matilha burguesa de um ser humano tornado indefeso pela sua ausência de maldade e auto negação. O espectador acompanha, não sem desconforto, o nó do laço ir apertando lentamente no pescoço de Lily Bart (Gilliam Anderson) rumo à tragédia , que vem inexorável, mas não sem um sentido de libertação – e acusação – finais. Apesar de alguns poucos senões, A Essência da Paixão é também uma festa para cinéfilos conectados na teoria do cinema. Davies não economiza elipses, fusões e transições (uma delas, de antologia : a passagem do jardim sob a chuva outonal novaiorquina para as águas ensolaradas do Mediterrâneo), sem no entanto embaralhar o tempo da narrativa; o ritmo do filme é mantido fluido e coerente por cortes tempestivos e uma montagem não obstrutiva; os closes são delicadamente intimistas e as composições poeticamente expressivas. Junte-se a isso a ótima trilha sonora de Adrian Johnston (Jude) e a competente fotografia de Remi Adefarasin (Elizabeth), que vão mudando os seus tons na medida em que a trama vai se tornando mais e mais dramática e uma direção de arte que – ao que consta – fez milagres com o pequeno orçamento que dispunha para recompor a época e locais da história. Nem tudo funciona totalmente a contento, no entanto: certos personagens são unidimensionais, sobretudo os vividos por Terry Kinney (George Dorset), Dan Aykroyd (Gus Trenor) e Eleanor Bron (Mrs. Peniston). Eric Stoltz, interpretando o advogado classe média Lawrence Selden, por quem a infeliz Lily Bart guardava a paixão do título em português, somente na cena final sai da apatia com que leva o seu personagem o tempo todo. Mas a compensação, também na área das interpretações, é maior. Gilliam Anderson é uma ótima surpresa para quem se acostumou a vê-la nos Arquivos X da televisão: a sua Lily comove e cria a empatia necessária a um personagem martirizado pela maldade e pela inveja; Laura Linney constrói com sua competência habitual uma Bertha Dorset traiçoeira, ardilosa e cruel; Anthony LaPaglia, deslocado dos papéis ítalo-mafiosos com que costumam estereotipar suas participações no cinema, faz ótimo uso da oportunidade e convence como Sim Rosedale, o arrivista emergente que quer ser aceito na alta sociedade através de um casamento apropriado, mas que ainda guarda o sentimento de solidariedade inexistente nas altas rodas dos ricos e muito ricos. A Essência da Paixão é um filme como poucos nos dias de hoje, daqueles que fazem do cinema a arte magnífica que pode ser quando encontra um autor como Terence Davies Carlos Augusto Brandão
CRÔNICA 01. Estou feliz em ter novamente uma coluna de cinema. Agradeço ao pessoal da CONTRACAMPO. Sou de Sampa & adoro o Rio. Meus pais são de Minas. 02. Digamos que sou um cinemago muito magro. 03. Meu negócio no ócio é atualmente DVD. 04. Mas vejo tudo que passa no Espaço Unibanco, Cinearte & sala UOL. 05. Concordo com Reichenbomba: Meu Melhor Inimigo é duca. Acho Kinski um ator genial. Porém, não dou 4 estrelas. Herzog fala demais... 06. Hitchcock dizia que ator é gado. Pra mim Marlon Brando é sagrado. Depois... Orson Welles. 07. Nelson Rodrigues dizia que a unanimidade é burra. Nessas não é legal virar escravo do DVD. 08. Cinema é coisa da caverna de Platão ou não. Foda é que na sala escura neguinho leve tanta pipoca. 09. Prefiro sessão da tarde com pouca gente na sala, boto os pés na poltrona da frente & aí vou curtindo. 10. Eu tava com a Monica & fomos ver Malena, do Tornatore. Sessão das 8 no Cinearte 2. Sentamos na segunda fileira. Sala pequena, lotada num sábado... 11. Gosto de condições ideais pra ver filme. 12. Sentou espectador de dois metros na minha frente & eu ficava sem visão de uns 40% da tela, pode? 13. Não esperava grande coisa do Malena, mas achei legal. Me lembra um pouco o Titanic do Bigas Luna. 14. Filmes do Oscar? Prefiro ficar em casa lendo meus livrinhos... Antes de ler o livro que o guru lhe deu, você tem que escrever o seu. 15. Não durmo enquanto não sair O Vampiro da Cinemateca em beta digital pelo Itaú Cultural. 16. Bolei agora um puta vídeo: Cinema de Invenção 2001. Tarô na rota da roda. Terá 22 minutos. 17. Aliás, eu sou a carta zero. 18. Quando acabar, o maluco sou eu: linha 347, saca? 19. Dia 4 de maio estarei autografando meu livro Cinema de Invenção em Santos, evento SESC / Cinemateca de Santos, baixada santista, tá ligado? 20. Sou um cara que assistiu a 422 filmes em 1961. Tal evento é um tributo ao insigne cinematólogo Maurice Legeard sobre o qual realizei o curta hoje cult O Guru e os Guris. 21. Acabo de ganhar de presente um DVD do caralho: F For Fake, by Orson Welles. Viva Luiz Rosemberg Filho! 22. É isso
aí. Com o pé no chão & a cabeça nas estrelas.
Fim de papo? No momento em que eu ia partir, eu resolvi ficar. Um beijo
& até a próxima edição (quase que eu ia
dizer reencarnação). Se estou vivo é graças
a vocês da contracultural contracampo. Falei, Juliano? Ainda no sítio
do MinC, encontramos um imenso e interessante estudo sobre a economia
audiovisual, chamado justamente Economia
do Cinema no Brasil, que parte de um resumo histórico da implementação
do domínio americano para depois repassar os formatos de atuação
do governo em dois países exemplares, ambos a partir da perspectiva
brasileira. O estudo é cheio de informações, o que
me lembrou das aulas da professora Cristina Ferraz, quando ela nos explicava
sobre as teorias foucaultianas sobre o controle de informações
pelo seu excesso. De toda maneira, é bastante interessante notar
como os sistemas de França e de Inglaterra são completamente
díspares, quase opostos, como se o MinC nos dissesse "olhem,
nós não somos assim, mas poderíamos ser assim...".
Se o MinC pretende estabelecer um aparato semelhante ao francês,
ótimo, logo seremos testemunhas de uma revolução
administrativa na área audiovisual. Se a intenção
de lembrar da Inglaterra thatcherista era de assustar aos seus leitores,
talvez aí o MinC tenha sido bem-sucedido. Mais do que em qualquer
discurso, é nas resoluções administrativas que ficará
evidente o modelo de produção que interessa ao MinC defender.
Sob este aspecto, deve-se fazer com relação aos documentos
analisados neste texto, as cartas curriculares números 228 e 230,
as mesmas observações feitas ao discurso do Secretário
José Álvaro Moisés no Senado. Sua publicação
no sítio do MinC é sinal de elogiável transparência.
O MinC não esconde o jogo. Se há erros em sua postura e
estes não lhe são cobrados devidamente, certamente isto
não se deve ao obscurecimento de suas atitudes, mas antes à
pré-disposição em atacá-lo ou defendê-lo
de alguns, conforme sua origem, o que limita definitivamente seu conhecimento
das decisões que realmente importam ( ou mesmo seu interesse em
mencioná-las), e por extensão seus argumentos e críticas.
Daniel Caetano CRÔNICA Fechando a minha lista dos melhores filmes de 2000, percebi que um filme, diferentemente dos demais, merecia ter seu voto tratado com um pouco mais de cautela. Sabe aquele voto que nunca parecerá óbvio ou que parecerá sempre uma escolha meramente impensada e ocasional? Essa é a escolha de Cronicamente Inviável como a de melhor filme Brasileiro de 2000. E eu a faço. Portanto, correndo o risco de ser excomungado pelos meus colegas Contracampos e baseando-me também no último Cinema Falado (edição 25/26) em que o filme de Sergio Bianchi foi efusivamente condenado pelos meus colegas com adjetivos não muito leves ("fascista", por exemplo), é que retorno aqui à minha particular opinião sobre o filme (já antes expressada na sessão de críticas da Contracampo). Pois é, democracia dá nisso...
Cronicamente Inviável é um grande filme. E grandes filmes não devem ser avaliados como objetos isolados de seu nicho, de seu momento no Cinema e na história - grandes filmes são a própria história, são vivos justamente por saberem dialogar com seu tempo específico de forma ilimitada. Acusado de fascista, pessimista, alarmista - o filme de Bianchi tem seu mérito justamente em sua capacidade de tirar seu público, assim como seus personagens, de um lugar de conforto. A cada esquete, a cada nova imagem que forma seu grande mosaico, Cronicamente brinca de dar rasteiras, de tirar da boca da intelectualidade fácil e antenada (o seu público), o solo fácil e tranquilo de sua realidade. Para um público formado majoritariamente por uma classe média "pensante", acostumada a achar tudo "Tão lindo" na pobreza alheia (não venham me dizer que o sucesso dos filmes iranianos nos circuitos alternativos são fruto de sua riquíssima e original forma de retratar o espaço e o tempo de seus personagens - isso é piada!) , um pequeno cocktail de sujeiras e maldades é difícil de engolir. Para um público acostumado a achar o povo "bom" (como disse certa vez Fernanda Montenegro em Tudo Bem, de Jabor), ver seu povo querido sujo e não sendo tratado como doces vítimas de uma sociedade, deve incomodar. E incomoda! Mas e a questão existencial, mas e a beleza da vida simples e humilde, mas e os ideais da fraternidade?, perguntam. Não está lá, não existe fora do senso comum do relativismo e da boa nova-moral cristã. Cronicamente Inviável é justamente um exagero, justamente uma elevação da sujeira à ordem infiltrada em todos os níveis sociais - e porque isso incomoda tanto? Todos nós sabemos de tudo o que o filme mostra e fala, temos opinião sobre os assuntos, achamos que entendemos... Mas não entendemos: nem eu, nem você, nem o Bianchi, nem ninguém... Cronicamente Inviável critica isso: essa mania intelectualóide ou preguiçosa de achar que já se entendeu tudo, que já se chegou a um consenso, de que a vida é isso aí e vamos lá... De que já se encontrou a solução mais viável para a própria vida. Quem disse que a vida tem de ser viável? não seria essa busca por solucionismo e formuletas sociais a maior fonte da pobreza de pensamento? Como pode um filme como Cronicamente ser acusado de fascista ? é o mesmo caso de sair por aí enchendo a boca para acusar Nietzsche de nazismo quanto simplismo de raciocínio!... O que sai da ordem muitas vezes é confundido justamente com aquilo que é ordenador. Qual é o mal de se falar mal, de se falar mal de todos?... Já não está na hora de aprendermos a ter inimigos? Cafuné na cabeça é bom, mas viver só disso não leva a lugar algum... E Bianchi é
um valoroso inimigo. Desses que nos reviram os sentidos, que nos fazem
rever o já superado sempre de uma forma ainda mais cruel. Cronicamente
Inviável ultrapassa, e muito, a barreira do mero pessimismo
ou da crítica generalizada e inconstrutiva de que o acusam. Cronicamente,
ao contrário de "fascista", é um dos poucos filmes
brasileiros contemporâneos a imergir ao cerne das questões
e sair de lá com algo que é muito mais do que uma resposta
pronta, mas uma negação à divinização
dessas respostas... O que Bianchi faz em Cronicamente é atiçar, é espetar o comportamento contemporâneo do senso comum brasileiro que enxerga a realidade como uma maré inelutável de conjunturas abstratas. Idéias como Liberdade e Diversidade são criticadas pelo filme justamente por terem se tornado corpos inócuos de discussão, rótulos de um pensamento fácil humano-ufanista. Movimentos como o Viva Rio, o MST e outros, são atacados em seu caráter otimista-passivo (como o primeiro, que vende adesivos e broches sem antes se preocupar em passar de forma relevante as bases intencionais de suas ações). Mesmo um movimento organizado e importantíssimo como o MST vem correndo o risco de se perder justamente por, nos últimos tempos, ter considerado sua causa tão válida (tão importante) que poderia se eximir de argumentar, que poderia esquecer o diálogo das idéias para partir a uma ação impositiva. Sentar-se sobre uma causa e não olhar para si mesmo: esse é o problema dos bem intencionados.
Em outro aspecto, ao criticar violentamente a classe operária/trabalhadora brasileira como sadomasoquistas e egoístas, Bianchi demonstra uma falta de "pena" pelos mais "fracos",uma falta de pudor que é um dos pontos mais fortes de seu discurso. Justamente porque não os considera mais "frágeis" ou dignos de pena é que Bianchi não terá pudores em atingi-los como atinge a pequena classe média: o filme foge da tradição de se enxergar o povo brasileiro dentro de uma mesma tríade: como um mártir batalhador, como um coitado digno ou como um exemplo de ser humano... O que alguns críticos ou de não consideram em Cronicamente é que em seu "ataque" é que se encontra seu maior respeito por essas pessoas - que, ao contrário de precisarem de caridade ou de mãos protetoras, precisam ser considerados como parte do ponto chave das discussões, como protagonistas do mesmo filme da classe média e sendo tão "vilã" quanto esta. Ao contrário de "pena"ou "exotismo" que tratam pessoas como seres excepcionais, Bianchi dá pedradas com as mesmas pedras para todas as direções. E ao atacar todos os lados não cria um julgamento, não condena ninguém - ou melhor, culpando a todos, mostra que nunca haverá bode expiatório o suficiente para se explicar um país. * * * A inviabilidade de que fala o título do filme, essa impossibilidade crônica de se gerar uma crônica homogênea do país, é uma atitude firme contra todo o tipo de visão solucionática em que grande parte da "classe média pensante" de nosso país está imersa. A lógica causal e o perfeccionismo como objetos de adoração são justamente aquelas as que Bianchi chama de Inviáveis. Essa ilusão de que a realidade difusa de um país pode ser solucionada por uma mão só ou que, justamente por ser dispersa, esteja nas mãos das pequenas ações desarticuladas de um grupo de meninos tocando tambor aqui, um outro grupo fazendo ballet acolá... Essa visão que escalona a realidade brasileira em tópicos: "a questão do índio", "a questão da fome", a "questão agrária" - cada um se preocupando apenas com seus objetivos mais restritos. Esquecendo do emaranhado rizomático de relações micro e macrocósmicas que constituem essa realidade inconstante e incompleta. Por isso o filme é um painel, por isso ele é montado em pequenas esquetes que, dialogando entre si, tentam não retratar todas as circunstâncias, mas recortes de um rodamoinho. Bianchi cria, assim, nessa inviabilidade de solução, uma não-solução que busque não mais respostas cristalizadas, mas que se acostume a continuar perguntando. Antes de buscar a defesa desses ou daqueles valores nacionais, é preciso uma reformulação das perguntas e das buscas. * * * Cronicamente Inviável é um filme onde cada personagem se contradiz e se refaz a cada instante, que discursa e se ridiculariza a cada imagem - que acaba por nos fazer rir ou se engasgar. A comédia de que acusam o filme é inevitável, pensando no cômico como aquela situação de que já se sabe, de que já se espera - é a demonstração do óbvio a fonte da graça. Quando a cena final, a da mãe com o filho num beco escuro, surge na tela (interrompida pelos soluços dos fades negros) não há mais volta: os noventa minutos do filme já se passaram, as imagens se transformam em idéias, a mulher fala com o filho e nos ignora. Ao contrário do resto dos personagens do filme, ela não parece estar fazendo um discurso pronto, não é um personagem de farsa.... A imagem da mulher é uma imagem, a figura de um represamento, de uma tristeza que se mistura ao dia-a-dia e se torna instantânea... Um instante em que o desconcerto é ferramenta não de uma ingênua incitação de revolta, ou de uma pedante melancolia derrotada; mas um instante em que todo o orgulhoso pensamento e todas as fórmulas prontas parecem não alcançar seu pretensioso objetivo. Justamente por que seu objeto não existe: uma fórmula por si só viável, constante, metodologia única de se redimensionar o real do mundo. Tratando da imagem do Brasil através de uma mensagem clara e negativista, Cronicamente transforma em absurdo o seu próprio discurso e a obviedade dos discurso cristalizadores de verdades chegando ao extremo inverso da unilateralidade (supostamente presente a um discurso radical-negativista). Chegando ao que podemos chamar de exagero, de aberrante... A aberração como a transformação da afirmação pessimista do filme, em um ciclo que termina por se auto-condenar. Um filme odioso, irritante, cujo o maior mérito é o de conseguir que, diante daquele ataque argumentado e incisivo, pensemos o que há em Cronicamente que nos parece tão equivocado. O sarcasmo do filme serve justamente como essa ferramenta de desafio ao público: sei que discordas desse alarmismo, sei que discursas o discurso do otimismo desenvolvimentista pois então, antes de comprar essa bandeira (ou aquele adesivo socialmente engajado) aprenda a discordar de mim e a argumentar sobre seus atos. As suas certezas otimistas, assim como o absurdo das minhas idéias pessimistas, podem ser tão ou mais frágeis se não repensadas por dentro de si mesmas. . Ao contrário do niilismo de que alguns defensores e outros detratores do filme acusam Cronicamente, o que há, é um estímulo potencializador de um pensamento para o Brasil que fuja do solucionismo, que fuja das fórmulas: explicar é uma forma de acomodação. Um pensamento e uma postura que venham de dentro da própria vivência do país. Valores como liberdade, diversidade, direitos humanos, tem de deixar de ser tratados como se tratam os dez mandamentos, como se tratam os dogmas religiosos: não podem ser impostos sobre uma sociedade como uma espécie de padrão de qualidade estatisticamente mensurável. Têm de ser pensados através de sua própria construção criativa, potencializadora de inviabilidades e de erros, mas também criadora do que é novo, do que realmente transforma. Niilista, pelo contrário, é justamente a postura social-desenvolvimentista que toma conta do pensamento antropológico, sociológico e político brasileiro e que (justamente visando a criação desse padrão unilateral de melhoria social) exclui e limita a realidade do país ao tentar encaixá-la nesses perigosos bolsões de "entendimento". Cronicamente é uma provocação à utopia do entendimento, fazendo uma análise cínica da situação social brasileira, ele ridiculariza o próprio ato da compreensão global e abre portas para questões que vão além do pragmatismo de resultados e das ações regadas de viabilidades... Assim como o Santo Forte de Coutinho, o filme de Bianchi vai contra o tratamento do país como uma realidade compreensível em um só estudo, em um só pensamento. Mesmo que a obra-prima de Coutinho tenha dado alguns passos adiante , chegando mesmo a praticar essa resposta positiva e não limitadora, Cronicamente faz o papel ( dentro da atual safra de filmes brasileiros) do descontrole, do grito de desvalorização dos pré-valores. O filme de Coutinho é discreto e revolucionário (como o são os filmes de Kiarostami e de parte da instigante cinematografia iraniana) mas, num imaginário tão imerso em valores morais e padrões de comportamento globalizáveis, uma bomba irritante e equivocada como Cronicamente, pode justamente abrir o vácuo das discussões e do pensamento que veja, por exemplo, em Coutinho (ou nos iranianos...) algo mais do que "pobres bonitinhos e bons". Que falem da urgência de se deixar a busca pela cristalização de identidades de lado - para que se possa repensar o país em suas atitudes, em seus gestos, em sua continuidade cotidiana - não mais em seus estereótipos de nação. * * * Em defesa da fragilidade, do defeito e do inviável, Cronicamente Inviável ( mais uma vez) é um grande filme. Felipe Bragança
Tem algumas coisas
que eu queria discutir e esclarecer. A primeira coisa, já que fui
eu que disse que o filme é fascista, sem se dar conta, é
que não vou realmente me preocupar em analisar ponto a ponto a
capacidade do filme em mostrar o "povo" sujo, e sobre a "nossa"
preferência por um "povo" bom. Por quê? Ora, Felipe,
o "povo" não existe... ninguém sabe como o "povo"
é ou o quê o "povo" quer.... e afirmar o contrário,
Felipe, é fascista... Daniel Caetano Que
tal assistir a um filme onde a história é contada cronologicamente
ao contrário, com cada seqüência terminando onde a seqüência
anterior começa ? Onde a realidade é fragmentada e permanece
indefinida, o tempo e a memória dominados pela subjetividade ?
Onde nada é o que parece e onde causa e efeito são permanentemente
deformados? Que tal um filme que transforma o espectador em co-participante
da trama e prisioneiro de uma estrutura cinematográfica geradora
de tensões da primeira à última cena ? Que obriga
a um exercício estressante de memória e a uma atenção
permanente no fio da história, a ponto de sentir-se à beira
da exaustão mental quando o filme finalmente termina ( e a história
realmente começa) ? |
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