Equívocos da mitificação:
Onde a Terra Acaba, de Sérgio Machado


Mário Peixoto em Onde a Terra Acaba de Sérgio Machado

Abrindo a versão carioca do É tudo Verdade 2001, e fechando a paulista, Onde a Terra Acaba tem com certeza (em contraponto às suas boníssimas intenções...) mais defeitos do que acertos. Apresentado antes da sessão de abertura como um trabalho inteligente e criativo (onde a figura e a obra de Mário Peixoto seriam revistas de forma a reconstruir a imagem desse "mito injustiçado" do Cinema Nacional), o filme, pelo contrário, recai nos velhos e mesmos equívocos que, a meu ver, vêm nebulando a relação Cinema Brasileiro-Limite desde sua "redescoberta".

Batizado com o mesmo título do segundo e interminado filme de Peixoto, o documentário de Sérgio Machado, já se inicia explicitando aquilo que será sua principal arapuca: o excesso de reverência, de verdadeira tietagem com que o diretor tenta recriar a figura de Peixoto – tentando "revelar" a suposta genialidade introspecta do diretor. Ao contrário da sensibilidade anunciada antes da exibição de seu documentário, Sérgio Machado pesa a mão em diversas passagens e erra feio em uma tentativa de mimetizar a poesia de Limite: não são poucos os planos de nuvens e árvores-ao-vento que refiguram imagens significativas do filme de Peixoto, tentando recriar a atmosfera do filme.

Desse modo, pretendo levantar aqui quais os pontos cruciais que acabam por diminuir (e mesmo minar) as potencialidades criativas do filme de Machado. E discutir, em parte, as amargas origens desses tiques-nervosos interpretativos que vêm condenando Limite (e outros cânones da cinematografia brasileira) a um estranho limbo de cinema (tema tratado em meu texto da última edição de Contracampo), a uma perigosa intangibilidade estéril...

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Um dos maiores e mais gritantes sintomas do equívoco de Machado, e aquele que me provocou maior inquietação, se encontra justamente num dos supostos momentos altos de seu filme: os fragmentos nunca dantes vistos do original de Onde a Terra Acaba, inacabado por Peixoto.

Tendo já assistido aos fragmentos em sessão fechada da Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM), em meados do ano passado, fiquei extremamente surpreso e decepcionado com o material do documentário. Por quê? Pois conheço os fragmentos, e o modo como foram apresentados por Sérgio Machado fizeram-nos apenas uma sombra do material completo e silencioso que assisti na sala da cinemateca: Editados, ritmados em uma viciada montagem videoclípica – que chega mesmo a terminar um belíssimo plano em chicote (movimento lateral abrupto da câmera) antes de sua integridade – os fragmentos do filmes estão ainda mais fragmentados! Numa aparente tentativa de limpeza estética (a integridade dos fragmentos apresenta momentos de imagem mais desgastada pelo tempo), o que Sérgio Machado parece querer é apresentar um material como aquilo que ele não é! No desejo de tornar a beleza desses fragmentos um algo intocado, uma beleza pura, Machado se esquece da própria integridade que um plano cinematográfico carrega em si mesmo. Repito: Machado não seleciona planos dentre os existentes (o que seria um ‘pecado’ menor), ele realmente reedita alguns planos dos fragmentos em busca de uma cadenciada apresentação romantizada. Seu excesso de cuidado com a imagem de Peixoto parece não permiti-lo mostrar a irregularidade fantástica e os desgastes das imagens por muito tempo esquecidas... Machado, em sua manipulação impensada, preferiu um obtuso fade out e um off explicativo ao invés de nos mostrar a incompletude inexata do fragmento completo!

Um absurdo se lembrarmos que Machado conhece – e se diz admirador incondicional de Limite – através do trabalho de restauração de Saulo P. de Mello. Trabalho este que (embora possa ser alvo de diversas críticas, tanto de Mário Peixoto quanto de profissionais da área de preservação) tem o feliz cuidado de, em uma passagem totalmente perdida do filme, colocar uma cartela negra com uma descrição da ação antes presente – isso é, uma restauração que não visa a estética da pureza mas um profundo respeito com a obra original. Pois Sérgio Machado esquece tudo isso em seu filme e desrespeita Peixoto em sua integridade (chegando mesmo a colocar ruídos de água diegéticos – vejam só! – numa imagem de Limite onde a Mulher 1 observa o mar...). Essas tentativas de tornar ainda mais belas imagens que, por si só, já o são, acaba por cair nessa perigosa licença poética onde Machado tenta não nos falar da beleza que vê em Limite mas reproduzi-la, imitá-la como uma tiete que não percebe que suas hipérboles elogiosas há muito se perderam do objeto de sua adoração... Machado quer fazer poesia com imagens onde ela já está, onde não há espaço para mais poesia...

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O tratamento formal dado às imagens de Limite se repete no tratamento voltado à biografia do diretor: Mário Peixoto, ao invés de servir de ferramenta para uma desmistificação criativa do mito do filme, acaba por ser engolido pelas imagens de seu próprio filme e transformado em mito ainda maior.

Estereótipo do criador introspectivo, do gênio incompreendido, o Peixoto criado por Machado é uma caricatura de gênio, uma figura misteriosa de onde a beleza de Limite parece ter brotado como fruto de uma divina inspiração... Peixoto, o gênio, o homem por trás de Limite, é novamente engrandecido (ou, a meu ver diminuído) como um curioso e introvertido criador – cuja obra derivaria de uma educação européia e de um inegável talento! Um talento que parece inerente a Peixoto, um talento colocado como uma sensibilidade excepcional.

A grande maioria das palavras de Peixoto presentes no documentário é proveniente de seu diário na adolescência e narradas de forma emocionada pelo ator Matheus Nachtergaele. As palavras adolescentes do jovem Mário são transformadas em documentos de uma personalidade única e especial que, fortalecida pelas imagens de nuvens, marés e árvores-em-ventania, tentam dar a Peixoto um caráter quase mágico, sacralizado... E dão. Os depoimentos (em especial o de Walter Salles), da mesma forma, procuram sempre uma peculiaridade elogiosa, um aspecto ainda mais especial de Mário Peixoto.

Por outro lado, o pouco que é dito pelo próprio Peixoto no filme, vai justamente contra esse endeusamento que Machado dá a seu personagem: Mário se mostra como um senhor cansado, contanto estórias de uma juventude repleta de lembranças boas e ruins – são palavras de uma vida vivida, palavras que ficam destoantes ante a elevação poética que o documentário quer fazer de tudo o que diz respeito a Peixoto. Aliás, o melhor momento do filme é, a meu ver, justamente um trecho pré-realizado no curta O Homem Morcego (de Ruy Solberg – 1980), onde Mário, diferentemente de todo o culto misterioso em torno de si, descreve diante da câmera o que seria a passagem final de A Alma Segundo Salustre (roteiro inédito de sua autoria): essas palavras, o modo como as exprime, é a maior documentação da figura criativa de Mário Peixoto. Aquela espontaneidade vivaz e vibrante ao relembrar suas imagens nunca realizadas, nos fala muito mais sobre o homem e o cineasta do quê todas as tentativas de definições poéticas que Machado insiste em discorrer a cada plano de seu filme.

Chega a ser pedante a edição de imagens que mistura os depoimentos de ex-empregados do Sítio do Morcego (onde Peixoto viveu na velhice) com imagens da coleção de arte que Mário organizou em sua casa. Comentários sobre seus costumes de jardinagens parecem querer ser tratados como indícios de sua personalidade meticulosa e exata... Todos os atos do diretor seriam frutíferos e fontes dessa beleza interior enigmática que Machado acredita, e quer nos fazer acreditar, era a grande marca do diretor.

Mesmo o fracasso de Peixoto, na tentativa de repetir o feito de Limite na grande produção que seria Onde a Terra Acaba, é passível de tornar-se um evento causado pelo encontro mágico de duas grandes personalidades: Peixoto e Carmen Santos. Repetindo o mesmo discurso da década de 30, encontrada em revistas como Cinearte e A Scena Muda, Machado acaba por menosprezar os aspectos complicadores de se levar uma grande produção dos anos 30 para uma locação natural arredia como era a Marambaia daqueles tempos. A dificuldade que era ritmar o trabalho do jovem Peixoto e as exigências de uma grande produção, estrelada por uma diva do star system brasileiro...

Machado prefere centrar sua visão no suposto encontro de um grande gênio criativo e uma superestrela geniosa como a explicação maior para o fracasso... Fotos de época, encontradas nas mesmas revistas que vendiam essa mesma imagem romântica do evento, insinuam como Onde a Terra Acaba foi um processo muito mais complexo do que o mero embate entre duas fortes personalidades: o clima da restinga, a dificuldade de transporte, a falta de conforto, o trabalho pesado... Elementos presentes na criação de Limite e que, em Onde a Terra Acaba pareciam ainda mais árduos para toda a equipe... Uma foto encontrada numa edição de A Scena Muda mostra uma imagem simbólica e instigante: uma enorme fila de dezenas de malas, maletas e containers, abarrotados com o figurino da estrela Carmen Santos, é puxada da água ao set da praia da Marambaia como a imagem clara de um naufrágio...

O que não se pensava na época (e que Machado insiste em não pensar) é que talvez toda a força daquele fenômeno chamado Limite não estivesse na figura isolada de seu diretor, mas nos pequenos detalhes de uma circunstância de realização especialíssima. Que a força de Limite não era a de um homem (Peixoto) sendo genial APESAR de todas as limitações de sua juventude, APESAR de se filmar no Brasil, APESAR de se tratar de uma produção simples criada entre amigos. O que não se via era que não havia esse APESAR, não havia resultado APESAR das circunstâncias, mas CONSECUTIVAS a elas e ATRAVÉS delas – Limite é Limite por causa de toda a sua gênese e não por obra e graça de um gênio ou dois (incluindo o fotógrafo Edgar Brazil). O fracasso de Onde a Terra Acaba , portanto, não pode ser simplificado como fruto desse desentendimento entre duas psicologias misteriosas. Uma espécie de "jogada de marketing" do início do século XX, e que Machado insiste em repetir remodelada.

Assim, do mesmo modo que Limite é fruto de uma totalidade especialíssima, o poder criativo de Peixoto não pode ser resumido enquanto a interioridade de um personagem único. O Mário Peixoto cineasta existe justamente enquanto realização, enquanto filme, enquanto presença ativa – por isso a força de seu depoimento sobre Salustre.

Quando o foco se perde do processo criativo e recai sobre um discurso dos dons e dos talentos, o resultado é uma perda de força, é uma mumificação das imagens. São as imagens criadas por Peixoto que carregam sua força, são os fragmentos de Onde a Terra Acaba que falam mais sobre o que poderia ter sido o filme... Quando Machado tenta resumir essa força em imagens poéticas que sintetizem o sentimento de Peixoto (aliás, o uso do PB no documentário acaba por confundir as imagens recentes com as originais de Limite), seu documentário se enfraquece. Se Machado tivesse ao menos nos permitido, imersos no silêncio da sala, assistir àqueles fragmentos da forma como foram encontrados: como imagens vivas e novas aos olhos do espectador... Mas não: preferiu um falar em off sobre as imagens, preferiu cortá-las onde seu bom senso estético bem entendesse, preferiu relegá-las a uma perigosa aura de passado distante: "vejam só o quê ele fez"...

Machado não reaviva Peixoto pois não pensa em reavivar suas imagens e os modos de criação que o levaram a Limite. Acaba por fazer um resumo, uma definição enigmática de um homem, um mito genial cercado de "causos" e manias... Um objeto sagrado e distante, coisa de um tempo passado intocável, impensável, estéril...

O que nos resta é isso: admirar esse passado e sentir saudades do que nunca vivemos?... É isso?... É mesmo só isso o que podemos fazer?... Cacá Diegues fala (no documentário) da dívida de nosso Cinema com Limite, eu repito: a dívida de nosso Cinema é com toda a sua própria história!

Machado (de forma bastante atrapalhada) ao menos coloca Peixoto mais uma vez sob os holofotes – o que pode ser mais uma boa chance de, através de seus próprios erros, repensarmos esse triste limbo mitológico a que temos relegado Limite e tantos outros feitos essenciais de nosso cinema. Um cinema que não se sinta (como já disse em Contracampo 27), órfão de si mesmo.

Felipe Bragança