Uma vez na vida: Gimme Shelter


Gimme Shelter de ALbert Maysles, David Maysles e Charlotte Zwerin

Existem sessões de cinema muito especiais, que fazem por uma noite com que o cinema seja um fato único, adquirindo um certo teor teatral. Igual àquela sessão, não haverá outra. No Festival do Rio BR 2000 houve pelo menos duas sessões assim, a de Polyester de John Waters num Odeon lotado, com direito a Odorama. A de Dançando no Escuro, única sessão do filme no Festival. Ou uma sessão de Aviso aos Navegantes no CCBB com a prsença na platéia de Emilinha Borba e Adelaide Chiozzo. Ou na Mostra de São Paulo a sessão no Cine Sesc de Branca de Neve. Ou uma inesquecível sessão de Plano 9 do Espaço Sideral no Estação Botafogo 3, numa Mostra Banco Nacional, com direito a assobios, gritos, apitos, "olas" e tudo mais. Ou a primeira exibição no Brasil de Priscila, no Paissandu, com Laura de Vison e tudo mais. Se puxarmos pela memória, estas sessões aliás não são tão poucas assim, eu posso citar pelo menos umas 3 dezenas de momentos inesquecíveis na sala escura (e falando apenas daqueles causados pelos filmes, é claro...). Obviamente, o filme que está sendo exibido é o mesmo que já era antes daquela sessão. O que acontece é um clima, uma energia da junção filme-público que dificilmente uma sessão comercial regular num multiplex ou mesmo num cinema de arte pode repetir. As pessoas lá presentes sentem que estão participando de um evento único.

Sexta feira, 6 de abril de 2001, meia noite. São Paulo, SP, Cine Sesc, festival É Tudo Verdade. A única exibição em São Paulo de Gimme Shelter, dos irmãos Albert e David Maysles e Charlotte Zwerin. Já ao longo do dia sabia-se que não seria uma sessão comum, pois nas salas do festival toda pessoa que se encontrasse perguntava: "E aí, meia noite lá?" A fila antes do filme era enorme, e o clima de apreensão era claro. Uma vez tomando a sala, as pessoas foram se sentando nos corredores, ficando em pé no fundo, aglomerando-se no bar. O crítico Inácio Araújo, que já é avesso a uma confusão para ver um filme, foi um dos que se acomodou no carpete do Sesc. Era uma ocasião única.

Começa o filme. Para quem não conhece o Cine Sesc, é necessário um parêntese. A sala em São Paulo é, das que eu pude conhecer (e confesso que só conheço salas do Rio, SP e Recife) a melhor sala de exibição que existe. Ela consegue unir conforto (as poltronas são uma delícia), qualidade de projeção (a tela é enorme – ver um filme em scope é uma aventura) e som, com um quarto critério que não se explica nem se constrói: charme. Seja pelo bar, seja pela sua história com os cinéfilos, o fato é que a aura da sala é, sem dúvida, especial. Fim do parêntese. Começa o filme. De cara uma surpresa em parte: o som está ainda mais impressionante do que se poderia supor, sendo um filme de 1970. Claro que há um trabalho de cópia nova, remasterização, etc, mas ainda assim (e eu assisti o filme ao lado de um técnico de som), era impossível não soltar "ohs" a "ahs" a cada música, a cada cena.

Mas, o fato é que se o clima era especial, nada aconteceria se o que estava na tela não correspondesse. Mata-se um clima com a mesma facilidade com que se cria. A bem da verdade, a platéia não estava preparada para o que iria assistir, e grande parte do impacto da sessão veio disso. Imensamente jovem, de pessoas que realmente não conheciam o filme, e na maioria nem sabiam a história de sua realização, eram fãs de rock prontos para assistir um show dos Rolling Stones em sua melhor fase, curtir a música, gritar, bater palmas, cantar. E eles até fizeram isso, mas não por muito tempo.

O fato é que Gimme Shelter não é um clássico do documentário à toa. É claro que os Maysles podem ter dado a mais que necessária sorte de estar no lugar certo na hora certa (mas e o que mais faz um documentário), mas isso não explica o seu filme por si só. Trata-se de um prodígio de filmagem misturado com um prodígio ainda maior de montagem, criando um filme cujo impacto dificilmente se traduz em palavras. É o retrato do colapso de um sonho, do início do fim, por assim dizer, sem em nenhum momento tomar um ponto de vista moralista. É na verdade um documentário sobre o fato de que juntar milhares de seres humanos desordenamente num mesmo local numa mesma hora é ter acesso ao que de mais ensandecido o instinto humano produzirá, para o bem e para o mal. Claro, os que queiram ver no filme um documento sobre os poderes malignos do rock’n’roll também podem, mas isso seria além de simplório, emburrecedor. Mas quem poderia culpá-los se, com idéias preconcebidas, vêem a explosão de violência durante "Sympathy for the Devil"?

Para quem não sabe a história, os documentaristas filmam uma parte de uma turnê dos Stones que termina com um concerto de graça em São Francisco, no qual, entre outros incidentes, um homem é morto esfaqueado na multidão, cena captada pelas lentes dos cineastas.

Falar sobre o filme é falar sobre um concerto de rock filmado de uma forma como nunca foi vista nas telas. É falar da capacidade dos câmeras de criar imagens belíssimas, assustadoras, e ao mesmo tempo completamente significativas. Retratando toda a atmosfera do local, que mistura paz, amor, e ao mesmo tempo apreensão e a sensação da inevitabilidade da tragédia. Registra como o sonho de uma geração, representado tradicionalmente por Woodstock, de música, sexo, paz e muitas drogas se depara com todos os problemas inerentes ao próprio ser humano e à organização social. Mostra um tempo em que rockstars já eram rockstars, mas faziam concertos sem aparato médico, sem segurança, sem infra estrutura alguma. Onde um cachorro podia de repente ser flagrado cruzando o palco inadvertidamente. Especialmente para os que viram os shows recentes dos Stones no Brasil, ou do U2, etc, trata-se de uma impensável realidade na qual o astro ficava no palco a menos de 3 metros do público, e no mesmo nível praticamente.

Mas, falar sobre o filme é essencialmente falar sobre o poder dos diretores de construir sua narrativa. Gimme Shelter talvez seja um dos melhores filmes de suspense da história do cinema. A montagem consegue criar tamanha expectativa mostrando primeiro os Stones numa moviola revendo as imagens, e partindo para o que funciona de fato como um "flashback", no qual se constrói toda a narrativa daquele concerto, desde as primeiras negociações aos problemas, até as expectativas. Mostra a violência surgindo nos shows de abertura (há uma cena impressionante de um guitarrista espancado no palco!), constrói com tintas assustadoras a chegada em borbotões de pessoas ao local, as filas de carros vistas do alto. Pára por minutos para mostrar o clima no local, o sexo, as drogas que complementam o rock’n’roll. E, finalmente, chega no concerto dos Stones que completa o quadro com uma das sequências de suspense mais longas e elaboradas do cinema. Eles encerram o filme com a saída do público, os Stones na moviola, todos parecendo igualmente aturdidos. São inúmeros planos silenciosos formando no imaginário do espectador um verdadeiro ensaio visual sobre o ser humano, que explica mais do que inúmeras teses sociológicas o que foram os anos 60, como eles se transformam nos 70, e de que forma isso nos traz ao hoje. Que eles tivessem a capacidade de realizar este filme com esta profundidade de análise aparentemente instintiva é absolutamente estarrecedor.

Mas e a sessão? Pois então, aquele público excitado do início se deliciou com algumas músicas de outro show mostrado na abertura, se deliciou vendo quão genial Tina Turner era na companhia de Ike (os problemas em casa são outro assunto...), gargalham com a fina inteligência do advogado dos Stones negociando o show com o dono do espaço onde ele se realizou. Mas, lentamente, na própria platéia começam os sussurros e o incômodo. E, breve, o silêncio. O final do filme é acompanhado com uma nuvem de tensão no ar do Cine Sesc como poucas que já senti num cinema. Na saída, o público que esperava uma diversão musical e light na sua sexta feira antes de se dirigir ao boteco ou danceteria mais próximos, está claramente chocado, uma mescla de maravilhado com o espetáculo cinematográfico com revoltado por se sentir enganado no seu programa. Em suma, uma sessão inesquecível de um filme extraordinário que, se visto em condições normais já é fora de série, mas naquele dia e local... bem, só quem lá esteve pode dizer. Meio como é a sensação na saída de um grande show de rock.

Eduardo Valente