É Tudo Verdade: panorama


Southern Comfort de Kate Davis

A cada ano, o É Tudo Verdade cresce mais. Isso acontece, inclusive, de uma forma esquizofrênica porque acaba só exibindo cada programa uma vez, usando mais de uma sala, o que torna impossível ao seu espectador que acompanhe o evento completo. Como em todo Festival deste tamanho torna-se importante então um olhar mais global que, embora corra o risco de uma certa superficialidade, permita que se perceba nas obras, pelo menos nas das principais sessões, o que se destacou do resto.

Competição Internacional

Na Competição, como de praxe, estavam alguns filmes brasileiros, entre eles os já discutidos em Contracampo, Babilônia 2000 e O Chamado de Deus. Não foi exibido o argentino La Televisión e Yo. Tomando os outros filmes como base, pode-se perceber uma dificuldade constante na produção documental que é escapar das algemas das fórmulas fáceis, que parecem cercar o realizador e impedir que vejam a melhor forma de abordar seu tema, ou pelo menos a forma que represente um interesse maior ao espectador, que muitas vezes acaba esgotado na maratona de filmes, procurando algo de novo. Isso inclusive pode explicar a vitória de Sacrifício, que é abordado em outro texto. Com todas as suas falhas, o filme possui uma forma atraente, seja pela sua competentíssima pesquisa, seja pela sua capacidade de criar um "thriller" documental. Claro que trata-se de um filme problemático, especialmente em suas conclusões, mas pelo menos ele tenta fugir da mesmice.

Mesmice esta que acometia uma série de filmes da mostra, como: À L’Abri du Temps (de Stéphane Drolet – Canadá), um ensaio que até poderia se fascinante sobre o papel do tempo na vida, mas que ao longo de uma hora e vinte torna-se um ensaio involuntário sobre a dificuldade de se ficar este tempo sentado numa sala assistindo o filme; Ácratas (de Virginia Martinez – Uruguai), que conta uma interessante "nota de rodapé" da história da América do Sul, mas o faz de forma absolutamente educativa e didática, quando o próprio tema parece gritar por mais atenção; ou Kindergarten (de Victor Kossakovsky – Rússia), que também parte de premissa curiosa, as relações "amorosas" entre crianças no jardim de infância, mas rapidamente torna-se um longo "home video" sobre como são bonitinhas e complexas as criancinhas.

Um outro filme tenta escapar a esta mesmice, Grandfathers and Revolutions (de Peter Hegedus – Austrália), tomando a História como investigação a partir de um ponto de vista absolutamente pessoal. O diretor é neto do homem que ficou conhecido como aquele que levou as tropas soviéticas a invadirem a Hungria em 1956. Ele vai visitar e entrevistar o avô, tentando lidar com o complexo enredamento de relação pessoal e histórica com uma figura. Sem dúvida, aprendemos bastante sobre a História húngara, e até que o filme possui alguma tensão, mas o diretor perde o fio da meada na pessoalidade da questçao e, sem perceber, deixa de lado as implicações mais interessantes de seu tema. Ao invés de discutir como uma pessoa pode ser sim um "vilão histórico" e isso não muda o fato de ter uma família, ser um avô ótimo, e quão complicada é esta distinção, ou se é que ela existe, o diretor entra num transe onde o que importa é inocentar o avô das acusações. Uma vez que ele conseguiu, o alívio! Mas, tudo bem, esta não era a principal questão, pelo menos não para o espectador, se sim para o diretor. Mesmo se ele fosse um calhorda (e aí o filme não se pergunta isso): muda alguma coisa a sua visão do "seu avô"?? Desta forma, o filme perde a chance de mergulhar muito mais fundo do que poderia fazer.

Havia então dois filmes (com a lembrança, sempre, de Babilônia 2000) que escapavam das amarras: um curta e um longa. O curta era Viena, de Audrius Stonys (Lituânia). Quem conhece o trabalho de Stonys, já várias vezes exibido no Festival, e quem conhece o cinema lituano na sua pequena, mas marcante produção, sabia o que esperar. Dentro da discussão "o que é o filme documentário", os trabalhos de Stonys sempre se localizam a um pé do ensaio poético, ou mesmo da ficção, tal seu cuidado de composição. Neste filme não é diferente: ele filma no seu tradicional preto e branco de impressionante beleza o dia de uma garotinha, em completo silêncio, closes dela em casa, no carro, indo com o avô comer numa lanchonete. Nos primeiros 10 ou 12 minutos a sensação é de estranheza: trata-se de uma ficção? Trata-se de um ensaio sobre o olhar infantil? Como em uma boa narração, o espectador fica em suspenso. E, no final, a revelação: aquele é o dia de visita na prisão, e a menina está indo ver a mãe, presa. Tudo em silêncio completo, até um plano geral do portão da prisão se abrindo, ela entrando. Um dos mais contundentes retratos da solidão, sem a necessidade de uma só palavra.

O outro filme é o americano Southern Comfort de Kate Davis. Davis tem a sua disposição um dos principais componentes de um bom documentário: um ótimo, e até onde eu saiba inédito, tema. Mas, isso todos os outros acima tinham e quase todos estragaram. O que sobre em Davis é a capacidade narrativa (tão própria do cinema americano) de tornar este tema em um filme. Tomando emprestado ferramentas da narrativa ficcional, mas fazendo-o com grande respeito e paixão mesmo pelo seu tema, Davis mostra a vida de um grupo de pessoas no interior do Texas, onde 3 delas são transexuais. Há aí dois aspectos de possível "drama", no sentido mesmo de conflito: o interior do Texas não é exatamente um local dos mais liberais, e os transexuais são, ao contrário do que é geralmente retratado, mulheres que fizeram operações e infusões de hormônio para se transformarem em homens. Claro que, com toda a morbidez desta frase, ajuda muito o filme de Davis que um destes personagens, e seu personagem central, esteja além disso morrendo lentamente de câncer. Mas, aí a grande sacada: Davis consegue fazer de uma história destas nem um dramalhão explorativo, nem um libelo panfletário. Trata-se apenas da vida de algumas pessoas, e pronto. Este posicionamento é muito ajudado pela simplicidade e acima de tudo pela forma alegre de enxergar a vida do seu protagonista, que impede sempre que o filme se perca. São uma hora e meia onde se é introduzido a uma realidade desconhecida, onde se aprende sobre ela, e onde até mesmo se desenrola uma narrativa. O que mais pode se pedir de um documentário?

Competição Brasileira

No caso da Competição Brasileira havia uma desigualdade muito grande, mais uma vez, entre as intenções e os resultados. O maior exemplo disso é, sem dúvida, o próprio vencedor da Mostra, A Negação do Brasil de Joel Zito Araújo, do qual se trata em outro texto nesta pauta e também na cobertura do Festival de Recife. Mas, se este é o principal exemplo desta "corrente", está longe de ser o único.

Claro que a avaliação das obras passa, necessariamente, pela ambição de seus projetos. Assim, o fato de Carrego Comigo, de Chico Teixeira, deixar ao final a sensação de uma divertida observação do cotidiano dos gêmeos, é porque não se pretende a mais do que isso (com exceção a um ou dois momentos mais sérios, que indicavam inclusive um outro possível caminho a seguir). O filme é quase anedótico em torno de um tema que parte de uma impossibilidade inicial: quem não é gêmeo, na verdade, jamais entenderá o que significa sê-lo. Já quem o é, não precisa de mais explicações, simplesmente é. Então é difícil o filme ultrapassar esta barreira, e escapar do anedótico. Da mesma forma, se O Presente dos Deuses de Andréa França e Ana Teresa Renauld parece um ensaio quase estudantil sobre um tema menos interessante, é porque é isso mesmo que ele é, inclusive de acordo com a declaração das duas. Não é jamais o caso de se julgar um filme "ruim" por causa de aspectos puramente técnicos, até porque no filme o problema principal não é a "pobreza" dos equipamentos, mas sim a falta de cuidado com que são usados. Com isso, tudo que o filme consegue são algumas declarações curiosas, na seara do "interessante como estes pobres são capazes de pensamento abstrato". Um momento é verdadeiramente inquietante: os vigilantes dos museus (tema do filme) face a face com os artistas, discutindo impressões sobre a arte destes.

Mas, se estes filmes não chegam a incomodar pelas suas ambições, digamos assim, "menores", o mesmo não acontece com Julliu’s Bar, de Consuelo Lins. Em si mesmo um projeto ambicioso pelo fato de tentar retratar o universo dos travestis na Baixada carioca, o filme só traz mais expectativas pelo fato da diretora ser uma das colaboradoras de Eduardo Coutinho em Babilônia 2000. Bom, se ela aprendeu ou contribuiu alguma coisa com aquele filme, este aqui não demonstra nada disso. Ao tentar o mesmo "approach" do coletivo de entrevistados que significam algo no total, e ao tentar seguir a mesma idéia de colocar a equipe de realização em cena, a diretora parece querer comprovar que se há algo que faz os filmes de Coutinho excepcionais não é a fórmula, e sim o talento. Sem conseguir extrair uma só revelação interessante de suas entrevistas, sem conseguir fazer de nenhum dos seus personagens "pessoas", e sim objetos, sem conseguir fazer da inserção da equipe em cena jamais algo de orgânico e necessário, sem conseguir ultrapassar o caráter de "National Geographic" das relações humanas ("oh, que fascinante os gnus enquanto se reproduzem..."), o filme termina num grande vazio. Claro, veja-se que partir de uma comparação com Coutinho chega a ser injusto, e também que solucionar todos estes problemas não é fácil. Mas isso não muda a incapacidade do filme que, talvez, se tivesse de fato escolhido ficar no Julliu’s Bar de seu título, seria bem melhor. Ou ainda se dispensasse cenas completamente constrangedoras como a do velho travesti mostrando seu quarto: porque? O que aprendemos sobre ele ali? É um exemplo de vários outros momentos iguais no filme, que, honestamente, passada meia hora de exibição torna-se simplesmente repetitivo. A medida de que não é um bom filme é a constatação que já se viu alguns episódios melhores de Documento Especial e Globo Repórter.

Igualmente problemáticos são os filmes que simplesmente parecem estar em desacordo com seus temas, ou que pelo menos não fazem justiça a eles. Há uma desassociação entre forma e conteúdo. Enquanto A Composição do Vazio de Marcos Enrique Lopez (também discutido mais longamente no Festival de Recife) não atinge nem de longe a importância que parece dar à obra de seu objeto (o filósofo pernambucano Evaldo Coutinho), Seu Nenê de Carlos Cortez sofre do didatismo extremo e quase desinteressante, no formato entrevista-memórias, que nunca chega a dar a verdadeira dimensão do seu entrevistado. São casos claros de forma em desacordo com o conteúdo.

O único filme na mostra que parece equacionar de forma perfeita a questão objeto-formato, é Onde a Coruja Dorme de Márcia Derraik e Simplício Neto. Ao mergulhar no universo de Bezerra da Silva e alguns de seus compositores, os diretores têm o grande mérito de tornarem-se "invisíveis" para dar ao seus objetos a condução do documentário. Claro que isso é uma falsidade de argumentação, já que simplesmente por tornar dezenas de horas de material em 50 minutos, a condução deste processo é toda deles, cineastas. Mas, o talento reside em achar neste material o que realmente faça parecer com que a frase acima seja verdade. Ou seja, não é apenas um filme "sobre", mas um filme "com" seus objetos de atenção. Claro que ajuda o fato destes terem tanto a dizer, tanto a mostrar. Mas isso não é por si só um valor que exclua o grande trabalho nas entrevistas, na captação de imagens, na edição, porque grandes temas, como já vimos, não se tornam grandes filmes sozinhos. O fato é que dentro do universo destes filmes, talvez este seja o mais bem sucedido pela sua capacidade de apresentar algo novo, sem ser falso em relação ao seu tema.

Eduardo Valente