Tirar
do prosaico a poesia:
Belfast Maine,
de Frederick Wiseman
Belfast,
Maine de Frederick Wiseman
Engraçado: Belfast,
Maine é o mais recente filme de Frederick Wiseman. Por outro
lado, foi o primeiro exibido no Rio durante o Festival. Existe nisso um
paradoxo que se revela fascinante: embora para entender de fato este último
filme do diretor seja necessário conhecer seu universo artístico
e, acima de tudo, suas obsessões e intenções como
documentarista, por outro lado o filme possui de tal forma todas as chaves
para o trabalho de Wiseman de forma condensada, que ele pode do mesmo
jeito servir de resumo ou de introdução ao seu cinema.
Alguns disseram que em Belfast,
Maine não acontece nada. É verdade, se pensamos no que
seja considerado geralmente um fato no jargão cinematográfico
(seja ele documental ou de ficção). É verdade, nada
acontece, somente a vida. Wiseman escolhe uma cidadezinha minúscula
no pouquíssimo conhecido ou badalado estado do Maine, e com ela
tenta traçar um microcosmo dos EUA. Ou seja, nada de novo para
quem conhece seus outros trabalhos, onde cada instituição
(a previdência, a escola, o hospício, a delegacia, o tribunal)
servia ao mesmo propósito. Mas, a grande sacada aqui é que
a "cidade" engloba todos estes fatores, e muitos outros. E mais:
não há a necessidade de fatos tão dramáticos
quanto os dos filmes anteriores. A impressão que fica é
que no que os outros filmes são um retrato da América pelo
que ela possua de mais extremo, este o é pelo que ela possui de
mais banal. Uma fábrica de batatas, uma assembléia municipal,
um dia na escola, um dia na pescaria. São quatro horas disso, como
poderiam bem ser oito, como poderiam ser trinta, como poderia ser a vida
inteira, que é a grande metáfora do cinema de Wiseman.
Mas, o que continua impressionando
mais é a capacidade de filmar cada mínimo evento com tamanha
curiosidade, com tamanho interesse, com a habilidade de inserir o espectador
no mecanismo do que é mostrado. Wiseman consegue solucionar a equação
paixão-distanciamento de uma forma completamente desconhecida no
cinema documentário, mantendo-se à parte sempre, sem intervenção,
entrevista, trilha, narração, mas mesmo assim completamente
inserido no que filma, tornando cada plano significativo, emocionante.
Não há como explicar isso de outra forma que simplesmente
constatar: vai saber filmar assim lá longe.
Muito se disse que o cinema
de Wiseman é o cinema do retrato das instituições.
Besteira. É um cinema das pessoas e pelas pessoas, que se usa das
instituições como instâncias nas quais as pessoas
se relacionam e estabelecem as regras de convívio. Mas, são
sempre pessoas, o tempo todo, o foco do seu olhar. Que é intrinsecamente
americano sim, ao ponto de atingir a universalidade pelo regional. Assistir
um filme de Wiseman é mergulhar no que se chama de "Americana",
ou seja, tudo que compõe o imaginário folclórico,
mítico e rotineiro da vida nos EUA. E que se expressa na verdade
em cada gesto individual que a câmera brilhante de seus filmes cisma
em não deixar escapar. Sua montagem trabalha com a dilatação
de tempos e a síntese de forma quase imperceptível, chegando
a enganar alguns que vêem nos filmes uma "casualidade"
que não existe, porque cada corte faz evoluir a percepção
do espectador do fenômeno global. Assim, se o filme ao seu final
parece não ter completado uma evolução narrativa,
o espectador evoluiu ao longo dele, e este é o grande golpe que
quem tiver olhos entende. Geralmente aparecem no fim dos filmes de Wiseman
referências ao seu início. Mas, nunca como índices
de uma circularidade onde "nada muda". Pelo contrário,
o que ele nos mostra é como mudam as coisas quando nosso olhar
muda. O que vemos no final pode ser a imagem que víamos no início,
mas se nosso olhar não é mais o mesmo, como pode a imagem
ser a mesma. Este é um velho golpe do cinema de ficção
que Wiseman absorve e desenvolve no documentário. E o fato é:
não se chega ao final de Belfast, Maine como se estava no
início, como não se chega ao fim de uma retrospectiva de
Wiseman como se começou. O verdadeiro documentário é
o da mudança do olhar do espectador.
Eduardo Valente
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