Amy Heckerling, cáustica e perspicaz


Robert Romanus e Jennifer Jason Leigh em Picardias Estudantis de Amy Heckerling

Há, grossomodo, duas tendências principais na comédia. Uma é mais generosa, terna com seus personagens, e geralmente moralizante, às vezes até um olhar um pouco desesperançoso para a realidade: tendência Capra ou das comédias românticas em geral; um riso quente, embora com um certo ressentimento embutido. Outra é ácida, impiedosa com seus personagens. Não é que ela seja maldosa: é que simplesmente tudo é objeto de piada. Cinema anarquizante, um riso gélido de constatação que a realidade não pode ser muito melhor nem muito pior do que aquilo que aí está: tendência irmãos Marx, Leo McCarey, Monty Python... riso de contestação dos valores. O cinema de Amy Heckerling está definitivamente do segundo lado.

A primeira coisa que vem à cabeça é a pergunta que Alicia Silverstone faz a seu pretendente: "Você acha que eu sou apenas uma cabeça-de-vento com um cartão de crédito?" É lógico que ele responde que não, mas até o fim do filme a diretora já deu motivos suficientes ao espectador para que ele respondesse por si próprio à pergunta. Mas por mais que ela se entregue ao saudável hábito de fazer rir de tudo e de todos, ela não deixa jamais de manter um cuidado para que seus personagens sejam jamais absolutamente ridicularizados – mesmo risíveis, Heckerling mantém sempre um carinho por seus personagens. Basta lembrarmos de Jeff Spicolli, garotão de praia que vive fumando maconha num furgão e chegando atrasado na sala de aula. Ou de Mr. Hand, professor de história que não consegue dar a sua aula em paz justamente por causa de Spicolli, que chega atrasado mais de uma vez e que, em determinada ocasião, até pede uma pizza a ser entregue em plena sala de aula. A diretora equilibra as situações de forma que se possa fazer graça dos dois, mas que ao mesmo tempo os dois mantenham uma certa dignidade. A aposta é clara: fazendo graça de todos, exime-se de fazer moral às custas dos personagens.

Iniciando sua carreira com o longa Picardias Estudantis (Fast Times At Ridgemont High), em 1982, Amy Heckerling conseguiu de primeira um grande sucesso de público, mas igualmente algumas críticas severas, especialmente a de Roger Ebert, crítico conservador mais importante dos Estados Unidos. Mesmo assim, conseguiu uma boa acolhida por parte de uma certa imprensa mais liberal, que exaltou as qualidades antropológicas do filme. Sabe-se lá devido a quê, ingressou em comédias mais ancoradas no imaginário da classe média americana (dirigiu um dos filmes da série Férias Frustradas em 1985) e achou um teto nas comédias infantis (Olha Quem Está Falando, Olha Quem Está Falando Também), nunca muito bem sucedida enquanto autora. Foi só com Clueless/As Patricinhas de Beverly Hills, que ela pôde voltar a seu tema mais bem realizado e às obsessões de escola ginasial. Em 2000, realizou o invisível Loser.

O que marca no estilo de Heckerling (que escreveu o roteiro de Clueless, adaptação da Emma de Jane Austen para os dias de hoje) é o fino traço caricatural, o trabalho com os clichês (o surfista, a menina virgenzinha, a dondoca com o cartão de créditos, o menino nerd...) que entretanto acaba revelando alguma coisa ali na superfície que nos faz identificar com esses personagens e acabar gostando deles, desejando seu bem. Um doce elogio do derrisório que seduz pela simplicidade e pela autenticidade. Se John Hughes tem o mérito de desfazer os estereótipos dos personagens, criar uma fábula moral onde no fundo se descobre que na verdade nunca se é tão diferente quanto se pensa, Amy Heckerling tem uma outra relação com o estereótipo. Ela os admite, toma-os como ponto de partida, e tenta fazer ver como na verdade essas idéias feitas representam apenas o modo como os jovens gostam de ser vistos (o estereótipo do jovem bem-sucedido profissional e sexualmente [Judge Reinhold em Picardias Estudantis], a loura patricinha do shopping [Alicia Silverstone em Clueless], a garota experiente [Phoebe Cates ainda em Picardias]). No fim, a imagem inicial que se tem deles vai por água abaixo (o percurso de Judge Reinhold a esse respeito é exemplar)

Mas provavelmente o que mais intriga e apaixona quando se assiste a um filme de Amy Heckerling é o elogio do menor, uma gentil aceitação das pequenas vidas, dos pequenos momentos, logo da frivolidade, da derrisão, de tudo que se passa entre dois momentos importantes. A esse respeito, seu trajeto em As Patricinhas de Beverly Hills dá conta de seu desejo do menor, do irrelevante. Quando Jane Austen virou moda em Hollywood, todos se apressaram em serem mais realistas que o rei. Razão e Sensibilidade, Emma, todas obras para serem levadas a sério, provavelmente com o nariz mais em pé do que os próprios livros da escritora. Com Amy Heckerling, justo o contrário: ela pega Emma, sim, mas não para fazer uma comédia "de época"; ao contrário, ela prefere readaptar a intriga da casamenteira de Jane Austen aos nossos tempos, e faz de Clueless um filme adolescente, gênero intelectualmente desacreditado. Sabe aquele tipo de gente decrépita para quem a cultura das letras merece ser toda colocada em pedestal? Pois é, Amy Heckerling é aquela que dinamita o pedestal porque descobre que ele é falso, que ele falseia a vida dos personagens porque lhes tira a vida. E, se há um elogio a fazer a diretora de As Patricinhas de Beverly Hills, é que seus filmes podem ser deliciosamente menores, mas eles têm uma vida que poucos filmes conseguem ter.

Ruy Gardnier