Vidas Secas

 

Crítica publicada no Jornal das Letras, edição de novembro de 1963

Vidas Secas constitui a melhor obra na filmografia de Nelson Pereira dos Santos, a depuração máxima do seu processo técnico que se inspirou nitidamente no surto do neo-realismo italiano. Isso, desde a primeira fita, Rio Quarenta Graus, embora uma realização desigual, já revelando o seu talento em uma ou outra seqüência. Na época, essa fita andou sendo proibida e combatida por objetivos políticos, sendo até taxada de comunista – era um dos lazeres a que ainda se permitiu o conservadorismo reacionário. Logo depois, tivemos Rio Zona Norte; e, apesar de se manter no âmbito na desigualdade, denotava-se um maior aperfeiçoamento nas soluções artesanais. Terminada essa produção, o diretor permaneceu um certo tempo parado em suas contribuições. Teria realizado Vidas Secas antes, mas surgiu uma série de contratempos e, então, fez primeiro Mandacaru Vermelho, um filme bastante menor, porém sofrendo o ingrato handicap das dificuldades de produção de haver se constituído mesmo numa espécie de película tapa-buraco entre um projeto e outro.

Vidas Secas somente agora chegou, mas valeu a pena esperar. Não vamos, de início, dizer, fazendo eco a um coro tipo torcida organizada, que se trata de um dos maiores filmes de todos os tempos. Seria até injusto para com o cinema, pois os excessos com a falta de senso das medidas só ajuda para prejudicar a necessária compreensão do público, no tocante aos problemas de ordem estética relativos à linguagem cinematográfica. Nem é preciso falar em reforma agrária a fim de tocar os espíritos menos sensíveis ao tema que se descortina durante a fita. Aliás, quando Graciliano Ramos escreveu o seu romance, no qual se baseou o filme, a solução da calamidade subumana do nordeste não era especificamente enquadrada nos prismas da reforma agrária que hoje tanto se fala mas não deixam ainda fazer. O estilo seco daquele que é sem nenhum favor um dos mestres da nossa prosa contemporânea constatava uma dada realidade – o impasse dos personagens devorados pela miséria a fome o êxodo constante – nada mais. Nélson Pereira dos Santos soube encontrar o mood apropriado a fim de proporcionar efeitos cinematográficos análogos ao do romance. E foi buscá-lo mediante uma apropriação muito feliz, consciente ou intuitiva, daquilo que já se denominou como os tempos mortos criados por Michelangelo Antonioni, especialmente em L’Avventura e O Eclipse. Enquanto o cineasta italiano usa o vazio com relação ao impasse de uma elite entologicamente alienada, e nosso transplanta os efeitos similares de duração para dois seres que representam um tipo de vida das massas relegadas à extrema penúria: o homem no campo. Não são poucas as passagens de Vidas Secas que se exasperam na técnica desses vazios estáticos, mas intrinsecamente plenos de significação e que possuem como matriz a já famosa cena dos rochedos em L’Avventura.

O homem, a mulher, os filhos e o cachorro. Nos dois protagonistas adultos, surgem Átila Iório e Maria Ribeiro. É difícil dominar os atores e este é um dos problemas cruciais de direção nos cinemas brasileiros, mesmo porque com a intimidade com o idioma nas maiores nuances, dá maiores oportunidades à crítica de ser implacável em seus juízos no tocante a esse setor. Ainda mais, levando-se em conta que, no caso em foco, os personagens estão constantemente sob a mira da câmera. Nélson Pereira dos Santos soube contornar o âmago do problema através de uma solução bastante inteligente e que não deixa também de ser criativa. Os protagonistas, durante largos trechos do filme, não falam, a câmera e uma voz off se encarregam de situá-los, isto é, formular o seu comportamento. Na hora dos diálogos, a contenção é flagrante. O resultado: Átila Iório, compõe razoavelmente seu tipo, saindo às vezes fora do tom, sobrecarregado por uma dose de inadequação de seu físico para o papel. Maria Ribeiro, sai-se melhor, fornecendo uma interpretação até certo ponto elogiável, embora os altos e baixos. Os meninos, menos solicitados, colaboram nas composições plásticas dos quadros estilizados do sofrimento ou da poesia de um áspero cotidiano. Com isso, o cachorro leva a melhor – pois é um animal bem treinado e amparado pela extrema felicidade do fotógrafo ao captar suas expressões, principalmente, no desfecho, à hora da morte, a morte seca que os insere no destino dos seus donos.

Aliás, mencionar o trabalho fotográfico da fita corresponde admirar a extrema noção em jogar com as tonalidades, os enquadramentos nada forçados, a angulação instigante. Não há dúvida, a faixa visual consiste um dos pontos máximos , a provar que, em matéria de cinema, haja visto outras experiências semelhantes nos últimos tempos, já ultrapassamos uma das fases radicais do b-a-ba na sétima arte. Entrosada com a fotografia, a fixação do décor, tanto nos exteriores, como nos interiores, evidencia uma assimilação convincente, funcional. Os tipos humanos que compõem o supporting-cast, e assim também esse décor, vêm manejados com excepcional destreza: o guarda, o patrão, o companheiro de prisão, etc.

Vidas Secas – porque negar? – representa um marco em nosso cinema. Não tanto um marco de invenção, como é Os Cafajestes, porém uma afirmação poderosa do domínio do instrumento fílmico. Menos espetacular que O Assalto ao Trem pagador, menos successful que O Pagador de Promessas, menos corrido que os filmes de cangaceiro – mas, por outro lado, muito mais uno, conciso, depurado e, mesmo, despretensioso. Não estamos falando de uma obra-prima, mas de uma obra profundamente séria, e cuja emoção é primordialmente estética. A reforma agrária, acreditamos, virá depois, com o sr. Brizola, com o sr. Arrais ou com o próprio João Goulart, e, quem sabe? (o país é uma caixa de surpresas) com o Congresso. Para Nelson Pereira dos Santos registramos o legado em termos de cinema e cujo teor, já nessa altura, é respeitável – ainda mais quando se leva em conta o nosso subdesenvolvimento na indústria cinematográfica. Se ninguém aqui ainda é Resnais, Welles, Hitchcock, Antonioni ou Truffaut não é por falta de genialidades, é por causa de motivos econômico-financeiros mais do que óbvios.

José Lino Grünewald