O real sem aspas
Uma conversa do cineasta Eduardo Coutinho com Ana Maria Galano, Aspásia Camargo (sociólogas), Zuenir Ventura (editor de Isto é) e Claudio Bojunga.


Elizabeth Teixeira e sua família em cena de Cabra Marcado...

(Entrevista publicada originalmente na Revista Filme Cultura, edição 47, abril-agosto de 1984)

Zuenir Ventura – Quanto tempo você levou fazendo esse filme?

Eduardo Coutinho – Em 1962, filmei um comício em protesto à morte de uma pessoa que eu não conhecia e que, aliás, era pouco conhecida no Brasil. Em João Pessoa, soube que era um líder camponês, João Pedro Teixeira, assassinado por policiais militares a mando de um grande proprietário de terras nordestino. Eu nunca filmei na minha vida, nem antes nem depois, mas naquele dia eu tive que filmar. O cinegrafista contratado pelo CPC era da Agência Nacional, um senhor de idade que ainda por cima estava doente e tal. Então eu filmei e deu certo. Em maio de 1962, eu voltei para o Rio de Janeiro e o Carlos Estevão, que era o presidente do CPC, me escolheu para dirigir um longa-metragem. A idéia inicial era fazer um filme baseado em O Rio, de João Cabral de Melo Neto. Seria o percurso do rio Capibaribe, com os poemas sociais de João Cabral, mas sem o nascimento da criança, sem o final de Morte e Vida Severina. O João Cabral, que inicialmente havia concordado com o projeto, nos mandou um telegrama dizendo que não estava mais de acordo. Nunca perguntei a ele por que fez isso. Mas pode ter sido o receio dele de poder ser acusado de comunista. Ele é um diplomata e talvez não tenha julgado oportuno se envolver com uma produção do CPC da UNE. E aí partimos para a outra historia.

Zuenir — Foram 22 anos de filmagem?

Coutinho — Foram 22 anos, se contarmos a partir da filmagem do comício. Se contarmos a partir do primeiro plano rodado, foram 20 anos.

Aspásia Camargo – Você tem notícia de um filme que tenha levado tanto tempo para ser concluído?

Coutinho – Em circunstâncias exatamente iguais, não. Há filmes que são interrompidos, mas não manu militari como no nosso caso. Há também casos em que a pessoa volta no tempo para recuperar imagens de um filme de uma outra pessoa, para ver como essa coisa evoluiu e se transformou no tempo. Li também sobre situações heróicas como a de um turco que roteirizou e dirigiu um filme, da cadeia. Evidentemente, do meu ponto de vista, Cabra Marcado Para Morrer não é uma curiosidade etnográfica, ou acadêmica.

Zuenir — Você disse que fez um filme para se livrar dos seus fantasmas. Que fantasmas são esses?

Coutinho — Dos fantasmas, eu nunca vou me livrar. Falei desse fantasma de um copião, de um negativo que ficou 20 anos na minha casa, ou na casa do David Neves. Era um filme apodrecendo, uns papéis... eu tinha de dar a volta por cima nesse fantasma. Esse é o lado mais psicológico. Afinal, por que a coisa ficou tão viva na minha relação com as pessoas com quem eu tinha trabalhado? Porque elas também tinham seu fantasma — que foi 1964. Agora, eu não sabia até que ponto o fantasma do filme era importante para elas. De repente, um cara lá no sertão guarda um livro esquecido, como um negativo. Porque se o filme inicial não significou muita coisa para Elizabeth, havia aquele garoto de 20 anos que guardou um livro deixado pela equipe, como se fosse um negativo. E ai, o filme e 1964 são uma coisa só.

Zuenir — Como um negativo?

Coutinho — O João José — o ex-garoto — diz que logo depois da partida dos soldados ele tentou ler o prefácio. Ele diz que mal conseguiu porque era uma linguagem muito difícil. Diz que achou "a história do livro contada no prefácio parecida com a história de vocês". Esse cara que mora numa casa arrebentada, típica de um camponês daqueles, e mantém numa maletinha um livro em tão bom estado durante 17 anos, é algo extraordinário. E ele guardou o livro para devolvê-lo. Naquele livro guardado estava a esperança da nossa volta.

Aspásia — O interessante é que o método que você usa não é um método que você escolheu intelectualmente. Foi a própria vida que o determinou. Você não quis, por um lado, fazer um filme etnográfico. Por outro, você também não quis montar um filme-dentro-do-filme. Você usou oportunidades, não é?

Coutinho — Em agosto ou setembro de 1979, quando o Miguel Arraes voltou do exílio e tinha um festival de cinema em João Pessoa, arranjei uma passagem e me mandei para lá. Fiquei lá um sábado e, no domingo, fui ao Recife assistir ao comício da chegada do Arraes. Não fiz nada de mais pelo filme, mas procurei me informar se o filho mais velho de Elizabeth estava por lá. Comecei a ver as possibilidades concretas de se fazer o filme. Nesse ano e pouco que levou até eu rodar o primeiro plano, eu pensava sobretudo em como construir o filme. E tive a idéia de reduzir o copião para 16mm e passar para os autores de 64. Ora, no momento em que decido fazer isso tenho a consciência de estar fazendo algo que tem um significado estético — as pessoas vêem um filme no qual elas aparecem. Era bom porque estimulava, mas era também, de minha pane, como uma prestação de contas. Aliás nenhum dos camponeses me pediu qualquer prestação de contas.

Ana Maria Galano — Você queria confrontar o seu fantasma com o fantasma deles?

Coutinho — Não pensei muito nisso... Zuenir — Você escreveu um roteiro?

Coutinho — Não escrevi nada. Mas tinha na cabeça o objetivo de contar algumas histórias. E muitas perguntas. E num caderno, anotados muitos dados sobre os personagens e a história das ligas.

Ana Maria — Acho importante falarmos do compromisso moral do Coutinho, da sua persistência, dos obstáculos que ele enfrentou, do preço que ele pagou. Mas não acho que as coisas sejam tão fortuitas assim. Elas têm uma construção, mesmo não tendo um roteiro. E seria interessante saber como foi feito o primeiro filme e, em seguida, o filme em sua versão final. Inclusive esse negócio de as pessoas guardarem coisas não ocorreu apenas neste caso. Há exemplo de gente que, percorrendo o interior do Brasil, chegou a encontrar camponeses já muito idosos que guardavam dinheiro para a volta da Coluna Prestes — um dinheiro desvalorizado, sem uso, guardado em máquinas de costura, etc... E uma história de esperança. No caso do filme é diferente — você sabia que estava lidando com emoções estéticas. Gostaria de saber como você vê seu projeto inicial naquele momento em que o CPC também tinha o projeto Cinco Vezes Favela? Será verdade a hipótese, levantada pelo Sérgio Augusto, de que se o primeiro filme tivesse sido terminado ele teria virado uma mera curiosidade de cinemateca?

Coutinho — Talvez não fosse um bom filme — se é que essa expressão tem sentido — mas certamente seria um documento sobre um momento que não volta mais. Seria, por exemplo, o único filme feito com o movimento organizado da gente do campo. O que o Sérgio quer dizer com isso, eu acho, é que teria sido um filme precário. Eu não sabia dirigir os atores, o diálogo era banal e o roteiro era quase todo baseado nas informações de Elizabeth sobre a vida de João Pedro Teixeira, sem invenção. O filme é uma coisa, a realidade, outra. E o roteiro do filme original tinha mil "barrigas", ele terminava duas vezes, era convencional, com personagens muito tipificados — tinha o cara exaltado, o covarde, o cara de bom senso. Eu ia pecar por isso. Tanto, que a única cena do filme original que eu dublei era a única cena que talvez indicasse o melhor caminho de se fazer um filme. Nela, os diálogos foram feitos pelos próprios camponeses. Não digo a estrutura, mas os diálogos. E eles disseram coisas que um roteirista jamais poderia escrever.

Claudio Bojunga — Você não ia escrever um filme sobre a esperança e terminou fazendo um filme sobre o medo?

Coutinho — O segundo é sobre os dois: o medo e a esperança. O primeiro filme seria um filme tradicional, feito de fora para dentro. O filme atual é um filme que sabe que é de fora para dentro, um filme que sabe que não é feito pelos camponeses mas que, ao mesmo tempo, não os paternaliza ou, pelo menos, tenta não paternizá-los ou idealizá-los. No que a vertente populista idealiza, a outra vertente despreza. No primeiro filme estava a minha ignorância da cultura que gerou as ligas. Mas não havia só otimismo. Inclusive o filme terminava com um enterro. No máximo, Elizabeth olhava para a câmera, o que era um vício daqueles tempos, mas terminava com um enterro.

Aspásia — O primeiro era político-panfletário. Apenas você não poderia dar uma visão otimista porque estava lidando com camponeses. E não era possível ter uma visão otimista do populismo pelo viés do camponês. Agora, quando a gente vê o filme antigo dentro de um outro filme, a gente tem a impressão de uma visão mais experiente, mais cética, mais complexa. Os personagens não são apenas políticos, vítimas situadas de forma maniqueísta. São seres humanos de carne e osso, extremamente complexos, com suas famílias, relações pessoais, contradições. Retorno então à pergunta: da primeira vez, "de fora para dentro", seria talvez mais fácil ter tido uma atitude confiante. Já mais tarde, na segunda versão, você parece muito mais consciente da fragilidade das coisas — é urna visão nova sobre o sofrimento daquela gente, e que talvez não estivesse na primeira versão.

Coutinho — É difícil responder porque, afinal, eu não completei a primeira versão. E há mil coisas ligadas àquele momento, em 1964, que eu esqueci. Coisas que são lembradas por certas pessoas, mas que eu esqueci, ou talvez tenha bloqueado. Foi um roteiro que eu havia feito em duas noites, e seria um filme precário nesse nível. Eu tinha uma grande insegurança em relação ao cinema. Seria, como disse, um filme acadêmico com diálogos de gente que eu não conhecia suficientemente. A esse respeito há um episódio bastante significativo ocorrido com uma pessoa da equipe. Ao chegarmos em Galiléia, essa pessoa encontrou com alguns camponeses e, imitando o sotaque nordestino, convidou: "vamo tomâ uma cachaça aí". Os camponeses obviamente aceitaram, mas quando a pessoa foi embora, eles me perguntaram: "quem é esse galego aí?". O episódio é marcante para mim porque ele exprime a inutilidade de se fingir uma linguagem ou hábitos que não temos. Aliás, é uma ilusão que nunca tive. Você pode fingir um sotaque, mas você jamais será igual ao outro — no sentido de classe e cultura. Essa ingenuidade eu não tinha. E também estava sabendo das contradições que existiam no interior das ligas camponesas. Mas eu não tinha a experiência que tenho agora.

Zuenir — Inclusive no campo do jornalismo e do telejornalismo...

Coutinho — O problema do autoritarismo no filme de ficção pode ser mais facilmente superado do que no documentário. O problema é, aliás, mais claro no documentário: você vai falar com pessoas de outra classe social e se pergunta como chegar a elas. E uma relação de pessoa a pessoa. Da primeira vez eu fui com as idéias prontas, com coisas que "tinham de aparecer". O que eu aprendi na televisão, por exemplo — porque eu nunca tinha feito um documentário antes —, é que se você se posta a uma distância de três metros de seu interlocutor para não aparecer na imagem, você não está conversando com essa pessoa. Ninguém conversa a essa distância. Você tem de estar junto. Senão é como se houvesse uma barreira, a pessoa fala como se estivesse falando para a polícia ou para o "cinema", quer dizer, está prestando um depoimento. Mesmo procurando quebrar essa barreira, todo depoimento se parece com depoimento policial. Quando um operário no filme diz, por exemplo, que está satisfeito com seu trabalho na fábrica, ele está consciente de que está falando para mim e também para o "cinema". E a pessoa que vê bem um documentário percebe logo que aquilo pode não ser verdade. Mais: se ele se queixasse, eu não poria seu depoimento no filme sem a autorização dele. Tanto que, depois, eu voltei para filmar esse cara e ele me pediu: "por favor, não volte mais aqui, senão vou ser despedido". Os patrões estavam desconfiados e ele me mandou uma carta. Uma carta que tenho até hoje e que me parece fundamental. Depois dessa carta, se ele me tivesse dito que não gostava do trabalho dele eu não ia botar isso no filme.

Bojunga — Essas negaças pontuam todo o filme. Como no elogio histérico da abertura política feito pelo filho mais velho de Elizabeth, que tumultua a primeira entrevista. Mas, na última seqüência, a gente tem a impressão de que Elizabeth se solta e faz críticas políticas veementes porque não sabe que está sendo filmada, ou pelo menos gravada. Qual o limite entre as pessoas e as personagens?

Coutinho — Na minha opinião, se a última seqüência fosse feita com a câmera escondida, teria sido um troço eticamente errado. Eu nunca atuei com a câmera escondida. Apenas estava sentado na frente e o fotógrafo, atrás. A máquina era visível, ela não reparou porque era uma situação de despedida, o motor do carro já estava ligado, inclusive. Há também um outro momento em que Ehzabeth está totalmente livre, no segundo dia de filmagem. Eu vou chegando e ela está na janela. Tem duas câmeras filmando e ela simplesmente não vê porque estamos chegando. Quando você chega filmando, as pessoas às vezes ficam espontâneas. No final ela também está solta, não só pelo que ela diz, solta em seus gestos.

Ana Maria — Você não acha que ao dizer o que ela diz no final significa que ela reaprendeu a falar durante o processo das filmagens?

Coutinho — E um ganho de confiança...

Ana Maria — Mas também um reaprendizado. No início ela fala de coisas extremamente limitadas sobre sua presença ali. Há uma certa insegurança quando ela diz "agora já sabem que eu não sou Marta, sou Elizabeth". Aos poucos ela vai ganhando certas condições que lhe permitem retomar aquela linguagem política. E há outro fator: o tempo que a câmera e o gravador ficam ligados. Em certos momentos é quase insuportável o que acontece com as pessoas — quando choram diante da câmera, quando gaguejam. E você não limita os tempos, não corta, trabalha numa montagem em planos longos....

Coutinho — Eu e o Edgar Moura filmamos certos personagens continuamente, com um rolo de filme inteiro, de 10 minutos. E isso permite grandes atuações, de ator mesmo. Quem lembra o passado é tarnbém ator. Aquele cara que fala dos cubanos, do sotaque carioca, por exemplo, falou durante 10 minutos, sem corte. Guardei uns quatro. Outro exemplo: o ator que interpretava João Pedro no filme original. Tem aquela cena em que ele está com medo de falar. Foi um chassis inteiro, um plano só. A mulher de Caxias, idem. Procurei, o mais possível, o tempo real. O que eu aprendi fazendo televisão (não podendo usar na televisão) e pratiquei radicalmente no filme foi o seguinte: acabar com o fantasma — o entrevistador que não aparece, a voz em off, respostas sem as perguntas correspondentes, etc... Identificar o entrevistador situa um pouco essa pessoa, sua ideologia, sua classe social. E minha função é ficar olhando para os olhos dos entrevistados, não para a câmera.

Aspásia — Uma situação de parteiro...

Coutinho — O problema é que a gente tem uma relação a resolver com o entrevistado. E impossível ficar isento, a gente manifesta simpatia ou antipatia, disfarça etc... O câmera tem que pegar isso tudo e o Edgar foi formidável nisso. Mas eu não olhei para a câmera, durante as entrevistas.

Bojunga — A propósito da televisão, em seu filme não se trata de uma implosão da linguagem ideologicamente controlada de Globo Repórter?

Coutinho — Não sei aprofundar isso. Sei que a experiência na televisão foi utilíssima. Eu jamais poderia fazer o filme sem uma grande experiência no documentário, na reportagem, experiência que eu tive na televisão. Na televisão você tem condições de filmar muito, de captar o "real", de se aproximar das pessoas. Mas eu também sentia que o que eu fazia lá estava submetido a uma série de limites. Você não pode conhecer as pessoas porque tudo é feito muito rapidamente, hão limite da edição, pois ninguém vai falar três minutos seguidos. Mais importantes do que as limitações de ordem ideológica ou política, são as limitações de ordem estética, pois lá você não pode questionar o produto que você está fazendo. Aquilo que você faz não pode inclusive "aparecer como produto", mas como "naturalismo". O limite da televisão é o seu naturalismo. O repórter aparece como que para aprofundar a presença do "real", que é um real entre aspas e que nao é discutido.

Bojunga — Há essa ficção de que o documental é sempre o real, e a falácia de que a ficção não é verdade. Quais os limites entre documentário e ficção sob esse aspecto?

Coutinho — O que me ocorre agora é que o estatuto da imagem no documentário é dito verídico e o da ficção, não verídico. Isso é ambíguo.

Aspásia — Acho que você sentiu a impotência daquela primeira fase populista, na qual você tinha respostas prontas, em que Pedro Teixeira é um herói, sua mulher uma vítima, e a história será sobre os mártires da sociedade brasileira. No segundo momento, você chega modestamente dizendo eu não pertenço a este mundo. Para que eu saiba como as coisas funcionaram, eu tenho de ouvir todas as pessoas envolvidas, em seus vários percursos e opções: um aderiu, outro não aderiu; outro se converteu ao protestantismo, outro permaneceu fiel ao seu pensamento. A própria Elizabeth Teixeira é uma mulher que aparece com suas fragilidades humanas, suas fraquezas de mãe, uma mãe talvez não muito bem-sucedida. Acho que houve essa modéstia, que é a postura do verdadeiro historiador: eu não tenho a verdade, eu chego a ela através de mil caminhos. Para o documentário foi a televisão. E você teve de destruir a linguagem do documentário oficial. Destruir dialeticamente, ou seja, revelando o papel do entrevistador, se autodefinindo...

Coutinho — A picada que o filme abre, a meu ver, não é tanto o fato de a equipe aparecer — isto se faz muito. O importante, a meu ver, é que certas informações de texto e de estrutura do filme servem para indicar as condições de produção da "verdade". Quer dizer, hoje as pessoas falam dessa maneira, numa determinada situação; no dia seguinte, de surpresa, podem falar de outra maneira. O ator que faz o João Pedro, que tem medo, por exemplo. Constato que ele tem uma máquina na cara dele e tem o medo redobrado diante dessa invasão. O João Virgínio, que descreve a tortura — é claro que o que ele diz ocorreu —, mas ele fala 20 anos depois para um público habituado àquilo, e ele é um ator. É uma cena extraordinária de verdade e de atuação. E por que não? O Edgar Moura, o fotógrafo, lamentou não estar mais perto dele naquela cena. Pessoalmente acho que ficou muito melhor assim. Você não tem o rosto dele (aliás, ele está de óculos escuros). Além disso, a câmera trabalha em campo aberto e vê-se ao fundo um projetor, que é uma marca do teatro. É uma cena de teatro. E de verdade terrível. O que me irrita em certos livros de História e Sociologia é que não aparecem as pessoas, o cotidiano das pessoas.

Aspásia — O mais importante é a complexidade, porque ninguém tem controle sobre o resultado final. E cada um vê o filme de uma maneira. Teve alguém que disse que Elizabeth parecia uma mulher fria...

Ana Mana — Gostaria de saber como foi o seu trabalho com o Escorel. E falar da visão que você tinha na época do CPC e sua posterior evolução?

Coutinho — É pena que o Escorei não esteja aqui porque ele deve ter a visão dele. Posso dizer que trabalhamos em grande harmonia — ele foi fundamental, e não só no sentido profissional. Trabalhou e criou muito na montagem e no copidesque do texto. Quase nunca falamos sobre política ou estética — a gente se entendia, acho. A concepção do CPC era da arte como utensílio, como algo utilitário (o que era um absurdo). Era também a concepção do povo como utensílio, como puro instrumento da Revolução, etc... E eu já era um cara vacilante em termos de CPC. O fato de eu ter sido um pouco marginal no CPC e no Cinema Novo me serviu, de qualquer fora, para alguma coisa: ver mais claramente os erros que se cometeram, pois eu não estava empenhado numa posição, que, no fundo, desprezava a ideologia popular. Aliás, essa postura está nos documentos, não tanto nas obras concretas, que às vezes foram interessantes. Resumindo: o negócio terrível era querer ser "porta-voz do povo". No filme, tento dar àquelas pessoas, ao máximo, a voz que elas podem ter, mas não estou negando que é um filme. E o fato de dizer que é um filme dá uma cota de verdade maior. Ora, quais são as tendências nos documentários tradicionais? Uma, é captar o "real" justapondo entrevistas e sem fazer um texto, sob a alegação de que não se quer ser autoritário, de "não interferir". Isso é muitas vezes preguiça, ou medo de se definir. Você cria a ilusão de que a matéria bruta produz a verdade. A outra tendência é a do texto normalizador, a do texto autoritário, a voz em off que diz o que se deve pensar da realidade. Não digo que isso é desprovido de interesse por princípio — cada caso é um caso. Mas esses são os documentários tradicionais. Se é na televisão, o normalizador é o locutor. O locutor é a voz da televisão, do chefe, do modelo.

Aspásia — No seu filme o locutor não é um engajado profissional, nem um censor. Teu texto em off é histórico e eu sei como você procedeu com cuidado, com meticulosidade, checou as datas. E isso o que aparece na narração...

Coutinho — O fatual é importante. Acho que muito cinema-documentário que se faz por aí é meramente preguiçoso. A apuração da notícia na televisão foi para mim um exercício importante, mas o mais importante no meu filme não é o fatual. Não há adjetivos no texto. O texto não diz o que o espectador deve pensar. Dá o fatual e permite que as coisas saiam nos depoimentos, pela maneira como são articuladas.

Ana Maria — O filme incita a uma reflexão sobre um tipo de ficção em que as técnicas de agitação e propaganda estão muito presentes e uma reflexão sobre um tipo novo de documentário. Uma reflexão que só pode ser feita hoje, porque aquele primeiro filme não vai mais ser feito. Agora, a parte ficcional é um documento extraordinário sobre o CPC e o que era uma concepção de arte para o povo. Mas isso só se revela confrontado com....

Coutinho — Com a crítica concreta disso. Uma contradição do CPC era de que, por um lado, você tinha que vender um produto politizando, conscientizando aquele cara que era "vazio". Por outro lado, a empresa que faz esse produto tem que sobreviver. Acho que a televisão, em certo sentido, incorporou isso tudo e inverteu, criando a politização negativa, isto é, a despolitização. Eu pude pensar nesse assunto inclusive porque eu não vivo de cinema. A economia do cinema é tão trágica que muitas vezes impede as pessoas de pensar no assunto. Como trabalhei durante oito anos para um público de 40 milhões de pessoas, estou sequioso por ter agora um público de 100 mil espectadores.

Ana Maria — De alguma forma, você incorporou essa linguagem dos 40 milhões para falar aos 100 mil.

Coutinho — Se o filme for contraditório com o público a que ele se destina, é preciso que se saiba que isso é uma tragédia real.

Bojunga — Como vê o seu filme em relação aos outros documentários que estão sendo feitos? Você vê seu filme entrando no mercado tradicional de cinema?

Coutinho — Se quero ampliar o filme é porque desejo ampliar o público — não só em tamanho. O documentário é problemático porque se as pessoas não querem ver documentário no cinema é porque acham que já vêem documentário na televisão. E a televisão não vai passar esse tipo de documentário que eu fiz. Agora, repito que o documentário oficial não me interessa. Creio que tanto na ficção como no documentário devemos deixar que o público participe na elaboração da coisa. A ficção pode inclusive dar mais conta de um momento histórico do que um documentário. As coisas não devem se resolver na tela. Os "amanhãs que cantam" não resolvem.

Zuenir — A televisão não pode se reapropriar da sua linguagem? Sistematizá-la?

Coutinho — É possível. Esse negócio, por exemplo, de chegar filmando. A televisão incorpora tudo e em geral dilui as coisas...

Zuenir — Você teve alguns problemas éticos durante as filmagens, problemas que a gente subentende, há coisas que você omitiu da história...

Coutinho — Coisas ligadas a Elizabeth. Não posso falar disso, apenas se ela me der autorização...

Zuenir — O papel do filho mais velho, por exemplo...

Coutinho — É delicado. Ele é o primogênito.., só depois de todos terem visto o filme e tiverem me dado a autorização...

Zuenir — Mas você não acha que isso prejudica um pouco a compreensão das razões que a levaram a ficar 16 anos escondida, razões que não são apenas de ordem política...

Coutinho — As razões políticas bastariam largamente. Sei que há outros problemas de ordem pessoal. Se foram obstáculos para ela encontrar os filhos não sei. O fato é que eu não posso falar e não colocaria no filme coisas que eu não abordei com Elizabeth. Eu não censurei nada da ordem da política no filme. Eu não quis fazer uma obra de gênio, mas um trabalho com pessoas vivas. E todas as vezes que a gente trabalha com pessoas vivas, pessoas marginalizadas, você tem que saber o que elas topam ou não, você tem que manter uma relação honesta com quem você filma. Eu entrava filmando e ia entrevistando os filhos, eu posso entrar filmando pessoas da classe média? Então, são pessoas desprotegidas, e elas toparam. Todo mundo sabia que era um filme — ninguém disse para mim: não põe isso no filme". Mas, se dissessem eu não poria. Quando eu registro a resistência de alguém em falar eu estou expressando a verdade daquela pessoa, mas não estou prejudicando a vida dela...

Aspásia — É a primeira vez que se entra no universo camponês, não em seu naturalismo, mas em sua universalidade. No fundo não se trata sequer de um filme sobre o camponês brasileiro, o que já seria muito, mas sobre seres humanos, com essas mazelas todas nem sempre registradas pelo historiador. Mas há limitações do ponto de vista histórico: o filme não deixa claro o que Ehizabeth representou dentro do movimento camponês. Ela foi uma vertente do movimento, mas não foi o movimento. Ela foi muito contestada...

Coutinho — Aí há um negócio que é de estrutura: jamais quis fazer um filme que fosse uma análise do movimento camponês. Sobre as contradições entre os partidos e tendências. Também não pretendi que as pessoas reconstituíssem o passado, simplesmente porque é impossível reconstituir o passado, quis fazer algo sobre a memória do presente, como me disse um espectador. Nunca tentei recuperar na fala delas a reconstituição da integridade do movimento camponês e suas contradições — que eram também contradições da sociedade. O importante era a memória delas, falando depois da anistia e diante de uma câmera. O que é, afinal, um filme histórico? Você pode recuperar integralmente o que aconteceu? Nunca. As reconstituições são sempre falsas.

Zuemr — Em que medida as palavras de Elizabeth, elogiando a abertura de forma aparentemente forçada, não são determinadas pela presença do filho? Em que medida ela já não incorporou esse discurso?

Coutinho — É uma boa pergunta, que já me fizeram em São Paulo, em geral é a pergunta da emoção... Quando a filmei pela primeira vez estava claro que o filho estava lá para dizer isso. Ele começou esculhambando todos os líderes de esquerda daquele tempo, disse que nada prestava, etc... Em seguida, foi aquela postura: "mãe, fale da abertura política". Mas ela continuou falando de coisas fortes com o filho zanzando por ali. Aliás, na minha opinião, a melhor parte da entrevista é essa, feita na sala. O filho estava lá, mas havia um clima tensíssimo. A segunda parte da entrevista, no quintal, era uma situação mais de cinema, mais fria. Agora, quando eu vou embora e ela fala que não pôde lutar, que ficou escondida e em seguida elogia a abertura política, o Figueiredo, sem que ninguém lhe tenha pedido isso... é diferente. Existem dois momentos em que ela fala da abertura. No primeiro, ela é empurrada pelo filho. No segundo, com uma certa liberdade. Um ano mais tarde eu vou entrevistar a filha e, na carta que Elizabeth lhe mandou há uma referência à abertura. Está claro que é uma coisa que existe nela. Ela escreve: "meus filhos, filhos de uma raiz humana, do amor entre mim e seu pai, graças a essa abertura eu vou poder vê-los"... Eu aceito as contradições do discurso dela porque se a gente não aceitar as contradições não faz filme. Como podemos julgar o que pensa um camponês que está há 17 anos sem ver os filhos? Não é com o nosso critério. Para nós a abertura começou há mais tempo.

Ana Maria — Em 1979, João Virgínio tinha o mesmo discurso que ela. Seis dias depois da anistia ele dizia: "hoje, esse presidente que nos deu a abertura, etc...

Aspásia — O que chama a atenção é a relação de vassalagem, de dependência do camponês em relação ao poder central, como se ainda fosse o rei, uma relação mágica com o poder...

Coutinho — Isso é relativo. Você não pode julgar a fala dela como você julga a nossa, de intelectuais. E um julgamento de fora. A fala dela não está incluída para facilitar a liberação do filme. Ela está lá porque é real, e é um troço contraditório...

Zuenir — Uma denúncia importante do filme está na fala do João Virgínio, quando diz que foi torturado. Passamos 20 anos ouvindo que a tortura começou em 1968, como resposta à guerra revolucionária, aos terroristas, e aí houve o revide. E no depoimento dele fica claro que aquele pessoal começou a ser torturado em 1964.

Bojunga — A impressão é de que a tortura sempre fez parte do cotidiano deles, de que não é um fenômeno como nós o categorizamos historicamente. Daí eu ter falado em medo...

Coutinho — Essa presença do medo é muito mais difundida do que parece, não há medo apenas no meio camponês. Quando um camponês fala para um registro público desse tipo, é para ter ou não medo? Por que não reconhecer o medo? E uma história de sofrimento...

Bojunga — E há aquela frase genial dele: "não há nada como um dia depois do outro com uma noite no meio"...

Coutinho — É, as pessoas aplaudem. É uma frase que ele diz depois de falar na tortura, depois de cuspir. Mas não vale, a meu ver, só aplaudir essa frase. E preciso aplaudir — ou não — todo o seu discurso, que é: "não há nada como um dia atrás do outro com uma noite no meio. As graças de Deus estão caindo de hora em hora". E as pessoas nem sempre aceitam o discurso inteiro. Eu já ouvi gente comentando: "que alienação". A pessoa que acha isso, deve pensar: "como é possível acreditar em Deus numa situação dessas?" Fico furioso com essa coisa. Como se não houvesse esse sentimento religioso, de outro tipo, nos partidos que querem transformar o mundo.

Zuenir — A heroína do filme é Elizabeth, não o cabra do título?

Coutinho — As pessoas estão inclusive dizendo que o filme pode ter um certo sucesso fundamentalmente por causa de Ehizabeth e sua família. Se fosse um filme sobre o movimento camponês, sobre Galiléia, o filme não teria tanto impacto. Mas eu não pensava que a família fosse ficar tão importante quanto acabou ficando. Quando comecei a filmar nem sabia quem estava vivo ou morto. Sabia que tinha duas pessoas de Galiléia vivas e que Elizabeth estava escondida, provavelmente viva. Quer dizer que eu não podia construir um filme baseado em pessoas que eu não sabia se existiam ou onde estavam. Primeiro descobri Ehizabeth através de um filho. Depois descobri o filho com quem ela fugiu. Depois eu volto a Sapé e sei que vou revelar outra realidade da família dela. Eu pensava em falar com o pai. Havia dois filhos em Sapé, mas eu não previa que afinal filmaria oito filhos em 10. Quer dizer, eu não sabia como ia ficar essa constelação familiar, que ela seria tão forte...

Ana Maria — A Aspásia observou o caráter universal das personagens. Saindo do filme, eu ouvi pessoas comentando: "pena que seja um filme tão nordestino". Fico perplexa diante disso, afinal se a Aspásia falou como historiadora eu queria falar como socióloga. Na minha opinião esta família é quase que um protótipo da família popular: desagregada, com variadas ocupações, que não sabe se se encontra. Ora, isso não é uma coisa só nordestina, nem se encontra apenas no movimento camponês, nem apenas debaixo de um regime ditatorial, não acha?

Coutinho — Mas está certamente ligado ao desenvolvimento capitalista, sobretudo quando aplicado a um país como o Brasil. Eu tive que cortar, por razões de estrutura, alguns personagens que não estavam ligados diretamente à família de Elizabeth e que são interessantes sob esse aspecto: os filhos do ator que no filme original interpretava João Pedro Teixeira. Eram três filhos: um, metalúrgico; outro, gráfico; uma outra, operária numa fábrica de brinquedos e que adora os brinquedos que fabrica — essa coisa terrível da alienação de gostar dos produtos que se fabricam, etc... Esses filhos moram em São Paulo e não se encontram, um mora em Carapicuíba, a outra na periferia de Interlagos, etc... Essas pessoas trabalham muito, é uma situação muito diferente da situação da classe média. Aliás, é típico que alguns intelectuais gostem menos da parte final, quando entram os filhos. Se o filme tem muita aceitação é justamente pelo seu lado humano. Agora, o espectador que eu prefiro vê o lado humano implicado na luta de classes. E não como um negócio humanista entre aspas. E ou não é um episódio da luta de classes? Há certamente coisas que extrapolam a luta de classes, mas que não a excluem.

Bojunga — Entre o filme original e o filme final você não perdeu suas ilusões?

Coutinho — A palavra ilusão é boa. E um problema pessoal e histórico. Antes de fazer o filme eu me disse, e ingenuamente: "quero fazer um filme que seja a morte das ilusões" — um filme contra as ilusões. Ilusão é muita coisa, é ideologia que não se sabe ideologia, otimismo revolucionário entre aspas, etc... Na verdade, tolice minha: se você mata algumas ilusões, nascem outras.

Aspásia — Há uma informação fundamental nesse filme: a luta pelos direitos de cidadania. Está claro na maneira pela qual as pessoas falam do passado que estas pessoas são desprovidas de direitos. São como gado. Houve mesmo um caso de um camponês que foi ferrado porque desobedeceu seu patrão...

Ana Maria — Essa discussão agora é mais propriamente nordestina. Falava de outras dimensões que são partilhadas com gente que está vivendo conosco aqui no Sul, como porteiro, empregada doméstica, etc.

Coutinho — E há a mágoa de Elizabeth de ter sido abandonada pelas organizações nas quais batalhou ou pelos aliados. Certo, ela se escondeu, muita gente que podia ajudá-la estava presa, exilada, etc... De qualquer forma, quando a coisa estoura, os mais esquecidos são os desprovidos de capital social e cultural. Daí ela endossar num dado momento o discurso do filho, de que todos os regimes são iguais para o pobre...

Aspásia — Essa queixa é muito comum nos militantes — não só camponeses. Desde a década dos vinte, militantes operários se queixam de que suas organizações não os protegem.

Coutinho — Eu gostaria de que um troço também passasse nesse filme: a necessidade de se aumentar a responsabilidade do militante de classe média, do militante que não pertence a uma classe pela qual ele pretende lutar e que dá palavras de ordem, muitas vezes sem pensar na desigualdade das conseqüências para cada um.

Bojunga — Tudo gira em torno de João Pedro, que está ausente. Vemos seu túmulo sem nome, os elementos que criam uma mitologia...

Coutinho — Quando João Pedro morreu, ele já era conhecido na Paraíba. As pessoas que mitificam o homem são pessoas que não o conheceram.

Aspásia — Chama a atenção, que o único registro que se tenha dele no filme é sua foto, morto.

Coutinho — Também quando ele morreu nenhum jornal deu uma foto dele, vivo. A exploração da morte do militante é muitas vezes um troço meio manipulado. O importante era o cara vivo.

Zuemr — Foi isso que levou você a chamar o filme de Cabra Marcado Para Morrer?

Coutinho — Eu não sei dar título. Saber dar título é saber fazer publicidade, dar mensagens positivas. O título foi tirado do folheto do Gullar. Agora, voltando um pouco ao negócio da família, eu li outro dia um troço que me chamou a atenção. E que há um plano da História, dos grandes acontecimentos, das revoluções, e há a vida —o sujeito nasce, fica adolescente, tem filhos, morre —, os ciclos da vida e da morte. Este é o plano das sociedades arcaicas, de comunidades camponesas como havia no Brasil de há 20 anos, e ainda há hoje. E a mediação entre a vida e a História é a família. Isso é fundamental. A família, no filme, que à primeira vista parece menos "político" é, nesse sentido, fundamental, é mais essencial do que aquilo que é propriamente político. 1964 para aquele cara é o dia em que ele viu a mãe pela última vez. Assim como a guerra para mãe coragem é o dia em que morreu sua filha.