Perseguição e Assassinato de Glauber Rocha pelos intelectuais do Hospício Carioca, sob a direção de Salvyano Cavalcanti de Paiva


Glauce Rocha, Jardel Filho e José Lewgoy em Terra em Transe

(Originalmente publicado na revista Visão, sem data. Encontrado na pasta de Glauber Rocha do arquivo da Cinemateca do MAM)

Ópera atonal-surrealista. O tropicalismo é a essência do melodrama. Tragicomédia sem pouco siso. O riso, se houver, é bílis. Sem atos ou entreatos.

Cenário: O diretor, se tiver influência da vítima, pode mudar o cenário à sua vontade.

O autor, porém, recomenda:

"Qualquer cinema de Lívio Bruni. O fundo é uma tela branca, furada de bala e faca. Há manchas de ovos podres e tomates. Poetas, escritores, jornalistas, direita e esquerda festivas, com seus mais variados trajes, espumam verde. A massa, na porta, urra. Quando termina a projeção do filme Terra em Transe, começa o espetáculo. Salvyano, com duas pernas de pau, a fim de se destacar da multidão, avança célere. A massa muge, José Sanz surge, abre os braços e grita:

– Ninguém passa! Ninguém passa!

Silêncio. O autor (a vítima) entra e se deita numa rede amazonense que foi armada no meio do palco. Discretamente, começa a ler um livro do crítico francês Roland Barthes, Le Degré Zéro de l’Ecriture. Tempo. Levanta-se, encara a massa e lê: "Há artistas que preferem o perigo do estilo à segurança da arte".

E comenta:

– "Arte é Gide, por exemplo. Rimbaud é estilo".

É então, propriamente, que começa o espetáculo.

Salvyano, tirando as pernas de pau, pega um chicote e berra:

– Abaixo à inteligência! (aplausos)

UM POETA: – Não é homem!

UM ESTUDANTE: – Foi traído pela mulher!

UM ESCRITOR: – É ignorante!

UM JORNALISTA: – É corrupto!

UM MÚSICO: – Frustrado!

UM SOCIÓLOGO: – Exagerado!

UM ECONOMISTA: – Empírico!

UM PSICANALISTA: – Maldito!

UM ADVOGADO: – Ilegal!

UM PADRE: – Ateu!

UM POLICIAL: – Criminoso!

A MASSA: – Burro! Burro! Burro!

UM POETA: – Eu gostava tanto do Glauber, Pensei que ele tivesse uma visão poética da vida. Agora, nem posso ver o Glauber. Estou tão decepcionado!

UM CRONISTA: – O Glauber é muito mal humorado. A vida é bela, o Brasil é alegre. Será que o Glauber nunca viu o carnaval?

UM ESCRITOR JOVEM: – É um revolucionário de araque, vive se promovendo e tem problema de afirmação, é desonesto. Desonesto!

UM TEATRÓLOGO: Os diálogos são péssimos. Sem nuances. O negócio é Brecht. Não há progressão dramática. Psicologicamente, é impreciso; politicamente, confuso. Glauber Rocha é um mistificador!

UM MÚSICO: – Que idéia, usar Carlos Gomes! Carlos Gomes, onde já se viu!

UM CONCRETISTA: – Não há empolação bilateral. A perpendicular é obtusa e o choque se produz nas linhas curvas de Dib, mas falha na sincopação do Escorel. A voz, na reverberação sonora, poderia adquirir um equivalente mallarmaico mais ou menos intenso e comunicável. Por estas e outras é que a poesia não vai pra frente. E ainda cita Castro Alves quando devia citar Souzândrade.

UM ENSAÍSTA: – O irracionalismo é o vício pequeno burguês por excelência. Lucakz, Fisher e outros marxistas já disseram que o irracionalismo leva o artista a se opor dialeticamente à sociedade capitalista que o esmaga. Glauber Rocha representa o arrivista típico. É uma fraude. Fora do realismo crítico não há saída. E, além do mais, não conscientiza!

UM IPANEMA BOY: – Ora, conscientiza! O negócio é a bossa, sabe? E mulher. Filme sem mulher nua não dá...

MULHER INTELECTUAL: – As mulheres não vibram. São fantoches. E a Danuza é tão feia.

GRÃ-FINA INTELECTUAL: – Viu só o vestido dela? Horrível! Ah, eu nunca entraria num filme destes. Deus me livre. Sabe, a Danuza brigou muito com a Glauce. E a Glauce, Deus me livre! O Glauber pôs ela para fazer propaganda. Por causa de Glauce Rocha.

MOCINHA DE ESQUERDA: – E o povo? Glauber se fecha em sua torre de marfim, não sabe o que é a verdadeira mulher do povo, rebolando nas avenidas. Está por fora. Sabe, o Marx é que tinha razão!

CRÍTICO DE CINEMA: – Ah, como persegue o Khury! Se fosse o Khury que tivesse feito este filme já tinham matado o pobre. Mas, como é o Glauber, ainda fazem críticas amenas. Não aprendeu nada com o George Stevens.

OUTRO CRÍTICO: – É UM PLAGIÁRIO DE FELLINI!

OUTRO CRÍTICO: – Fellini, não. Buñuel. Buñuel e Godard!

OUTRO CRÍTICO: – Godard nos cortes e Fellini na composição. Mas o espírito é de Orson Welles.

OUTRO CRÍTICO: – O Moniz disse que não é imitação de linguagem. É dialeto mal cultivado!

OUTRO CRÍTICO: – Puxa, o Moniz é genial! Vou dar bola preta.

OUTRO CRÍTICO: – Eu também.

OUTRO CRÍTICO: – A culpa foi nossa. Vai ver, Deus e o Diabo é uma porcaria também.

OUTRO CRÍTICO: – Mas ele estava começando. Agora pensa que é gênio. Quer saber mais do que a gente.

OUTRO CRÍTICO: – Mas o Domingos acaba com ele. Gênio é o Domingos!

OUTRO CRÍTICO: – Não sabe nada de gramática cinematográfica.

CRÍTICA (histérica): – Bola preta! Bola preta! Bola preta!

(Neste momento, chega um grupo de velhos intelectuais, representantes da Academia Brasileira de Letras. Cada qual já tem um título assegurado na História. Não se manifestam. Desfilam apenas em silêncio em torno da rede, onde Glauber Rocha, calmamente, continua lendo. Pode dormir, se quiser. Mas Salvyano não permite. Faz um aceno. Entram dois investigadores e dão um choque elétrico no autor. Salvyano, mais verde ainda, vem até à ribalta.)

SALVYANO: – Meu amigo Glauber Rocha, ora bolas, peca por falta de sociologismo. É adepto da desrazão, ignora Kant, como vocês sabem, fez a crítica da razão pura. Pode se opor a Hegel e vice-versa, mas isto, de acordo com o ritmo puro de Raoul Walsh, queima logo os fuzíveis. Daí o fracasso. Depois, o comunismo perverso e histérico de Glauber...

COMUNISTA: – Protesto!

SALVYANO: – Verme! O comunismo histérico e perverso de Glauber...

OUTRO COMUNISTA: – Protesto! Glauber é um representante típico do capitalismo anárquico. É podre! Pequeno burguês!

SALVYANO: – Nada disto, é um terrorista da GPU. Agente de Stalin. Sou contra as perseguições, mas às vezes MacCarthy teve razões. Glauber, o que proponho, com a licença dos senhores, é o seguinte: expulsá-lo do cinema brasileiro. Ele deu um golpe na evolução dos gêneros. Isto compromete. É um sem-vergonha!

COMUNISTA: – A liberdade antes de tudo, mas a liberdade pelo povo. Este filme que terminamos de ver é o maior exemplo de libertinagem e negativismo. O personagem central, que se diz revolucionário, é um fascista!

OUTRO COMUNISTA: – É um filho de Nietzche! O poeta diz: "Quero a fome do absoluto!". Isto é teoria de super-homem. Daí ao campo de extermínio é um passo.

JUDEU COMUNISTA: – Glauber é um anti-semita!

ÁRABE COMUNISTA: – Glauber acha que o povo não vale nada. É antipovo, logo é contra os árabes. E olhem que Jardel é louro. Seu herói é judeu!

POETA NORDESTINO: – Não é Brasil. O gênero urbano não é o regional verdadeiro. O Brasil mesmo é o Norte. Sem vaqueiro não dá pé. E os personagens não falam dialeto.

JOSÉ SANZ (que resolveu fazer a defesa da vítima): – Alto lá, subdesenvolvido cafajeste. O Brasil, em primeiro lugar, não existe, como cenário dramático. Tudo é válido. O diabo é que não existe uma história de amor. Tudo, menos xingar o Glauber assim. Afinal, Buñuel gosta de Glauber como de um filho.

ECONOMISTA: – Peço a palavra. A estética não me interessa. Agora, o Glauber acha que a contradição está em termos de burguesia nacional contra imperialismo norte-americano. O desenvolvimento pode conviver com o capital estrangeiro. O subdesenvolvimento é fruto do atraso tecnológico!

ECONOMISTA DE ESQUERDA: – Alto lá, entreguista. O erro do Glauber é achar que a colaboração de esquerdismo com burguesia é possível para fomentar o desenvolvimento. Tem uma visão romântica de uma armadilha histórica. O proletariado pode vencer por tática. Isto ele não vê. É monolítico!

CATÓLICO SOCIALISTA: – A estratégia ganha mais sentido no momento em que o humanismo se infiltra nas contradições. A palavra cristã purifica o termo socialismo. Mas Glauber ligou a Igreja à corrupção. Quem sabe se, no seu simbolismo doentio, o padre não estava no bacanal?

BURGUÊS PROGRESSISTA: – Ora, é um absurdo pensar que capitalista vive em bacanais. Sou um homem rico e nunca fui a um bacanal.

ESTUDANTE: – Azar o seu, moralista!

BURGUÊS: – Moralista?

ESTUDANTE: – Explorador do povo! Como o Glauber, que explora o público.

CRÍTICO CONCRETISTA: – O público é vítima de um discurso. Onde me pego é aqui. O discurso é a deformação da retórica, que, em si, é uma escala válida historicamente no complexo da linguagem. O grotesco operístico seria conseguido por blocos. Não se pode centralizar a comunicação em desvios fonéticos. A semântica revolucionada é limpa como o cristal.

SALVYANO (subindo outra vez nas pernas de pau): – Senhores! A discussão se desvia. As acusações são tantas que prefiro fazer uma antologia das principais, a fim de podermos instaurar o processo. Lívio Bruni espera o resultado para tirar o filme do cartaz. Os bancos esperam os resultados para protestar os títulos. A Academia Brasileira de Letras espera os resultados para votar uma moção contra Glauber. O Itamarati espera os resultados para rasgar os prêmios de Glauber. A Polícia, por fim, espera os resultados para prender o Glauber. Acho, em princípio, que se trata inclusive de uma revisão de Deus e o Diabo. Mas isto é outro assunto e vamos, afinal, ser indulgentes. Eis as acusações mais diretas ao filme Terra em Transe, a bem da verdade:

1 – É irracional. Confuso. Gramaticalmente errado. Plasticamente pobre. Ritmicamente desinfluxo. Esteticamente opaco;

2 – É despido de vergonha, ou seja, de princípios. É comunista. Mas é fascista. É anarcóide, surrealóide, boçalóide. Não ajuda o homem. Denigre. É moralmente nojento;

3 – É antipúblico. Logo, como bem observou um ilustre intelectual aqui presente, é antipovo. É artigo de torre de marfim. É decadente. É histérico;

4– Literariamente é péssimo. Não conduz. Os adjetivos vivem no lugar dos próprios substantivos;

5 – Sociologicamente falso. Historicamente deturpado. Caricaturalmente destorcido. É anticinema.

(Aplausos. Um conjuntinho de bossa-nova se levanta e canta.)

CONJUNTINHO:

Com tanto sol no dia
Com tanto amor no mar
E ele filma Terra em Transe
Pra nos chatear. (bis)
Não vê, por exemplo,
A derradeira amada
Que segue pela noite
E vai nascer na madrugada (escala vocal)
O que existe de belo
E de pitoresco no bamba (escala vocal)
Não está neste filme
Está dentro do samba (bis e breque)

POETA: – O Brasil é suas mulatas em cujas carnes me inspiro, é o mar verde que se derrama em espumas pelas pontas de meus dedos, é o verde que me ilumina nos terreiros de Jesus, é a Iansã minha senhora que levou a última flor para a amada esquecida na madrugada sangüínea. Ah, o Brasil, de ti vem o óleo da melodia barroca que me alimenta...

ESCRITOR DE SUCESSO (como cronista): – O Brasil é a falta de estrutura. Glauber Rocha não tem humildade. Não sabe de nada. Botou Vivaldi numa cena de povo...

JOSÉ SANZ: – Alto lá! Vivaldi não, Villa-Lobos.

ESCRITOR: – Tanto faz. Ele só faz filme para ir a festivais, para tirar prêmios. É um equívoco. É um cachorro. Eu vou fazer um filme, vou fazer e mostrar para ele.

JORNALISTA POLÍTICO: – Canalha! Pulha! Devia ser cassado. Um perigo. Detrator! Antipúblico! Antijornalístico! Pulha! Pulha!

(Entra Nelson Rodrigues, vestido de branco e fala baixo, através de um microfone. Os quatro alto-falantes estouram.)

NELSON RODRIGUES: – É um vômito triunfal!

PLATÉIA (liderada por Salvyano) : – Pornográfico! Pornográfico!

NELSON RODRIGUES: – Com licença. (Retira-se.)

NELSON RODRIGUES (para o porteiro): – É o Brasil meu filho. Glauber está certo. Está. Como eu. Certo e translúcido. Morrerá como os mártires. Certo e translúcido!

OTO LARA RESENDE (entrando): – Glauber está com câncer. Vou abraçá-lo. Afinal, sou mineiro.

NELSON RODRIGUES: – Vá, Oto. Vá.

(Oto Lara Resende não consegue entrar. Donatello Grieco, diplomata, o asfixia com uma esponja de éter. Entra Rubem Braga e pergunta a Luís Carlos Barreto:)

RUBEM BRAGA: – Tem mulher nua? Não sobrou umas pontas daquela bacanal? Cadê o Escorel? Cadê o Escorel? Escorel! Escorel!

(Carlinhos de Oliveira, num gesto heróico, se levante e grita:)

CARLINHOS DE OLIVEIRA: – Glauber falou a verdade. No caos está a verdade. Glauber, meu irmão...

(Três terroristas amordaçam Carlinhos e o liquidam a pontapés, sobretudo no fígado. Subitamente, a luz se apaga. Um batalhão de cinemanovistas, comandado por Gustavo Dahl, corta as instalações elétricas. Gustavo Dahl pega o microfone e grita:)

GUSTAVO DAHL (off): – Vamos acabar com esta burrice!

SALVYANO: – Quem é o intruso?

GUSTAVO: – Cala a boca, pequenininho!

COMUNISTA: – Quem é o intruso?

GUSTAVO: – Cala a boca, feio!

INTELECTUAL SNOB: – Quem é o intruso?

GUSTAVO: – Cala a boca, deselegante!

ESTUDANTE FESTIVA: – Quem é o intruso?

GUSTAVO: – Cala a boca, virgem!

MAURÍCIO DO VALE: – É isto mesmo. Cala boca, senão cai todo mundo no pau.

GUSTAVO: – Viúvas de Hollywood! Estais diante de um caso raro. O cinema se fez arte. É só isto. Infelizmente, não posso entrar no recinto, pois está fazendo um calor danado e o mau cheiro é insuportável. Até logo.

(O clima fica Antoniesco.)

CRÍTICO: – Antonioni? Não, engraçado, não tem clima de Antonioni.

ELY AZEREDO (tenta falar alto, mas é tão fraco que tosse e se retrai): – Estou contra porque vai prejudicar o Brasil no exterior. O "novo cinema", não o "cinema novo", e, principalmente Khury...

ESTUDANTE: – Cala a boca, verme!

(Deste momento em diante, devido ao calor e mau cheiro, a sessão descamba na monotonia. Glauber, na rede, dorme a sono solto. Zelito Viana, o produtor, aparece numa das galerias. Chama:)

ZELITO: – Glauber, Glauber. O filme está dando um grande tutu. Vamos preparar o próximo. Estes caras estão por fora. Deixa esta rede aí e venha logo. Temos de mandar uma brasa solta. Se a gente parar logo agora, vai ser fogo. Não tem problema, eu produzo: Olha, o Cacá, o Saraceni, o Walter, o Gustavo, o Joaquim, o Maciel, está todo mundo se preparando para filmar. E o Luís Carlos Barreto vai fazer o filme do índio com o Nelson. Sabe de uma coisa? Garota de Ipanema está um estouro. E o Coutinho vai filmar também. Lá em São Paulo o Capovilla está filmando. E o Roberto vai começar. Isto para não falar na turma nova, o Escorel. Puxa, o Julinho, já está filmando. E o Calmon escreveu um roteiro genial. O Rogério Sganzerla está voltando da Europa para filmar também. Este Gilberto Santeiro é um louco. E o Klauss está metendo as caras. O dedão do Dib já está com calo de tato mexer a câmera. O Mário Carneiro disse que nem usa mais fotômetro. Vai na raça. Filmou com Fiorani em 15 dias. Paulo Gil está largando brasa. Afonso e Zé Medeiros não dão colher de chá. E Fernando Duarte está para se enforcar com uns metros de filme colorido. O Aranovitch já está a base da gíria. O negócio está ótimo. O Riva disse que a Difilm está abrindo cada vez mais o mercado. E o Claude me telefonou para dizer que a Europa continua comprando. O Moisés Kendler, eu ia me esquecendo, também vai filmar. E o Orlando Senna, lá na Bahia. Tem notícia do Jabor? O Roberto Faria está...

(Nesse momento, a luz vai-se abrindo outra vez para um tom claro. Diante das enumerações de Zelito, Salvyano vai ficando vermelho e depois se derrete como sorvete. Cada crítico vai murchando a cara, ficam amarelos e depois brancos. Sentam-se. Alguns até choram de raiva. Outros, de frustração. Uns intelectuais que estavam na ala direita vão saindo. Lá fora, chove. Os acadêmicos não entendem direito.)

ZELITO: – A vida intelectual brasileira está em crise. Estes caras são literatos. Não manjam nada. O romance faliu. A pintura. A poesia. O teatro, como dizia o gordo Orson, é um maravilhoso anacronismo. Só resta a música e o cinema. O inimigo do cinema é o filme comercial, boçal. Como o yê-yê-yê é o inimigo do samba. As gerações falidas, irresponsáveis, covardes e ignorantes detestam o cinema. O cinema novo é uma resposta à impotência intelectual. Se eu morresse agora, estaria feliz por ter produzido Terra em Transe. De acordo, Barreto?

LUÍS CARLOS BARRETO: – Claro. Neste país de equívocos, a verdade cega e agride. Antes do cinema novo não existia cinema. Mesmo no Brasil. Hoje, esta geração toda se reúne para discutir. Falam mal, mas eu pergunto um coisa. Se acabar com o cinema novo o que é que vai ficar? As chanchadas, os filmes de quarto e banheiro, o caipirismo. Porque existe Instituto de Cinema hoje? Por causa do cinema novo. Hoje, quem fala mal do cinema novo usa este nome para arrancar empregos e viagens. Surgem, nas costas do cinema novo, os produtores de ultima hora, os oportunistas e os picaretas. Quando uma chanchada tem alguma qualidade e quer se valorizar, se apresenta como cinema novo. E quando mesmo um escritor desses aí quer se fazer de importante, traz uma de suas histórias para os diretores do cinema novo. Falam mal por raiva. Por inveja. Não devemos ligar para isto. O Tácito é quem tem razão.

TÁCITO: – O cinema novo é indestrutível. É um fenômeno. Quem tinha razão era Carlyle!

(Embora o discurso de Barreto não tenha sido muito violento, bastou o som da verdade para esvaziar a sala. Zelito sai por cima e Barreto sai por baixo. Encontra Mário Carneiro na porta e diz:)

LUÍS CARLOS BARRETO: – Imagina que queriam mandar dois arcos para iluminar o palco...

MÁRIO CARNEIRO: – Eu e Davizinho filmamos tudo, da esquerda, do olhômetro.

LUÍS CARLOS BARRETO: – Zé Ventura gravou tudo?

JOÃOZINHO NARA DAHAL: – Tudo ok.

WALTER LIMA JÚNIOR: – Vou escrever um artigo: Subsídios.

ALEX VIANY: – Puxa, termino cansando. Olha que tem uns vinte anos que venho falando de cinema brasileiro e esta turma não aprende.

PAULO SARACENI: – É fogo, Alex. É a mesma coisa com Rossellini, na Itália. Eu é que sei o que é pixação...

JOAQUIM PEDRO: – Pixado vou ser eu depois quem filmar Macunaíma...

SARACENI: – E eu, que vou filmar Machado de Assis.

CACÁ DIEGUES: – O Glauber não topa o Machado...

SARACENI: – Glauburu é baiano...

CACÁ: – Bom, como eu vou filmar a vida do Getúlio, já vou-me preparando.

(Apagam-se as luzes. Dentro do cinema vazio, a tela rasgada. Cascas de banana pelo chão. Glauber continua dormindo na rede. Apaga-se a única luz do palco. Ely Azeredo, com um revólver, vem se arrastando e tenta atirar em Glauber, pelas costas. Glauber, porém, bate palmas e aparece Geraldo del Rey, seu amigo de todas as horas. Geraldo toma o revolver de Ely e o atira para fora do palco. Glauber se levanta e relembra Barthes.)

GLAUBER ROCHA: – A segurança da arte é preferível aos riscos do estilo.

(Entra o porteiro e fala qualquer coisa com Geraldo. Geraldo repete.)

GERALDO DEL REY: – Está dizendo que a maioria dos atores também ficou danada com o filme. Acharam fascista.

GLAUBER ROCHA: – Godard já disse que os autores são seres infantis, sem personalidade. São narcisistas em excesso. E não entendem de cinema. Mas são imagens importantes. O cinema prolonga a morte. Estas imagens estarão eternas. Além da morte. Roberto Rossellini dizia que é mais fácil fotografar o mundo do que fotografar um rosto. O cinema, me disse Alexandre Kluge, deve ser polifônico. É uma nova arte e presa ainda ao naturalismo/realismo do romance. O romance, os senhores sabem, é uma expressão do século XIX. É, pois, a linguagem da burguesia. O cinema é a linguagem do capitalismo, isto é, do século XX. Cinema, jornalismo, televisão. O cinema, porque foi realizado até bem pouco tempo por homens com formação do século passado (mesmo o grande e genial e terno Serguei Eisentein) e formou e deformou o público e a crítica. E a maioria dos intelectuais. E, o que é mais grave, a maioria dos cineastas. O cinema é um instrumento de coração do capitalismo. Ou do policialismo. Liberdade, no cinema, sempre foi crime. Exemplo: o poeta francês surrealista Jean Vigo, praticamente assassinado pelos produtores. (Mutilar um filme é como cortar uma artéria de um cineasta.) Outro exemplo: Luiz Buñuel sempre provocou, e ainda provoca, fora de Paris, reações históricas do publico e da crítica. (Quem se interessar por casos semelhantes de punição aos criadores da arte do filme que de uma olhadinha nos livros ou converse Dom P. E. Salles Gomes ou Alex Viany. Digo com estes, pois a maioria da crítica local, carioca e paulista, é policial, isto é, costuma denunciar, sabotar e caluniar os cineastas brasileiros e mesmo os d’além mar.) Rimbaud, para lembrar um nome conhecido, que é ponto pacifico na poesia, se aparecesse hoje fazendo um filme como escrevia levava ovo na cara. Idem Cezanne. Até mesmo Van Gogh. E estes são artistas do século passado, nem mais vanguarda são considerados. Por que o cinema tem de ficar seguindo a narrativa de Maupassant? Quando um intelectual vem me dizer que não gostou de Terra em Transe porque não entendeu, dá vontade de perguntar a ele se poesia ou música ele entende tudinho como entende uma reportagem, isto é, no sentido explicativo, óbvio, ululantérrimo! Incrível que, anos depois, se repita a intolerância (pois é mais do que burrice) que existiu contra a "pedra no caminho", do Drummond. A mesma coisa. Terra em Transe, e maioria do cinema novo, até parece reedições semanais da Semana de Arte Moderna. A cada estréia novo escândalo, novo acesso de intolerância e primarismo da intelectualidade bem pensante, da esquerda teórica, dos ensaístas que andam com bibliografias na ponte da língua, dos jornalistas ignorantes e dos críticos de cinema de nossa terra (Ah, no capítulo dos críticos, Senhor, dai-me muita compreensão, muita paciência, muito humor e amor, porque, Senhor, se eles sabem o que fazem, e por tal não são inocentes, ah, Senhor, nada mais grave do que a incompetência oficializada nos jornais, ah, Senhor, no dia do Juízo final terão de comer o fogo do Inferno. Eu vos peço, Senhor, em prantos e humildemente, que não deixe nem a minha paciência e compreensão e humor e amor tombar sobre a figura de um, e este um se chama Ely! Ele, Senhor, tão frágil, não resistiria nem ao peso da paciência, da minha compreensão, do meu humor e amor!)

(Glauber retoma a frase, citando Nelson Rodrigues:)

GLAUBER ROCHA: – Como eu ia dizendo, tudo de novo chateia. A moral, a estética, a relação sexual, a estabilidade. Chateia. Incomoda. Vamos ver: o camarada que leva uma atividade e começa a ganhar um dinheirinho através de biscates típicos do nosso subcapitalismo, compra um Volks, roupinhas novas, etc., e, para dar ar de graça, começa a dar palpites sobre cinema. Descobre os cortes. Corte é isto, mulher! A mulher aprende o que é corte com o marido e fica embasbacada. Puxa, casei com um gênio e não sabia. O camarada, para se defender, começa a elogiar alguns diretores da moda. Isto é, da moda carioca, ditada pelo Moniz. Até que o Moniz gosta de uns bons diretores. O Moniz, no final das contas, manja a fundo de cinema. Mas o Moniz tem contra-ideologia. O Moniz elogia o Biáfora sem ver, detesta o Khury e elogia o Khury, gosta até pessoalmente de mim mas manda brasa porque, se não manda, briga com a consciência. Então, por que o Moniz não canaliza a sua competência para o Cinema Novo (ele detesta Cinema Novo, ou não detesta?). Então, o Moniz dá elementos para o tal canalha medíocre elogiar, por exemplo, o Sidney Lumet e, com isto, aparecer diante da mulher como gênio. Então, se entra na área dele um filme de cinema novo, ele larga brasa logo, para liquidar. Como os cineastas freqüentam suas áreas de influencia, o melhor é destruir logo, antes que minha mulher telefone para ele, procurando saber o que é corte. Estorinha sórdida, mas verdade. Perguntem ao Nelson. Ao Rodrigues, para conformar dramaticamente. E ao Pereira dos Santos, para confirmar na prática. Foi o caso de Terra em Transe. Na montagem, Escorel dizia: "Vão meter o pau". Aí eu começava a rir histericamente. Queria ver a cara dos caras. Zelito, então, ria de morrer. E ri ainda. E vamos rir até o dia do Juízo Final. Quando então, diante da divisão entre o que é Bom e o que é Ruim, Eu, Meu Santo São Jorge e a Espada de Abrãao vamos fazer a Justiça. A Justiça!

(Descendo do misticismo, o Autor que não se considera vítima, mas sim algoz, relembra a alguns trechos de Roland Barthes.)

AUTOR: – Uma das coisas mais bacanas que diz o Barthes é o seguinte: "... Mas, enquanto no momento atual da História, toda a linguagem política não pode senão confirmar um universo policial, da mesma forma toda "linguagem" intelectual não pode senão instituir uma para-literatura, que não ousa dizer seu nome. O impasse destas "linguagens" é, pois, total, elas não podem se dirigir senão a uma cumplicidade ou a uma impotência, isto é, de todas as maneiras, a uma alienação (traduzi aqui escriture por linguagem por minha conta e risco)". E adiante: "... Mas desde que a linguagem poética coloca radicalmente a Natureza em questão, pelo único efeito de sua estrutura, sem recorrer ao conteúdo do discurso e sem se bloquear numa ideologia, não há mais "linguagem", não existe senão estilos através do qual o homem se volta completamente e afronta o mundo objetivo sem passar por nenhuma das figuras da História ou da sociabilidade. (Esta sociabilidade, aqui, é a mesma coisa que convenção. É melhor falar de amor em linguagem social, isto é, em linguagem católica conjugal. Se falo em linguagem froideana então é fogo!)".

Acabam-se as rubricas. O Autor abraça Geraldo del Rey. A rua está deserta. Mas numa esquina tem um grupo, tranqüilo, conversando, É o Gullar e o Reynaldo Jardim. O Autor vai até a esquina e os abraça em silencio. Não dizem absolutamente nada. Separam-se. Do outro lado da rua, Jânio de Freitas o espera, dentro do carro. O Autor entra e Jânio, também sem dizer nada, arranca. Rodam 10 minutos em silencio. Jânio freia diante da banca de jornais, olha as manchetes, confere a Última Hora, e parte. O Autor, culpadíssimo mas com sono, murmura:

– Puxa, precisava ler o artigo do Francis hoje.

Janio não diz nada. Continua, atravessa o túnel. O Aterro está cinza. Um clarão. Em vermelho, com enormes letras verdes e azuis: "Difilm anuncia Garota de Ipanema, de Leon Hirzchman".

Glauber chora diante desta anuncio. Jânio, para confortá-lo, sugere:

– Vamos almoçar com o Raymundo. E o Hélio Pellegrino te convida apara jantar.

Música.

Paris, junho-67.