Transcendência da revolta
A Hora e a Vez de Augusto Matraga, Roberto Santos, 1966

(Texto publicado no Suplemento Literário do Estado de São Paulo)

Matraga atinge um regional que adquire desde logo uma dimensão universal. Este o grande mérito deste filme de Roberto Santos. Não tínhamos tido uma iconografia cinematográfica sertaneja com a sutileza, a profundidade e ao mesmo tempo o depuramento de que este filme nos dá prova. Principalmente o despojamento que retira desta obra qualquer caráter folclórico. O folclórico é o regionalismo em estado cru. O Matraga de Roberto Santos transcende o folclore para dar uma imagem de uma região do Brasil, a menos demagógica possível, mas rica de peculiaridades e de autenticidade.

A força da ambientação torna este filme um dos mais verdadeiros registros do mundo brasileiro do sertão, com suas vilazinhas tristes, as raras casas agrupadas em torno da igreja, os vastos descampados esmagados sob o céu, tornado mais amplo pelo canto das aves migradoras.

E esse quadro, tratado com um senso admirável de composição dramática, é o grande suporte para uma história de validade também universal, pois centrada na força moral do homem. O sertão aqui funciona como o cenário para uma tragédia, alteando-se ao nível das velhas terras do mundo que viram nascer a dramática fabulação do homem.

Matraga é a luta do homem vencendo a opressão, a humilhação e a morte, com apoio no brio pessoal, no sentimento da honra e da dignidade. E a grandeza do personagem se salienta pelo fato de ser um simples, um tosco, um pobre trabalhador rural de uma das regiões mais primitivas do Brasil. É um condenado à morte que renasce porque não poderia morrer humilhado. Na raiva, que lhe arranca gritos lancinantes de protesto, está toda a energia do homem lutando contra a indignidade de um sacrifício melancólico, que sua forte natureza não pode suportar.

Robert Bresson teria amado fazer este filme. Roberto Santos é um Bresson sertanejo, debruçado sobre o sentimento de honra do seu personagem, fascinado pelo seu poder de revolta e sua dura luta pela sobrevivência. Embora, como a camponesa Joana, relapso como ela, mas herói como ela, venha a morrer de uma segunda morte, esta morte era a sua, não a outra que lhe fora imposta.

O processo de ascensão do herói é lento, pois é um novo homem que surge, com seus ímpetos domados, para não perder a hora e vez da sua ressurreição. Matraga faz da fé a alavanca para o seu renascimento. Mas uma fé ativa, que lhe abranda o temperamento, que o humaniza interiormente, mas, ao mesmo tempo, o ilumina para o exercício da coragem e da violência, que são o seu único e possível destino. A sedução que sobre ele exerce o bando do Joãozinho Bem Bem, a alegria com que recebe os jagunços, depois da sua conversão, mostra como a sua religiosidade se conciliava com uma vontade de poder, essencial para a afirmação da sua natureza.

O ódio salvou-o da morte, a penitência humanizou-o, a religiosidade conquistada libertou-o da vingança mesquinha, que seria a que aplicaria contra os capangas e contra o coronel que o martirizaram, depois de lhe roubarem a esposa e a filha. O essencial da experiência do personagem está nesta transferência da vingança, que não será mais contra seus inimigos, mas contra a sua própria humilhação. De objetiva, a revolta passa a ser subjetiva: o que importa para Matraga é encontrar a hora e a vez de se afirmar perante si mesmo.

Nesse sentido é que este filme é universal. A dignidade e o sentimento de honra do sertanejo brasileiro, que o nosso cinema tem mostrado no exterior, na sua forma mais enlouquecida, que é a do cangaço, alimentado pela revolta dos injustiçados sociais, agora se mostra neste filme de maneira mais profunda e por meio de um processo de transcendência da revolta, depurada pelo sofrimento, pela provação e pelo misticismo, que são sociologicamente ingredientes autênticos de formação do homem rural brasileiro.

A tragédia de Matraga, assim, alcança um alto plano de criação, pois, além de essencializada, o que lhe dá uma validez universal, é tipicamente brasileira, o que lhe confere um sentido de depoimento precioso sobre o país. Depois de Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, mural admirável sobre a miséria e a injustiça, a personagem de Matraga vem enriquecer o poder de testemunho do nosso cinema e já agora sem nenhuma intenção de pitoresco e de anedótico, mas fazendo do sertão um cenário denso para um drama humano e universal.

Só pelo regional se atinge o universal, mas arrancando do regional o que ele tem de universal. Nesse sentido é que devemos saudar este filme, que confirma ainda uma vez a riqueza do nosso cinema de hoje e a importância da experiência que se vem fazendo no Brasil e já compreendida, internacionalmente, com mais calor do que dentro do nosso próprio país.

"Vim aqui só pra dizer que, se alguém tem que morrer, que seja pra melhorar", diz a canção com que se abre o filme. Matraga vem para morrer, mas da sua morte, a morte que ele mesmo procurará. A canção adquire um sentido de canto de glória ao homem. Aliás todo o filme é balizado por uma música dessa natureza, feita de esperança no renascimento, de confiança no destino, e de desafio festivo à morte. E nesses momentos as aves migradoras cruzam o céu num vaticínio de liberdade.

Se o problema do filme é grave, extraído do conto do maior escritor vivo do país, o mestre Guimarães Rosa, a sua encarnação nos tipos, na paisagem, nos pormenores de hábitos domésticos, na indumentária, sempre com a preocupação da não-concessão ao pitoresco direto, faz deste filme uma das obras mais bem enquadradas, como gosto, como verdade artística, que até hoje conseguimos fazer.

Não foi impunemente que Roberto Santos a ele se dedicou durante muitos anos, estudando a psicologia do personagem e fazendo o levantamento minucioso do quadro onde deveria fazê-lo viver.

Posso dar o meu testemunho porque, vivendo num país estrangeiro, tive a alegria de receber, quatro anos atrás, o roteiro do filme ilustrado por fotografias dos locais da ação, das casas e casebres onde Matraga deveria habitar durante a sua longa penitência, de aspectos da vila e da região onde se passaria a ação do filme.

O filme nasceu da vocação incontida de um jovem criador para se expressar pelo cinema. Do casamento na Mooca, que era o tema do seu primeiro e único filme de longa-metragem, O Grande Momento, de 1958, já lá se vão cerca de oito anos. Nelson Pereira dos Santos que é, indiscutivelmente, a raiz desse surto de consciência no cinema novo do Brasil, ficou vinculado à primeira experiência do jovem diretor. Mas é impressionante como Roberto Santos soube aprofundar-se —sem fazer filmes, a não ser experiências de curta-metragem — e surge adulto na linguagem, seguro no estilo, moderno como assimilação dos passos dados pelo cinema nesse período, e principalmente pessoal, impondo sua autoria, ao ponto de podermos saber hoje como Roberto Santos reagirá em face de outros filmes que vier a fazer.

A grande qualidade do Matraga, além da universalização do regional, é a contenção, o senso do limite exato de utilização dos personagens, de desenvolvimento das situações. Chamaríamos de pudor essa recusa à grandiloqüência, essa opção pela forma indireta de acrescer a força do personagem, sem usar nenhum elemento narrativo ancilar. A concentração da ação na vivência histórica do personagem, de maneira que o que conhecemos dele decorre da vida que o vemos viver e não de qualquer informação, faz o herói muito vivo e muito próximo. No último momento ele pretende dizer seu nome ao Joãozinho Bem Bem, mas, não podendo, uiva e morre, porque seu nome, não pronunciado, estava ligado à sua honra, e a morte, embora o redimisse, não era o desenlace ideal da sua ambição. A hora e vez de Matraga pressupunha a morte, mas sem a morte sua glória seria humana, egoísta e, piedosamente, mais completa.

Tudo o que não se vincula diretamente à experiência do herói é apresentado laconicamente, quase que apenas insinuado, para que fique ressaltado o problema central. O quadro e os acidentes paralelos agem como um pano de fundo ou um coro de tragédia cuja função é sublinhar o motivo principal. Veja-se, por exemplo, a presença esquiva da mulher de Matraga e a sua fuga, como são focalizadas discretamente. A fuga é sugerida pelo cavaleiro que passa com o cão e pelos olhares da mulher entreabrindo a janela. Alguns tipos da vila, como a prostituta, o soldado, o coronel, os dois capangas de Matraga, o homem da barraca de arcos, surgem reunidos numa única cena, como a definir, de forma simbólica e concentrada, a população do lugarejo. E todos os demais figurantes, como Siá Quitéria e o marido, que acolhem Matraga, circulam como vultos de fundo de cena, tratados com discrição admirável, de que é amostra a cena da despedida de Matraga do casal negro. O único personagem que se salienta mais vivamente, e somente na primeira parte do filme, é o encarnado por Flavio Migliaccio, o mensageiro alcoviteiro de Matraga, e graças à excelente interpretação do ator. E na segunda parte a figura de Joãozinho Bem Bem e do padre ganham relevo, porque são elementos essenciais como contraponto para o último episódio do drama.

A unidade da trama, que é espessamente obtida pela progressiva evolução da experiência interior de Matraga, poderia ficar proposta, não fosse a sintonia que Roberto Santos obtém entre essa experiência e o mundo circundante.

E é aqui que se revela plenamente a segurança e a sensibilidade do diretor. Há todo um complexo de relações entre sua ascensão e o ambiente, conseguido por vários recursos, como o ascetismo e a tristeza da paisagem, sugestões místicas — como a santinha a quem Matraga dá uma esmola, a touceira de velas na noite de velório, o cruzeiro diante do qual Matraga se ajoelha — e elementos metafóricos da natureza, como o vôo dos pássaros, o vento agitando a mata e, principalmente, a cena antológica em que Matraga doma a montaria, numa alegria furiosa, marcando o clímax do seu renascimento para a vida e a prova de que se achava preparado para a hora e vez de sua libertação.

A cena com o animal, as tropelias de Matraga e seus capangas no largo da igreja alvoroçando as crianças vestidas de anjinho, a conversa com Siá Quitéria acompanhando o enterro, a fuga medrosa de Matraga surpreendido pelo primeiro habitante da vila que o persegue a cavalo, a sua entrada solene no largo quando os jagunços cercam a igreja, são momentos altos deste filme sinfônico, e cuja concentração e articulação dão-lhe a medida de sua maturidade e de sua poderosa força expressiva.

Por força desse domínio do diretor, os atores e coadjuvantes são tão autênticos como a paisagem. Mas cabe ressaltar a interpretação que Leonardo Vilar nos dá do Matraga, traduzindo de maneira fabulosa a explosiva exuberância física do herói, contida pelo afã místico a que se entrega, para melhor se dominar.

O iluminador Hélio Silva, o mesmo de O Grande Momento, sofreu, como Roberto Santos, daquele filme para este, o mesmo processo de aprofundamento de sua técnica, elaborando imagens que não poderemos conceber diferentes, de tal maneira se colam à pele do filme.

A música de Geraldo Vandré é modelar como compreensão do tema, funcionando como um comentário coral, glorioso e alvissareiro, das etapas da redenção do herói.

26 mar. 1966

Francisco de Almeida Salles