(Texto publicado no Suplemento Literário
do Estado de São Paulo)
Matraga atinge um regional que adquire
desde logo uma dimensão universal. Este o grande mérito
deste filme de Roberto Santos. Não tínhamos tido uma iconografia
cinematográfica sertaneja com a sutileza, a profundidade e ao
mesmo tempo o depuramento de que este filme nos dá prova. Principalmente
o despojamento que retira desta obra qualquer caráter folclórico.
O folclórico é o regionalismo em estado cru. O Matraga
de Roberto Santos transcende o folclore para dar uma imagem de uma
região do Brasil, a menos demagógica possível,
mas rica de peculiaridades e de autenticidade.
A força da ambientação
torna este filme um dos mais verdadeiros registros do mundo brasileiro
do sertão, com suas vilazinhas tristes, as raras casas agrupadas
em torno da igreja, os vastos descampados esmagados sob o céu,
tornado mais amplo pelo canto das aves migradoras.
E esse quadro, tratado com um senso admirável
de composição dramática, é o grande suporte
para uma história de validade também universal, pois centrada
na força moral do homem. O sertão aqui funciona como o
cenário para uma tragédia, alteando-se ao nível
das velhas terras do mundo que viram nascer a dramática fabulação
do homem.
Matraga é a luta do homem
vencendo a opressão, a humilhação e a morte, com
apoio no brio pessoal, no sentimento da honra e da dignidade. E a grandeza
do personagem se salienta pelo fato de ser um simples, um tosco, um
pobre trabalhador rural de uma das regiões mais primitivas do
Brasil. É um condenado à morte que renasce porque não
poderia morrer humilhado. Na raiva, que lhe arranca gritos lancinantes
de protesto, está toda a energia do homem lutando contra a indignidade
de um sacrifício melancólico, que sua forte natureza não
pode suportar.
Robert Bresson teria amado fazer este filme.
Roberto Santos é um Bresson sertanejo, debruçado sobre
o sentimento de honra do seu personagem, fascinado pelo seu poder de
revolta e sua dura luta pela sobrevivência. Embora, como a camponesa
Joana, relapso como ela, mas herói como ela, venha a morrer de
uma segunda morte, esta morte era a sua, não a outra que lhe
fora imposta.
O processo de ascensão do herói
é lento, pois é um novo homem que surge, com seus ímpetos
domados, para não perder a hora e vez da sua ressurreição.
Matraga faz da fé a alavanca para o seu renascimento. Mas uma
fé ativa, que lhe abranda o temperamento, que o humaniza interiormente,
mas, ao mesmo tempo, o ilumina para o exercício da coragem e
da violência, que são o seu único e possível
destino. A sedução que sobre ele exerce o bando do Joãozinho
Bem Bem, a alegria com que recebe os jagunços, depois da sua
conversão, mostra como a sua religiosidade se conciliava com
uma vontade de poder, essencial para a afirmação da sua
natureza.
O ódio salvou-o da morte, a penitência
humanizou-o, a religiosidade conquistada libertou-o da vingança
mesquinha, que seria a que aplicaria contra os capangas e contra o coronel
que o martirizaram, depois de lhe roubarem a esposa e a filha. O essencial
da experiência do personagem está nesta transferência
da vingança, que não será mais contra seus inimigos,
mas contra a sua própria humilhação. De objetiva,
a revolta passa a ser subjetiva: o que importa para Matraga é
encontrar a hora e a vez de se afirmar perante si mesmo.
Nesse sentido é que este filme é
universal. A dignidade e o sentimento de honra do sertanejo brasileiro,
que o nosso cinema tem mostrado no exterior, na sua forma mais enlouquecida,
que é a do cangaço, alimentado pela revolta dos injustiçados
sociais, agora se mostra neste filme de maneira mais profunda e por
meio de um processo de transcendência da revolta, depurada pelo
sofrimento, pela provação e pelo misticismo, que são
sociologicamente ingredientes autênticos de formação
do homem rural brasileiro.
A tragédia de Matraga, assim, alcança
um alto plano de criação, pois, além de essencializada,
o que lhe dá uma validez universal, é tipicamente brasileira,
o que lhe confere um sentido de depoimento precioso sobre o país.
Depois de Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, mural admirável
sobre a miséria e a injustiça, a personagem de Matraga
vem enriquecer o poder de testemunho do nosso cinema e já agora
sem nenhuma intenção de pitoresco e de anedótico,
mas fazendo do sertão um cenário denso para um drama humano
e universal.
Só pelo regional se atinge o universal,
mas arrancando do regional o que ele tem de universal. Nesse sentido
é que devemos saudar este filme, que confirma ainda uma vez a
riqueza do nosso cinema de hoje e a importância da experiência
que se vem fazendo no Brasil e já compreendida, internacionalmente,
com mais calor do que dentro do nosso próprio país.
"Vim aqui só pra dizer que, se alguém
tem que morrer, que seja pra melhorar", diz a canção com
que se abre o filme. Matraga vem para morrer, mas da sua morte, a morte
que ele mesmo procurará. A canção adquire um sentido
de canto de glória ao homem. Aliás todo o filme é
balizado por uma música dessa natureza, feita de esperança
no renascimento, de confiança no destino, e de desafio festivo
à morte. E nesses momentos as aves migradoras cruzam o céu
num vaticínio de liberdade.
Se o problema do filme é grave,
extraído do conto do maior escritor vivo do país, o mestre
Guimarães Rosa, a sua encarnação nos tipos, na
paisagem, nos pormenores de hábitos domésticos, na indumentária,
sempre com a preocupação da não-concessão
ao pitoresco direto, faz deste filme uma das obras mais bem enquadradas,
como gosto, como verdade artística, que até hoje conseguimos
fazer.
Não foi impunemente que Roberto
Santos a ele se dedicou durante muitos anos, estudando a psicologia
do personagem e fazendo o levantamento minucioso do quadro onde deveria
fazê-lo viver.
Posso dar o meu testemunho porque, vivendo
num país estrangeiro, tive a alegria de receber, quatro anos
atrás, o roteiro do filme ilustrado por fotografias dos locais
da ação, das casas e casebres onde Matraga deveria habitar
durante a sua longa penitência, de aspectos da vila e da região
onde se passaria a ação do filme.
O filme nasceu da vocação
incontida de um jovem criador para se expressar pelo cinema. Do casamento
na Mooca, que era o tema do seu primeiro e único filme de longa-metragem,
O Grande Momento, de 1958, já lá se vão
cerca de oito anos. Nelson Pereira dos Santos que é, indiscutivelmente,
a raiz desse surto de consciência no cinema novo do Brasil, ficou
vinculado à primeira experiência do jovem diretor. Mas
é impressionante como Roberto Santos soube aprofundar-se —sem
fazer filmes, a não ser experiências de curta-metragem
— e surge adulto na linguagem, seguro no estilo, moderno como assimilação
dos passos dados pelo cinema nesse período, e principalmente
pessoal, impondo sua autoria, ao ponto de podermos saber hoje como Roberto
Santos reagirá em face de outros filmes que vier a fazer.
A grande qualidade do Matraga, além
da universalização do regional, é a contenção,
o senso do limite exato de utilização dos personagens,
de desenvolvimento das situações. Chamaríamos de
pudor essa recusa à grandiloqüência, essa opção
pela forma indireta de acrescer a força do personagem, sem usar
nenhum elemento narrativo ancilar. A concentração da ação
na vivência histórica do personagem, de maneira que o que
conhecemos dele decorre da vida que o vemos viver e não de qualquer
informação, faz o herói muito vivo e muito próximo.
No último momento ele pretende dizer seu nome ao Joãozinho
Bem Bem, mas, não podendo, uiva e morre, porque seu nome, não
pronunciado, estava ligado à sua honra, e a morte, embora o redimisse,
não era o desenlace ideal da sua ambição. A hora
e vez de Matraga pressupunha a morte, mas sem a morte sua glória
seria humana, egoísta e, piedosamente, mais completa.
Tudo o que não se vincula diretamente
à experiência do herói é apresentado laconicamente,
quase que apenas insinuado, para que fique ressaltado o problema central.
O quadro e os acidentes paralelos agem como um pano de fundo ou um coro
de tragédia cuja função é sublinhar o motivo
principal. Veja-se, por exemplo, a presença esquiva da mulher
de Matraga e a sua fuga, como são focalizadas discretamente.
A fuga é sugerida pelo cavaleiro que passa com o cão e
pelos olhares da mulher entreabrindo a janela. Alguns tipos da vila,
como a prostituta, o soldado, o coronel, os dois capangas de Matraga,
o homem da barraca de arcos, surgem reunidos numa única cena,
como a definir, de forma simbólica e concentrada, a população
do lugarejo. E todos os demais figurantes, como Siá Quitéria
e o marido, que acolhem Matraga, circulam como vultos de fundo de cena,
tratados com discrição admirável, de que é
amostra a cena da despedida de Matraga do casal negro. O único
personagem que se salienta mais vivamente, e somente na primeira parte
do filme, é o encarnado por Flavio Migliaccio, o mensageiro alcoviteiro
de Matraga, e graças à excelente interpretação
do ator. E na segunda parte a figura de Joãozinho Bem Bem e do
padre ganham relevo, porque são elementos essenciais como contraponto
para o último episódio do drama.
A unidade da trama, que é espessamente
obtida pela progressiva evolução da experiência
interior de Matraga, poderia ficar proposta, não fosse a sintonia
que Roberto Santos obtém entre essa experiência e o mundo
circundante.
E é aqui que se revela plenamente
a segurança e a sensibilidade do diretor. Há todo um complexo
de relações entre sua ascensão e o ambiente, conseguido
por vários recursos, como o ascetismo e a tristeza da paisagem,
sugestões místicas — como a santinha a quem Matraga dá
uma esmola, a touceira de velas na noite de velório, o cruzeiro
diante do qual Matraga se ajoelha — e elementos metafóricos da
natureza, como o vôo dos pássaros, o vento agitando a mata
e, principalmente, a cena antológica em que Matraga doma a montaria,
numa alegria furiosa, marcando o clímax do seu renascimento para
a vida e a prova de que se achava preparado para a hora e vez de sua
libertação.
A cena com o animal, as tropelias de Matraga
e seus capangas no largo da igreja alvoroçando as crianças
vestidas de anjinho, a conversa com Siá Quitéria acompanhando
o enterro, a fuga medrosa de Matraga surpreendido pelo primeiro habitante
da vila que o persegue a cavalo, a sua entrada solene no largo quando
os jagunços cercam a igreja, são momentos altos deste
filme sinfônico, e cuja concentração e articulação
dão-lhe a medida de sua maturidade e de sua poderosa força
expressiva.
Por força desse domínio do
diretor, os atores e coadjuvantes são tão autênticos
como a paisagem. Mas cabe ressaltar a interpretação que
Leonardo Vilar nos dá do Matraga, traduzindo de maneira fabulosa
a explosiva exuberância física do herói, contida
pelo afã místico a que se entrega, para melhor se dominar.
O iluminador Hélio Silva, o mesmo
de O Grande Momento, sofreu, como Roberto Santos, daquele filme
para este, o mesmo processo de aprofundamento de sua técnica,
elaborando imagens que não poderemos conceber diferentes, de
tal maneira se colam à pele do filme.
A música de Geraldo Vandré
é modelar como compreensão do tema, funcionando como um
comentário coral, glorioso e alvissareiro, das etapas da redenção
do herói.
26 mar. 1966
- Francisco de Almeida Salles