As Massas e o Recheio



Uma dúvida pontua esse artigo. Tem-se hoje como fato consumado que um filme só se realiza em definitivo quando alcança o seu público. Será? A dúvida não é retórica, é sincera.

Que público seria esse? Mesmo que seja pouca gente já vale, com certeza. Mas e se o raio do filme ficar invisível por anos depois de sua estréia, como é o caso de Limite, e também de El Justicero, de Nelson Pereira? Ou se o filme nem sequer estrear, como é o caso de Orgia, ou o homem que deu cria, de João Silvério Trevisan, ou Candinho, de Ozualdo Candeias?

Desde que a equipe da Contracampo começou a fazer esta pesquisa, eu ouvi e li diversas vezes os comentários com relação às limitações desta, todas já muito bem lembradas em textos apresentados nesta edição, junto às respectivas listas ou em artigos à parte. Algumas coisas me incomodam desde o início, e uma delas é que esse tipo de listagem não faz jus a vários marcos históricos, como bem notam Bernardo Oliveira e Fernando Albagli nos comentários que escrevem às suas listas, ao lembrar de todos os filmes memoráveis pela forte relação que tiveram com o seu público na época, vendo sim sob a ótica das grandes bilheterias.

Diga o que quiser dizer dos Trapalhões quem disputou espaço com eles, seus filmes são definitivos na memória de infância da minha geração e de alguns mais velhos. E, no entanto, só tiveram um filme lembrado, Os Trapalhões nas Minas do Rei Salomão, lembrado por duas pessoas, eu uma delas, Márcia Derraik a outra. Posso defender meu voto dizendo que me senti obrigado a colocar um filme dos Trapalhões na minha lista, e fiquei na dúvida entre aquele e Os Saltimbancos Trapalhões e O Cientista Trapalhão, mas minha lista já estava grande demais para eu incluir três filmes. Ninguém mais lembrou dos Trapalhões, decerto porque boa parte dos seus filmes não é brilhante, porque a trajetória dos palhaços se confunde com o grupo televisivo que a gente sabe qual é e, finalmente, porque ninguém leva a sério comédias e filmes infantis e/ou populares.
Isso aconteceu com Oscarito, que hoje já está reabilitado e mitificado, e com Mazzaropi, que possivelmente foi um dos homens que mais venderam ingressos no Brasil (disputa o título com Os Trapalhões, claro), e no entanto não tem sequer um filme citado nessa pesquisa. Da mesma forma, O Ébrio foi citado uma única vez, e Dona Flor e seus dois maridos só foi lembrado por quatro pessoas. Central do Brasil foi o filme da década de 90 mais lembrado entre os pesquisados, citado por onze pessoas, mas Carlota Joaquina só mereceu uma citação. E, no entanto, se somarmos o público desses filmes que citei até aqui nesse texto, é muito mais gente que o público somado de todos os filmes da nossa listinha.

O que eu quero dizer não é que eu acho que estes filmes são melhores que os filmes que os pesquisados e a Galera da Contra citaram, até porque minha opinião também está lá. Mas o que eu quero lembrar é justamente que uma cinematografia depende não apenas da disposição criativa de alguns sujeitos, mas também de um acesso imediato ao seu público. É o que possibilita a proliferação de filmes, e que se dane se o viés é comercial, erótico ou infantil, porque é dessa forma que se abre os caminhos. Foi através da indústria dos filmes eróticos que surgiram coisas sensacionais nos anos setenta, e não são raros os casos de grandes diretores que fizeram alguns filmes para acertar a conta bancária. Joaquim Pedro contou uma vez que fez Macunaíma para acertar as dívidas contraídas com O Padre e a Moça. Conseguiu dois milhões de espectadores e fez uma beleza de filme. Mas nem sempre as coisas se casam, e isso não é motivo de vergonha. Nelson Pereira pode preferir Vidas Secas ou muitos outros filmes seus a Na Estrada da Vida, mas se orgulha em lembrar que o filme teve excelente público, quase dois milhões. O mesmo caso de Carlos Reichenbach e seu A Ilha dos prazeres proibidos, que, graças à exibição em países da América Latina, chegou à bela marca de quatro milhões de espectadores. Sem Na Estrada da Vida seria mais difícil fazer Memórias do Cárcere, e A Ilha dos Prazeres Proibidos, além de ter uma trama que misturava exilados e Wilhelm Reich, possibilitou depois O Império do desejo. Não são obras-primas, talvez (Macunaíma é, acho), mas aí é que está, uma cinematografia não é feita só de obras-primas.

E é preciso que as pessoas conheçam nossa cinematografia, desde as escolas de segundo grau, isso não é difícil de fazer. Machado de Assis pode parecer tão chato quanto José de Alencar para alguns, mas é tendo acesso a eles e aprendendo a respeitar a histórias deles que as pessoas vão descobrir suas qualidades. Senão, vira uma cultura de gueto, como a gente sempre teme que aconteça conosco. É preciso que conheçam Limite e Ganga Bruta, mesmo que achem chato, e é preciso que conheçam Oscarito e Glauber, mesmo que já pareçam ultrapassados para alguns. Nossos filmes, marcos históricos, bilheterias gigantescas ou obras-primas tardiamente reconhecidas, todos eles não estão disponíveis à população, estão restritos ao mercado de "cultores do cinema brasileiro". Assim como não há gravações de João Pernambuco no Napster, Vidas Secas não está disponível em DVD, nunca passa em rede nacional de Tv aberta e nem tampouco pode ser encontrado nas locadoras do interior do país. Nas capitais, com alguma sorte, sim. Mas não São Paulo S.A., que também ainda não foi lançado em DVD.

É para defender esses filmes que serve essa pesquisa. Dos dez filmes mais lembrados, seis foram citados nas três pesquisas citadas pelo portal da Cinemateca Brasileira. São eles Deus e o diabo na terra do sol, Limite, Vidas Secas, Terra em Transe, Macunaíma e O Bandido da Luz Vermelha. Em quatro pesquisas feitas ao longo de vinte anos (todas com métodos diversos, registre-se), apareceram em todas as listagens. São filmes que são lembrados no esquema "piloto automático" por quem faz cinema no Brasil. São nossas obras consagradas, e precisam fazer parte do conhecimento geral que se adquire nas escolas. Isso não é tão difícil, nem tão caro. Precisam, acima de tudo, ser respeitados como símbolos do que se fez de melhor por aqui.

Peço desculpas aos leitores se a linha de raciocínio parece excessivamente icônica. Pode ser, até diria que é sim. Mas, se reconheço isso e mesmo assim mantenho, devo ter meus motivos. E tenho. Já há algum tempo, ouvi um depoimento de Nelson Pereira dos Santos, logo depois dele ter visto a cópia nova de Vidas Secas, feita pela Riofilme. E ele contou que a cópia estalando de nova estava muito ruim, e isso porque o novo master feito dos negativos originais, que deu origem à cópia, já tinha ficado ruim. Na verdade, o problema era que o negativo original estava perdendo a definição, estava perdendo o cinza, e as cópias novas acabavam saindo contrastadas demais.

Vidas Secas tem seus negativos e diversas cópias sendo preservados pela Cinemateca Brasileira, e também pela instituição francesa equivalente, assim como boa parte dos muitos filmes citados na nossa pesquisa. Mas para muitos já não basta preservar, é preciso restaurar os negativos originais, o que demanda um belo aporte financeiro, e decerto alguma espécie de estímulo governamental. Sem um programa cultural digno deste nome, a restauração de filmes brasileiros vai depender sempre das mães e filhas dos cineastas que já se foram.

Talvez em pior estado que Vidas Secas esteja o segundo filme de Sganzerla, tão lembrado pela equipe da Contracampo, A Mulher de Todos. Seu negativo está na Cinemateca Brasileira, e as notícias que temos de lá é que ele ameaça avinagrar.

Não é por acaso que quase não há filmes da primeira metade do século. Houve períodos em que muito se produziu por aqui, mas quase nada restou. Não restou nem mesmo Barro Humano, o mítico primeiro filme de Ademar Gonzaga. Incêndios e má preservação são as justificativas para estes tristes fatos.

E como será uma lista feita daqui a cinqüenta anos? Será que todos terão tido a chance de ver Deus e o diabo na terra do sol? Este sim, mas e O Bandido da Luz Vermelha? E A Mulher de Todos? Será que vai ser possível comprar pela Internet em DVD?

E, se não der, qual será a nossa desculpa? Precisávamos de vassouras?


Daniel Caetano