Macunaíma, Maria, era como eu
brasileiro
Em 1928, Mário de Andrade, tendo
conhecido o estudo de Koch-Grünberg sobre folclore ameríndio,
escreveu Macunaíma o herói sem nenhum caráter,
quase que uma adaptação do conjunto de lendas populares
compiladas pelo alemão – o autor mesmo considerava a obra uma
rapsódia. Era uma época de transição, em
que a geração dos modernos tentava se libertar do padrão
europeu de cultura buscando resgatar o próprio da terra, de modo
que fosse possível chegar até uma identidade nacional,
uma brasilidade. 41 anos depois, Joaquim Pedro de Andrade adaptou a
obra andradiana para o cinema e foi esse filme, Macunaíma,
que hoje, mais de 30 anos passados, ficou em sétimo lugar entre
os melhores do cinema nacional, segundo pesquisa feita aqui, por Contracampo.
Mas o que é que Macunaíma tem que o mantém vivo
através de todo esse período de tempo?
O cineasta considerava seu filme como um
"comentário ao livro": ou seja, o que temos não é
uma transposição simplesmente, mas notas, ponderações
que visam uma interpretação; qualquer um que tenha lido
Macunaíma... sabe muito bem, por exemplo, que a Uiara
não o mata, mas que o herói acaba sobrevivendo ao ataque
e virando constelação. E se essa está longe de
ser a única mudança feita a partir da história
original, talvez seja a mais significativa. Porque se, em virando a
Ursa Maior, Macunaíma "...se aborreceu de tudo, foi-se embora
e banza solitário no campo vasto do céu.", em sendo comido
pela Uiara, lenda brasileira, o que se mostra é uma impossibilidade
de vida para ele. É o Brasil quem come Macunaíma. Está-se
em 1969, às beiras do movimento tropicalista; o que é
filmar um herói colorido, festejado, cheio de paetês que
acaba sendo devorado? É dizer contra o tropicalismo, que, nas
palavras do diretor: "sempre foi completamente furada [a onda tropicalista]
como movimento." Há, sim, um certo clima no filme que pode gerar
uma identificação com o movimento, mas seu final é
de absoluta interdição. Parece que o que existe ali é
uma espécie de tentativa de diálogo com temas populares:
a chanchada, por exemplo, permeia toda a narrativa, presente inclusive
no elenco, figurinos e cenário. É um tipo de deboche,
de ironia carregada de sentido mas sem lição.
Isso. Macunaíma é
um filme sem lição, sem símbolos e modelos. É
pura construção, do tipo que só aparece à
medida que se vai construindo.. É sabido que Mário de
Andrade escreveu dois prefácios para Macunaíma...
mas que acabou publicando-o sem nenhum. Esses dois textos, porém,
acabaram aparecendo mais tarde e, no segundo deles, está escrito,
sobre a falta de caráter do herói, que ela é "...no
duplo sentido de indivíduo sem caráter moral e sem característico."
Aí está: o filme também o mostra assim e essa é
a sua importância. Joaquim Pedro de Andrade atuou brilhantemente
como rapsodo: Macunaíma não simboliza o povo brasileiro,
mas é um brasileiro. E o Brasil é composto por
brasileiros, que, como o herói, podem ter dificuldades para viver
em seu país e podem também acabar devorados por ele.
O cineasta disse que "Macunaíma
é um filme que encontra a América Latina em todos
os sentidos, em uma busca nacional." Talvez, se juntarmos a isso mais
uma coisa que Mário de Andrade disse, em seu segundo prefácio,
possamos responder à questão posta lá em cima,
aquela da manutenção do Macunaíma até
hoje. Mário escreveu que "Nas épocas de transição
social como a de agora é duro o compromisso com o que tem de
vir e quase ninguém não sabe. Eu não sei. Não
desejo a volta do passado e por isso já não posso tirar
dele uma fábula normativa. (...) O presente é uma neblina
vasta." Pode ser que a importância de Macunaíma
resida nos problemas que ele põe para nós, brasileiros.
À época da escritura de Macunaíma... o presente
era uma neblina vasta; em 1969, quando o filme foi feito, também.
Talvez o sétimo lugar obtido por ele em 2001 seja sintoma de
uma intranqüilidade frente à neblina que envolve o nosso
cinema atualmente.
Tem mais não.
Juliana Fausto
1 Mário de Andrade, Macunaíma,
o herói sem nenhum caráter. Livraria Martins Editora
S.A, São Paulo, 1980.