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São poucas as mudanças dessa lista para as outras listas canônicas do cinema brasileiro. Desde a primeira lista, realizada em 1968, passando pela lista da Revista de Cultura Vozes e por uma consulta da Cinemateca Brasileira e indo até a lista de dois anos atrás da Folha de São Paulo, observa-se que as listas obedecem mais ou menos a um certo padrão de memória do cinema brasileiro, e o que muda é efetivamente o tipo de filmes "do momento", que caracterizam os gêneros vigentes no momento de feitura de cada lista. Só isso poderia autorizar O Corpo Ardente, de Walter Hugo Khouri, na primeira lista quando hoje nenhuma das 110 pessoas consultadas sequer mencionou o filme. Diga-se o que quiser, mas nem o perfil conservador da crítica que escolheu esses filmes, cujas obssessões estéticas iam de William Wyler até Antonioni e paravam por aí, justifica essa decisão tão no calor da hora. Mas justifica, sim, que seja a única lista que difere radicalmente de todas as outras. As duas primeiras posições, O Cangaceiro de Lima Barreto e Noite Vazia de Walter Hugo Khouri, denunciam um desejo de cinema "a sério", construído psicologicamente e, de preferência, com temas caros às grandes obras da Itália naquele momento, onde Antonioni e Fellini filmavam a decadência burguesa. Quando o projeto estético de Khouri tornou-se mais claro, em filmes cada vez mais subjetivistas e exploratórios do corpo feminino, seu cinema tornou-se indefensável, e seu nome jamais apareceu em qualquer das outras listas de dez mais. Se dessa primeira lista apenas quatro filmes ficaram retidos como obrigatórios em qualquer lista de dez mais (Deus e o Diabo na Terra do Sol, Vidas Secas, Ganga Bruta e Limite, em décimo e quase não entrando porque naquele momento o filme ainda estava em processo de restauração), alguns denunciam preferências estéticas dos julgadores (O Cangaceiro, O Pagador de Promessas, Todas as Mulheres do Mundo, Os Cafajestes e os dois de Khouri, já citados, todos de elaboração psicológica e uma certa indefinição "existencialista", comum na direita e na esquerda burguesa da época). Há ao menos um filme estranho: Amei um Bicheiro, que representa uma tentativa de drama burguês no seio das classes baixas e desfavorecidas. Esse tipo de representação, à medida que o Cinema Novo foi se asentando como o ideal estético do realizador brasileiro, foi naturalmente sendo cassado como sendo paternalista e edificante. A primeira lista a já prefigurar o
que hoje é o ideal do cinema brasileiro é a elaborada por
Moacy Cirne, em agosto de 1980. O ideal do cinema novo já estava
pra lá de solidificado e historicamente posicionado pelo trabalho
de críticos como Ismail Xavier e Jean-Claude Bernardet, e pelo
próprio trabalho contínuo dos diretores do próprio
cinema novo, que se mantiveram ao longo do tempo fiéis a seus propósitos.
Assim, a linha se desenhou dessa forma: É de se perguntar,
então, qual é o efeito da lista? Longe de julgar a opinião
e a erudição de todos os votantes, e acima de tudo sem criar
juízo de valor sobre qual enfim é a melhor obra: O cinema brasileiro caiu presa de sua própria memória. Não acreditamos mais no nosso poder de julgar? E pior: são os mesmos filmes que nos informam sobre o cinema e sobre o mundo há 20 anos? Os filmes ainda querem dizer a mesma coisa que disseram na época de seus respectivos lançamentos? Os debates nacionais ainda são os mesmos? Perguntas de advogado do diabo, sim, maldosas certamente e com um certo grau de impiedade propositalmente acentuado, mas não é para menos... é a memória do cinema brasileiro que está em jogo, uma memória de milhares de filmes e não simplesmente de cinco ou seis que povoam nosso imaginário. A boa partilha do cinema brasileiro encontrou assim um belo espaço para contar sua história, e assim é ela: CINEMA BRASILEIRO
A HISTÖRIA Será que o cinema brasileiro com suas grandes obras esquecidas será vítima de cinco filmes que não se pode perder? Será que, excetuados os trabalhos de uns dez diretores, o cinema brasileiro não presta? O que está em jogo é, mais que uma lista, a memória do cinema brasileiro, sabendo que a memória não é apenas um guardar, mas acima de tudo um permanecer não físico, mas simbólico, como dado cultural de uma comunidade, no caso, a comunidade do cinema brasileiro e, no limite, a comunidade brasileira como um todo. A grande notícia que a lista de 110 que a Contracampo traz é que ainda há espaço. Marginalmente, muitos filmes esquecidos são trazidos à tona, certamente sem espaço nos dez mais, mas com votações significativas para a relevância que lhes é dada historiograficamente, como Aopção, O Despertar da Besta, O Padre e a Moça, O Profeta da Fome, Carnaval Atlântida... Ainda a se notar, mesmo que negativamente, que nenhum dos filmes dos anos 90 teve votação significativa que o alçasse aos dez mais. Aliás, no fosso de quatro votos que separa 16 filmes brasileiros do resto da produção, não houve Central do Brasil, Amélia ou Santo Forte que brigasse com os grandes. E, para dar um fim alegre, a grande esperança: Cabra Marcado Para Morrer, preterido desde a lista de 88, revela-se definitivamente incorporado a História do cinema brasileiro como sexto filme mais votado, com volume de votos significativamente maior do que os que vêm imediatamente atrás dele. Prova de que o imaginário do cinema, apesar de tudo que vai contra, é mutável e pode agregar novos filmes bem como resgatar antigos, e que no fim há uma possibilidade de reincorporarmos à nossa vivência social mais filmes brasileiros. Lutemos. Ruy Gardnier |
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