Limite


Mário Peixoto na juventude

Plínio Sussekind Rocha e Otávio de Faria para
limiteanos

To see a World in a grain of sand,
And Heaven in a wild flower,
HoId Infinity in the palm of your hand,
And Eternity in an hour.
William Blake

Limite é uma tragédia cósmica, um grito de angústia, uma lancinante meditação sobre a imitação humana, uma doloroso e gelada constatação da derrota humana. É um filme trágico mas glacialmente trágico. É um grito de desespero mas estranhamente calmo e até educado. É um filme aristocrático — um dos raros da História do Cinema. Nessa calma e desesperançada tragédia cósmico, soçobra toda uma visão de mundo; todo um desejo de interação com o infinito se frustra. Limite exprime a tragédia do homem ocidental: a ânsia pelo infinito, pela eternidade que a mão não pode alcançar. Limite é um réquiem que nos revela a própria natureza da condição humana finita diante do infinito: é um clamor e um lamento que nos faz perceber não intelectual ou discursivamente, mas no íntimo, no sentimento, no abismo profundo do eu instantâneo, comovente, inquietante o mistério imenso da condição humana: a fundamental limitação do homem diante do mundo infinito.

Limite é a representação perfeita, no particular, dessa tragédia cósmico universal. No detalhe, vemos todo um mundo; numa expressão toda uma vida; numa cerca, a tragédia; num reflexo de água, a morte. Nenhum filme conseguiu isso com tanta força, clareza e completude.

No ano de 1930 o Cinema Silencioso se aproximava de seu melhor momento —- e de seu fim. The Crowd, de King Vidor, e A Linha Geral, de Eisenstein, já haviam sido feitos. Mas já existia também – e fazendo sucesso – The Broadway Melodies. Enquanto as salas de espetáculos de todo o mundo operavam uma rápida conversão para exibir os filmes falados, Eisenstein saía da Rússia, aventura que remeteria ao inacabado Que Viva México!; Dovjenko premido pelas autoridades soviéticas, terminava Terra, e Chaplin começava City Lights. Com o falado às portas, praticamente triunfante, as grandes obras finais do Cinema Silencioso ainda se faziam ou estavam por se fazer.

No Brasil, um amor intenso e delirante pelo cinema, típico da época do Silencioso, provocara o aparecimento do Chaplin Club e de Cinearte — e a Cinédia dava seus primeiros possas. Mas o que se fazia em termos de realização, era ainda tateante, apesar do esforço de Ademar Gonzaga e Pedro Lima e do talento de Humberto Mouro. E nesse momento, quando as obras-primas do Cinema Silencioso se faziam ou se anunciavam, que aparece Limite — um filme estranho no panorama do cinema brasileiro, mas não do mundial. Embora seja um filme quase anacrônico: mesmo Que Viva México! seria sonoro — como sonoro, "sincronizado" é City Lights. Mas não é por acaso que Limite é contemporâneo de filmes como Terra ou Que Viva México! Há algo comum neles apesar de todas as diferenças: são todos filmes onde a morte está presente de uma maneira que transcende o episódico. E Que Viva México! desagradou ao seu rico patrocinador comunista, Terra teve problemas com as autoridades culturais soviéticas e Limite não agradou a seu exibidor. Nascido em íntima relação com o Chaplin Club, do qual é a outra face — a face da realização, Limite aparece como um filme insólito naquele momento cultural brasileiro. Tão insólito quanto as discussões que no Chaplin Club se travavam a respeito de Sunrise. Nada no cinema de amadores esforçados, que era o cinema brasileiro, anuncia, às vésperas de sua feitura, o que Limite seria. Nada nesse cinema que procurava livrar-se de sua infância revelava que um filme como Limite estava para nascer. Nada, neste filme por todas as maneiras insólito, revela influências ou marcas deste cinema em embrião. Mas toda a evolução do Cinema como arte, não alemã, francesa, russa, americana ou brasileira, mas ocidental, anunciava Limite — filme brasileiro de dimensões universais, remate e conclusão do Cinema Silencioso.

Limite é um filme de rara precisão técnica e formal embora revele, às vezes, as limitações impostas por seu meio cinematográfico em formação, no aspecto técnico. No formal, todas estas limitações são superadas pela imaginação e pela criatividade de Edgar Brazil. Resulta daí um filme de feitura extremamente refinada, revelando nos menores detalhes de realização, técnica e formalmente, um agudo e amadurecido sentido dos meios formadores do Cinema e um domínio seguro do formalismo só compatível com uma arte acabada: embora feito por um jovem, Limite nada tem de juvenil.

A condução dos atores é notavelmente moderna: contida, sóbria, tensa como o filme e também meticulosa e refinada como ele. Como refinados e significativos são os menores gestos. Nenhuma gesticulação é exagerada, nada é fora de medida, tudo é preciso.

Não há make up em Limite e as figuras são tratadas com extremo realismo neste filme nada realista onde tudo é realista: céu aberto, decoração natural, histórias. O realismo porém não é mais do que uma ponte e Limite não pára nele: projeta-se a partir dele para além das fronteiras do real e, pela montagem, chega às imensas regiões do poético.

Limite é um filme de construção precisa, de cadência lenta, montagem perfeita de imagens, por si muito belas, mas também altamente significativas e organizadas em função de um princípio muito claro. Um filme que alterna composições rígidas e enquadramentos estáticos com vertiginosas corridas de câmera, libérrimas. Um filme de cadência lenta, triste e fúnebre, às vezes majestosa. Uma lentidão que se acentua pelo uso continuado de fusões, por vezes bem longas, que procuram ainda mais separar estes planos imensos, completos em si mesmos onde a ação se esgota. Mas um filme de ritmo preciso, estrutura minuciosa, onde a montagem faz desfilar as imagens numa ordem exata, com uma fatalidade que lembra o tema, uma fatalidade que leva da primeira à última imagem, inelutavelmente.

Limite é um filme fundamentalmente brasileiro: nestas cercas de pau-a-pique; nessas tronqueiras; neste capinzal ventado; nessa praia; nesses alagados; nessas árvores retorcidas, nessas palmeiras descabeladas pelo vento. São infinitamente brasileiras as janelas, os portas, as paredes. O musgo, a estrada, as fachadas, o beco, as faces no cinema, as perspectivas das praias, os pescadores que consertam as suas redes, as proas oscilantes das canoas, as pessoas que passam. Tudo é puro Brasil — Mangaratiba, brejo, lodo, praia, mata. Estas ruínas, de vegetação pendente, estes muros manchados, este céu branco, este cemitério lodoso é Brasil. .— Os personagens se incorporam à paisagem e, através dela, se exprimem.

Toda a beleza fotográfica e de composição, toda a força artística da mise-en-scène, a sofisticação de realização, se opera sobre ela. A conjugação do formalismo com a intenção, da forma com a paisagem e desta com os personagens está a serviço de um agudo sentimento poético, que é uma meditação sofrida sobre a decadência e a morte, sobre a inutilidade do fazer, sobre o desespero e a fuga — sobre o profundo, enorme, lancinante sentimento de limitação humana e seu impossível sonho, desejo de conquista do infinito.

Essa paisagem trágica que está presente em todo Limite e que o domina ferreamente foi rica e florescente no fastígio da cultura do café até o final do século passado. Há no filme o travo amargo do passado esplendor, que se reflete em todas as imagens cuidadosamente compostos e nos próprios personagens tão educados, tão contidos e refinados nas suas aristocráticas posturas. As ruínas que aparecem em Limite, filme dirigido por Mario Breves Peixoto são as ruínas dos Breves. É dessa decadência que o filme tira sua força.

Certamente Limite não é um filme comercial no sentido próprio do termo. Nunca foi, inclusive, exibido comercialmente. Mario Peixoto, diante da reação negativa da crítica, à sessão inaugural, promovido pelo Chaplin Club, no Capitólio, a 4 de maio de 1931, desistiu de explorá-lo comercialmente. O rompimento comercial é simbólico, como simbólica foi sua realização, executado sem recurso a nenhuma firma: o único profissional, no sentido estrito, era Edgar Brazil que, mesmo assim, era quase um estreante. Esse filme perfeito e magistral nasceu e viveu liberto de todas e quaisquer injunções estranhas ao próprio desejo de realizá-lo. Foi pensado e realizado apenas como Cinema.

Meio século depois de concluído, Limite confirma a impressão de universalidade, que sempre provocou, despertando igual entusiasmo e admiração em platéias do Rio, Nova Iorque, Berlim e Veneza. Filme brasileiro, Limite transborda os contornos de ser brasileiro para ser universal – como o filme de Eisenstein no México, Dovjenko na Ucrânia, de Flaherty na ilha da Aram, no canal da Irlanda. Esse filme que não envelhece nem cativa, sendo brasileiro, pelo exotique é visto como se o Silencioso não tivesse morrido — só Chaplin consegue a mesma coisa. Limite está em casa em qualquer parte do mundo — como esteve em 1931 no Rio, durante anos no Salão Nobre da Faculdade Nacional de Filosofia, na Sala Funarte, no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque — e agora em Berlim e no Lido de Veneza. E como estará daqui a muitos anos em qualquer parte do mundo em que for projetado.

Saulo Pereira de Mello, Rio, 1981