Natureza e ritmo
A propósito de Limite, filme nacional

Mais ainda que A Bagaceira foram certos filmes russos, foram aspectos da natureza entrevistos em cenas especiais que me convenceram dessa tese do autor, de que em matéria da paisagem: "O ponto é suprimir os lugares-comuns da natureza".

Mas, se aceitava a tese em geral, a dúvida continuava em relação ao Brasil do cinema. Saturado das belezas naturais que os nossos filmes desapiedadamente exibem, quase sempre orientadas no sentido do "cartão postal", raras vezes conseguiu aceitar sem constrangimento essa nossa natureza. Um lugar-comum multiplicado por um número de combinações por demais finito... – na realidade como na obra de ficção. E nunca mais intensamente do que no cinema.

Limite, filme nacional, realização de Mário Peixoto, é a violenta negação de tudo isso. A impressão que se tem com os bons filmes russos amplia-se e atinge o Brasil.

O autor da Bagaceira tem realmente razão: "O ponto é suprimir os lugares-comuns da natureza. Mas a questão, que interessa, é saber suprir". Só o verdadeiro artista o sabe. Só ele consegue escolher em mil o que é diferente, o um que é combinação maravilhosa que não se confunde com nenhuma outra e que nunca mais se realizará.

A razão da falência de nossos filmes de "natureza" foi a falta de um temperamento verdadeiramente artístico entre os nossos realizadores. Filmou-se em geral da natureza tudo que se acha convencionalmente bonito. As vistas conhecidas, as oficiais obrigatórias e um ou outro aspecto novo que apareceu no momento.

Vimos panoramas, vimos dezenas de vezes o Corcovado e o Pão de Açúcar. Vimos algumas vistas interessantes. Mas sempre era a mesma impressão de já visto, de coisa conhecida – um fundo constante onde aqui e ali apareciam detalhes novos. O bastante para uma condenação em regra da natureza como elemento preponderante dos nossos filmes.

Limite é sob esse ponto de vista uma verdadeira revelação para o nosso meio. Não há uma só cena da natureza que tenha sido tomada sem um estudo minucioso de sua significação estética. Não se filmou a bem dizer essa ou aquela porta de casa ou onda rolando ou árvore isolada ou nuvem que passa. Tirou-se entre mil a uma que era necessária. E foi "arrancada da natureza" de tal modo que nenhuma outra se concebe capaz de substituí-la.

É que na verdade a natureza não é bonita e interessante de um modo contínuo – sem a carga imediata de se tornar comum. A natureza "tem momento". Dos mil e um aspectos que tomam as coisas do mundo em cada lugar quando se as observa, um, – ou pouco mais que isso –, exprime realmente qualquer coisa de especial, de extraordinário, que justifica o entusiasmo que o comum tem pela natureza. É um momento em que a natureza é realmente "feliz".

É a capacidade de captar esse momento, de sentir a combinação que entre todas exprime do melhor modo possível tudo o que ela contém de valor estético aproveitável, que distingue Limite de tudo que já se tentou no cinema nacional – e que o aproxima extraordinariamente desses filmes russos que em certas cenas provocam nos centros cultivados manifestações ruidosas da platéia.

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Geralmente o que se faz quando se tiram cenas da natureza, é filmar uns de permeio com os outros, todos os momentos "de natureza", os "felizes" e os comuns. Num lugar onde há um coqueiro especial e um sem número de outros elementos comuns, a técnica habitual seria fotografar tudo – uma vista geral do lugar onde se veria naturalmente o coqueiro, talvez mesmo na vizinhança de outros coqueiros em nada interessantes. Bom fotógrafo seria o que conseguisse deixar o coqueiro especial bem à vista, chamando logo a atenção.

Ensinando o ângulo o cinema moderno (a coisa mais "sem preconceitos" que o homem já viu) mostrou o absurdo de toda essa concepção. Assim Limite (um dos filmes mais "sem preconceitos" que já vi) não fotografará o local todo – mas o coqueiro significativo apenas. E filmaria de cima, se preciso fosse – porque o filme como "cinema moderno" que é, deixa a impressão de que tudo é possível em matéria de colocação de máquina.

Limite focaliza o coqueiro de baixo, porque é de baixo, visto nesse ângulo (e em nenhum ângulo diferente desse) que exprime perfeitamente o que o cenário1 do filme exige dele.

Limite procura assim arrancar de cada cena o seu máximo rendimento. E não utiliza a cena apenas como elemento estético mas também como elemento de significação no desenvolvimento inteiramente ritmado a que o filme obedece.

No coqueiro filmado, como nas outras cenas todas, há que distinguir sempre o "elemento estético" e o "elemento de significação". Como elemento estético é tal que realiza o melhor aproveitamento da beleza natural do coqueiro, de cada cena. Como elemento de significação sucede a outra determinada cena e dura um determinado tempo; é da consideração desses dois fatores que surge o ritmo de Limite: da sucessão de uma imagem a outra e da duração de cada imagem.

Limite caracteriza-se ao que me parece pela constante oposição do elemento estético e do elemento de significação. Se o filme tem mesmo algum defeito "para ser visto" (para ser "estudado" é ao contrário a qualidade que mais contribui para dar ao filme o interesse cinematográfico que tem) é essa coexistência de duas preocupações igualmente fortes em cada cena – que a fraqueza de percepção do homem não consegue harmonizar perfeitamente. O próprio realizador é mais sensível, creio eu, ao lado artístico da cena do que ao seu valor de significação. O que não importa em defeito, mas revela a "maneira", explica a sua personalidade como cineasta.

Constantemente a cena que se está vendo domina o desenvolvimento que se está desenrolando, bergsonianamente se diria que a cada momento o devenir2 do filme é rompido na sua continuidade pelo momento artístico que quer parar e se fixar numa obra de arte. A todo momento a cena tende a se tornar fim em si, de tal modo conhece o seu valor estético como parte, como unidade.

Isso não é defeito. É antes coexistência de qualidades. Ou é defeito apenas porque pede ao cérebro humano um esforço que dificilmente pode dar. Limite exige dos que o vejam o mesmo senso artístico, a mesma compreensão, a mesma percepção simultânea de ritmo e beleza picturial que o seu realizador tem. É a obra de um artista que se dirige a artistas.

É preciso realmente um certo senso artístico para gostar de Limite. Mas para compreender perfeitamente o que há de fora do cmum na sua realização, é indispensável uma sensibilidade, especiual, uma capacidade de perceber a diferença real quie há entre dois entre-choques de ondas que se produzem com sefundos de intervalo e que o comum confundem, é preciso mesmo um certo hábito de ver cinema como arte. É um filme para iniciados que só iniciados compreenderão.

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Se no elemento estético de cada cena domina o sentido de seu aproveitamento feliz, é o ritmo que se afirma no elemento de significação que as cenas representam.

E talvez nisso resida a maior originalidade do filme. É o ritmo que dá significação à cena. É a unidade de ritmo do filme que estabelece o sentido dos "casos" que o filme narra, que os reúne e os funde numa história só. Quem não for sensível ao ritmo cinematográfico ficará muito aquém da significação que os casos adquirem.

Nada tinha visto de parecido com isso a não ser algumas seqüências inesquecíveis de Cadáver Vivo. Apenas o ritmo lá vivia em polo oposto, – o da rapidez, – enquanto que o de Limite busca propositadamente a lentidão que o "caso" inspirou ao seu realizador.

É o ritmo que prende as cenas entre si e que anima cada imagem, exprimindo por si mais ainda que o conteúdo da imagem. Só o ritmo lento com que se apresentam os objetos que a costureira usa no seu trabalho pode exprimir o seu estado interior, o seu cansaço da vida monótona que leva. Quando logo depois a cena mostra a fisionomia da costureira, exprimindo toda essa melancolia por um gesto da face, a afirmação já está feita. É apenas reforçada.

No decorrer do filme o fato continuamente se repete. A cena em si (como os atores – não é quase preciso dizer) recua e empalidece diante do ritmo que a carrega. São verdadeiras unidades com que o realizador do filme faz o seu "montage". Porque, sem paradoxo, nunca um filme fugiu tanto à continuidade visual absoluta apesar de todo o trabalho de continuidade que a máquina opera.

É que não há continuidade visual no filme todo – apenas cenas isoladas. A continuidade visual não está na base da concepção do filme – apenas na realização de certas "imagens". No filme, o que há é o "montage" russo com imagens de maior ou menor duração (conforme o tempo de filmagem e o trabalho de acompanhamento da máquina).

Com essas imagens de "tamanho" variável, se assim se pode dizer, o realizador "orquestra" o filme. Porque – e não é preciso saber por fora basta ver o filme – de princípio a fim todas as imagens foram matematicamente calculadas na sua duração. Essa dura tanto (tem tantos metros) porque aquela dura tanto – e as duas devem ter igual duração porque tais outras foram calculadas nessa mesma base. Um gráfico de Limite certamente deixaria atônito muito espectador que ainda pensa que cinema é apenas filmagem de cenas, mas é coisa perfeitamente concebível. Vejo-o mesmo sem curvas pronunciadas, cheio de círculos, equilibrado, todo ele vivendo em função de uma linha central.

Esse eixo não é como se pode pensar à primeira vista o barco onde começa e acaba o filme, onde se reúnem os destinos separados dos heróis. É muito antes o "ritmo do barco". E a diferença é tão essencial que só ela basta para caracterizar Limite em oposição a qualquer outro filme já realizado.

Quando os heróis narram a vida que tiveram em terra firme, sente-se graças 1à rigorosa unidade de ritmo do filme, que o "ritmo do barco" foi transportado para terra, que continua "presente" em todos os casos que narra.

O efeito cinematográfico que resulta é realmente extraordinário e realiza, se não me engano, isso que tanto seduziu os russos e os franceses no que imaginaram que fosse o cinema sonoro: permite a evocação de um estado de espírito, de uma situação anterior, no decorrer da cena que se assiste. Uma evoca a outra. O ritmo a que cada cena obedece é o ritmo constante que atravessa o filme. O ritmo do barco, vindo à terra, acompanha a narração dos fatos, e está presente em todos os momentos. É o grande segredo do filme. Em tal momento de desânimo na vida narrada desse ou daquele herói é o desânimo do barco que está presente. Mas se o momento é de alegria, o desânimo do barco – diante de que qualquer alegria terá que se curvar, – continua presente lembrando o fim, lembrando sem cassar o inevitável, marcando a cada momento os limites dentro de que qualquer estado de espírito que não seja o do barco pôde variar.

Em Limite o ritmo limita a cada momento a possível independência de significação de cada cena. É a presença que diz que não se acredita naquela união feliz, naquele emprego, naquele passeio – porque tudo aquilo é inevitável e passageiro, porque o desânimo daqueles desgraçados, que focaliza só pode aumentar e tem fatalmente que ir ter a esse barco onde os encontramos reunidos e definidos por esse ritmo de angústia e desespero.

Todos esses que se viraram precipitadamente para o cinema sonoro por essa possibilidade que divisaram nele: fazer coexistir presente e passado – ou melhor: de conseguir fazer o passado presente no presente (toda a "evocação auditiva" de Pudóvkin) encontram aqui uma resposta que é uma solução em termos perfeitamente cinematográficos e que não fala apenas ao cinema nacional (que nem sequer formulou a pergunta – e que não perceberá a resposta) mas ao cinema em geral.

Se a importância de Limite como filme nacional é grande, não me parece em nada menor a sua significação como filme em si. Já podemos ir às salas da "avant garde" de Paris discutir cinema com exemplos de casa.

Octávio de Faria

O Jornal, 17 de junho de 1931


1. scenario: o roteiro do filme, em expressão da época, importada do francês scenario.

2. devenir: termo filosófico que converteu-se em português para "devir"