Ilha das Flores e a força do curta brasileiro

 

Ao procurarmos as pessoas para votar, nosso pedido era simples: escolha seus 10 filmes favoritos no cinema brasileiro, aqueles que você considera os mais importantes na sua formação. E ponto. Nunca especificamos entre curtas ou longas, falamos apenas em "filmes". Embora estivéssemos com isso incluindo sim os curtas, achávamos melhor ser de forma não direta (tipo, "incluindo curtas") porque poderíamos desta forma dirigir o voto do consultado. Além do que, julgar que o curta não está incluído na categoria de filme é compactuar com o preconceito corrente.

Mas, pensando bem, será mesmo um preconceito? Se formos olhar bem, a verdade é que a história do cinema consagrou um formato como aquilo a que nos referimos como filme: o longa metragem narrativo, de ficção. Sempre que vão falar de documentários, as pessoas se referem a eles desta maneira, raramente como "filme". Quanto aos curtas, idem. Ninguém se refere a eles como "filmes". Assim, vemos que a palavra preconceito não se aplica exatamente, no que ela significa. Afinal, não se trata de um pré-conceito, mas sim de um conceito formado, fechado mesmo.

Pois bem, mesmo com isso tudo "jogando contra", o curta brasileiro sobressaiu na pesquisa. Sobressaiu acima de tudo porque nunca mencionamos curtas como possibilidade ou não de voto, então todas as manifestações foram espontâneas, e devemos pensar que muitos não votaram em curtas por nunca terem pensado neles como "filmes" passíveis de voto.

Mas, porque digo que o curta sobressaiu? Bom, ter um filme como Rio 40 Graus, um marco seminal do cinema nacional, um autêntico clássico, empatado com Ilha das Flores, com 14 votos espontâneos me parece ser um fato de destaque. Fora isso, tivemos ainda o Di de Gláuber com 9 votos (mostrando que proibido ou não, ele foi bem visto), empatado com filmes como Todas as Mulheres do Mundo, à frente de outros como Noite Vazia e com mais votos que todos os filmes de Gláuber depois de Deus e o Diabo e Terra em Transe, aí incluídos O Dragão da Maldade e Idade da Terra. E vários outros curtas foram mencionados, com 2 ou 1 voto, lembranças sempre espontâneas entre os 10 maiores filmes do cinema brasileiro, vejam bem. Este número de menções de curtas, podemos afirmar, jamais seria visto numa lista de melhores filmes em nenhum outro país do mundo, nem mesmo na França, meca do curta metragem, nem jamais nos EUA, por exemplo.

Isso nos fala de duas coisas, certamente: a primeira se refere especificamente ao Ilha das Flores de Jorge Furtado, que se coloca como um marco do cinema nacional tal e qual qualquer um dos filmes mais votados desta enquete. Existe um cinema brasileiro antes e depois dele. Aliás, existe acima de tudo um audiovisual brasileiro antes e depois dele, porque se pensamos nas ramificações de sua influência na TV temos uma idéia da sua força. Ele marca ainda a descoberta nacional de uma geração de realizadores do Rio Grande do Sul que deixou muitas marcas no cinema nacional, começando pelo super 8, com passagem pelo longas na década de 80, grande produção de curtas (vários deles, excepcionais) nos anos 90, e que agora chega de novo ao longa, com Tolerância de Carlos Gerbase, mas em breve com 4 (?!?) projetos de Furtado, sendo dois deles transposições de trabalhos na TV e outros dois realizações originais. Neste sentido, Ilha das Flores talvez seja a grande "descoberta" desta enquete, no que se refere a afirmação de um novo clássico, um novo marco.

A segunda conclusão da lista é geral: a produção de curtas no Brasil é um fenômeno impressionante, reconhecido, respeitado. Não se pode fugir dela ao se pensar o cinema brasileiro. E isso é ótimo. É importante lembrar que nesta lista dos mais votados há filmes de alguns dos nossos maiores cineastas, como Joaquim Pedro (Couro de Gato, Vereda Tropical, O Poeta do Castelo), Leon Hirszman (Pedreira de São Diogo, Nelson Cavaquinho), Humberto Mauro (A Velha a Fiar), Rogério Sganzerla (Documentário), além de Gláuber. Há filmes seminais de diretores importantíssimos, que tiveram poucas realizações no longa, como Arthur Omar (O Som, O Inspetor), Andrea Tonacci (Bla Bla Bla), Ivan Cardoso (HO) ou Linduarte Noronha (Aruanda). E há ainda clássicos do formato, sempre presentes nas retrospectivas, como Mato Eles?, de Sérgio Bianchi ou Viramundo de Geraldo Sarno, sem falar nos filmes da novíssima geração como A Espera, Juvenília, A Mulher do Atirador de Facas, Socorro Nobre, Três Moedas na Fonte. É de se pensar se não é caso de incentivar uma lista com os melhores curtas nacionais, exclusivamente. Seria longuíssima, tão grande quanto a de longas. E incluiria vários outros títulos além destes mencionados. Pensamos em Fala Brasília, Ôxente Pois Não, Vocês, Terral, O Pátio, Wholes, Meow, Subterrâneos do Futebol, Frankenstein Punk, Partido Alto, Viver a Vida, Rota ABC, Onde São Paulo Acaba, Geraldo Voador, Esta Não é Sua Vida, Pornografia, Lavra-Dor, Segunda Feira, O Enigma de um Dia, Barbosa, Arraial do Cabo, Dov´e Meneghetti. Isso num brainstorm muito rápido, pessoal e incompleto.

Mas, talvez o principal seja um problema: e os novos curtas, alguém os vê? Restritos ao mundinho de seus festivais, será que eles podem atingir o imaginário coletivo como estes atingiram tão espontaneamente? Não custa lembrar que Ilha das Flores foi exibido regularmente nos cinemas, que alguns dos curtas do Cinema Novo eram compilados em longas (como o Couro de Gato, Vereda Tropical, Pedreira de São Diogo), e vários dos outros eram acontecimentos por si só, como Di. Hoje, fechados nos festivais, será que não sacrificamos nossos curtas a uma anonimidade não merecida? Eu mesmo sou de opinião que o melhor FILME dos anos 90 é um curta: Juvenília, de Paulo Sacramento. E com isso não quero dizer que só há maus filmes no cinema nacional, de jeito nenhum. Tenho pelo menos uns 15 longas de que gosto muitíssimo, além de inúmeros outros de que gosto. Mas, o melhor de todos é o filme do Paulo Sacramento, uma porrada muito mais eficaz e profunda inclusive do que o Cronicamente Inviável, um elogio que ele, como montador e grande admirador do filme de Bianchi, certamente dispensaria. Mas, o dele é um filme apenas. Temos os já citados Enigma de um Dia, Essa Não é sua Vida, Terral, ou ainda Kyrie, Texas Hotel, Náufrago, AMA Ceará, uma série de filmes efetivamente maiores do cinema nacional, independente de sua duração. A lista celebra nossos curtas, sem dúvida. Mas, agora é caso de pensar no seu futuro. Porque, não se enganem, a tradição do curta no Brasil é um fenômeno isolado no mundo, com certeza.

Eduardo Valente