Uma fecunda criminalidade

Se Barravento, primeiro filme de Glauber Rocha, pode ser considerado uma violenta revolução no processo cinematogrâfico brasileiro, Deus e o Diabo na Terra do Sol, então, nem se fala. Em tudo e por tudo ele é o protótipo dessa revolução, o único e verdadeiro barravento de nossa cinematografia. Barravento, é bom que se diga, significa transformação violenta. Vidas Secas foi revolução mas não no sentido intempestivo que é a constante vital de Glauber Rocha.

A vida do jovem cineasta é marcada pelas atitudes. À primeira vista do observador alheio, elas passam como tal. Não é que, com o tempo, sua desordenação vai tomando uma consistência de coisa orgânica, indivisível? De corpo da coisa e não de acessório? Houve época em que GR tinha a mania da expressão criminalidade total!, que gritava como leitmotiv, nas rodas de amigos, cartas e escritos pessoais. Não sendo louco seu dono, tomam-se essas palavras com certa surpresa e quase em vão busca-se uma causa que as justifique. Dentro da retórica baiana, o ato gratuito é um refrão que por assim dizer tempera suas intervenções. A expressão-chave criminalidade total! é um típico ato gratuito, de tipo diferente do padrão sartreano. Diria, por sua importância, tratar-se de um ato semigratuito.

Para quem conhece Glauber Rocha, Deus & Diabo é o mais fascinante dos filmes. Não foi à-toa que o jovem italiano Bernardo Bertolucci1, entrevistado em Cannes, colocou o realizador entre os quatro de sua predileção. Amigo de GR, Bertolucci sabe do laço de coerência que existe entre ele e o filme. Para quem não conhece GR, o filme é uma revelação estranha das coisas do Brasil (pois o Brasil transborda em GR), um Brasil Importante e desconhecido, um Brasil possuído das potencialidades que apenas começam a se revelar.

A teoria desse ato semigratuito deverá ser a tese deste artigo. Ë o elemento mais próximo que achei para traduzir o espírito brasileiro de GR, e, ao mesmo tempo justificar certas coisas do filme que podem parecer desnecessárias ou meramente formais, O que se encontra por trás disso é um pouco o desengajamento do brasileiro cuja displicência é também semi-gratuita. Pois não? A semigratuidade é um determinismo quase de ordem pragmática, um meio indispensável, uma condição sine qua non para a validade e utilidade das ações.

Passemos ao filme: O aspecto de Deus & Diabo é difícil de ser traçado em sua generalidade. Antes de ver o filme, tive, através de um telefonema, o impacto da notícia de sua escolha para Cannes, superando Vidas Secas no escrutínio da Comissão de Seleção do Itamarati. Uma das informações mais precisas e que bastou para me revelar a dimensão do filme foi a de que o consideravam "melhor que o Salvatore Giuliano". Para quem está sem coordenadas, esta foi decisiva para situar uma obra da qual só se podia imaginar alguma coisa por meio da relação com Barravento, com o qual, aliás, ela tem muito pouco a ver. Uma base para julgamento de Deus & Diabo é portanto a fita de Francesco Rosi, e essa base é menos temática do que formal, porque, em verdade, enquanto Rosi é sumamente objetivo, GR, com suas atitudes, revela-se mais nos enxertos do que no miolo de seu filme, No entanto, a atmosfera fotográfica, a consciência geográfica, o aspecto histórico-documental são muito parecidos, em ambos os filmes.

Falei novamente em atitudes e sinto o remorso de parecer criticar GR, mas, na verdade, se se coloca o valor temático do filme em evidência, é o conjunto que conta, tanto em sua ambigüidade, em sua contradições, quanto em sua parte positiva. E, portanto, as atitudes, as semigratuidades são momentos inseparáveis na constituição desse todo que permanece Deus & Diabo é composto de ações e reflexões e é nestas últimas sobretudo que se notam os momentos que poderiam ser considerados inúteis. Durante a ação, a vertigem se apossa do espectador de forma a impedir a caracterização da atitude desprezível. O morticínio do Monte Santo, por exemplo, é um ato semigratuito típico que vai dentro do brado retórico de criminalidade total! de que GR estava eivado durante a filmagem. A intenção de Antônio das Mortes era o assassinato do beato Sebastião e não dos fanáticos que o cercavam (o povo, enfim), conforme se pode sentir em suas palavras ao cego Júlio, mais tarde, em Canudos. Nos momentos de reflexão, os atos gratuitos ficam mais evidentes porque perdem a possível característica de atos impensados. O mesmo Antônio das Mortes, por exemplo, aponta subitamente uma arma para o crucifixo preso à parede durante sua entrevista com o vigário, nos momentos que antecedem a morte do beato. Embora coerente, dentro da seqüência, com os acontecimentos que vão suceder, o ato é mais uma postura inconseqüente na cena que se desenrola. Como esses, poderíamos citar inúmeros outros, condicionados por influências de fora do contexto do filme, que se sucedem em momentos posteriores.

Em contrapartida, apesar dessa dialética estrutural, as teses de GR chegam aos poucos através de Manuel (em relação a quem sente-se certa antipatia do realizador) e com o desenvolvimento do mesmo Antônio das Mortes, que é, sem dúvida, o elemento de ligação entre o realizador e a fita, sentindo-se nele algumas afinidades com o Firmino de Barravento. As semigratuidades desse "matador de cangaceiro" justificam a tese da liberdade criadora, isto é, aquela pela qual se constata que é na livre e desordenada manifestação da vontade que uma personalidade artística se revela. Permita-se, por exemplo, a uma pessoa capacitada, a análise psicanalítica das reações de Antônio das Mortes e atente-se ao resultado: o ato gratuito por vezes se confundirá com o ato falhado, e revelará, por trás da capa, do porte, dos armamentos, a força criadora de um realizador jovem, ainda sujeito ao jogo fascinante das manifestações da infância.

Se se avança na pesquisa desse tipo tão fértil, pode-se garantir a certeza do rumo para a verdade. O que GR apresenta nas outras personagens são reflexos de teses alheias, de manifestação da História, citações de fatos reais onde a objetividade é o elemento indispensável. Há, é claro, momentos de convergência de emoções ou raciocínio, mas é Antônio das Mortes

quem dará, sempre, a palavra, a derradeira justificativa. A ambigüidade dos demais aqui se revela como um determinismo de ordem geral, de tal forma suas palavras contradizem manifestações anteriores. A humanidade ou o humanismo de Antônio das Mortes é o denominador comum de sua presença. Tendo um antipático mister, sua figura entra em conflito com sua função. De início, o artifício de GR, contratando um dobrador profissional, é importante para definir essa simpatia que exala de um pistoleiro profissional.2

Nenhuma personagem se mostra coerente em relação a sua postura diante da vida, e confirma-se que é a incoerência uma das chaves do estilo de Deus & Diabo. A mensagem do filme, inconformista e humana, não vem, portanto, do discurso da fase reflexiva nem do dinamismo da fase ativa, e sim da participação do espectador face ao filme visto como um todo. É a miséria humana a tomar-se, por momentos, riqueza. É a revelação do sobrenatural e sua negação. Ë a pregação do ódio ou a manifestação do amor. o sertão a virar mar. Ë a vida do homem, a luta contra a natureza; é, sobretudo, o momento presente.

O momento presente é a parte de inspiração para Manuel e para Antônio das Mortes. Este, em sua certeza, nega aquele. Cabe também, agora, identificar este ato com a expressão criminalidade total! que se tornou o lema interior de GR neste período. Seu sentido metafórico é vastíssimo, mas ela pode ser facilmente justificada através da constatação das cenas citadas à guisa de ilustração. O crime, no momento presente, é o inconformismo em seu sentido mais dramático.

Junto ao cego Júlio, Antônio das Mortes não parece tão propenso ao crime. Pensando, ele contemporiza. (O filme, quase todo, parece condenar o raciocínio.) Deixando o cego e deparando-se com Corisco, ele parece dizer criminalidade total! ao invés de "S’entrega, Corisco!" E, então, como se estivesse de olhos fechados, atira, não querendo acertar. GR sabe o quanto é difícil afastar o compromisso que nos une a um mundo que vive de conceitos ultrapassados. (E às vezes ele parece não querer este afastamento). É na gratuidade (Antônio das Mortes é quase um beatnik, também) e pela revolução que o afastamento virá.

Deus & Diabo progride com toda a força sobre essa praia angustiante. A visão do mar repousa e encerra o filme.

Rio de Janeiro, dezembro de 1964

David E. Neves


1 Bernardo Bertolucci é um jovem realizador da nouvelle vague italiana. Seu segundo longa-metragem Prima della Rivoluzione, alcançou grande sucesso na Semana da Crítica de Cannes, 1964.

2 A voz de António das Mortes é a mesma que, nas tevês cariocas, faz o Zorro, herói de muitos filmes e estórias. Antônio das Mortes tem, portanto, a fala de mocinho e, ao ouvi-lo pela primeira vez (na sacristia), sente-se aumentarem, em vez de diminuírem, os laços da participação afetiva.