(Publicado n'O Estado de Minas,
1º de setembro de 1984, quando do relançamento do filme em Minas
Gerais.)
"O último filme ‘Made in Cascadura’,
que vimos na Cinelândia, tinha dois metros de celulóide,
esticando uma bobagem que caberia nas costas de um selo. O público
riu do drama até onde pôde e, quando não pôde
mais, foi chorar o dinheiro da entrada na cama, que é lugar quente...
" A bobagem a que o cronista Henrique Pingetti se refere é o
filme Ganga Bruta, que poucos dias antes estreara na Cidade Maravilhosa,
cercado por chacotas e piadas de mau-gosto. "Abacaxi da Cinédia",
"o pior filme de todos os tempos"; o autor para muitos um "Borzage de
São Januario", "Freud da Cascadura "; a produtora do filme —
Cinédia — para outros, segundo outro, daria uma "esplêndida
fábrica de goiabada", e por aí afora. O senso de humor
do pessoal não era dos "piores": este tipo de recepção
irônica a obras artísticas que fugiam ao senso dominante
não era e não é novidade: anos antes, o poeta Augusto
dos Anjos fora malhado impiedosamente pela crônica local; outro
filme, Limite, recebera também críticas hostis,
e etc. e etc.
Quando da primeira exibição
Ganga Bruta rendera parcos quinze mil réis, sumindo logo
depois de circulação. Graças a Carl Scheiby ele
foi resgatado: remexendo nos arquivos da Cinédia ele encontrou
os negativos; remontou-o (com aprovação tácita
de Humberto Mauro) e exibiu-o em 1952 na 1ª Retrospectiva do Cinema
Brasileiro, obtendo então consagração. Assim, depois
de considerado praticamente perdido, o filme ressuscitou por um acaso
fortuito. Agora, graças ao empenho de empresas privadas, do governo
Estadual e da Embrafilme, pudemos tomar contato com esta obra praticamente
inédita para a novíssima geração; Infelizmente,
só pude assisti-la uma vez, quando da abertura da mostra, cabeça
sob leve efeito do coquetel e do blá-blá costumeiro que
acompanha tais eventos; sendo assim, minha impressão inicial
foi de perplexidade pura. Depois, o processo gradual de reconstruir
as imagens na mente, o papo com os amigos a respeito, quando então
podem surgir observações curiosas — "achei machista" —
analogias — lembrei os melodramas de Fassbinder... coisas de saída
de cinema, que, afinal de contas, pertencem de certa forma ao objeto
fílmico. Então pude ter uma impressão mais ou menos
geral da obra. Pode-se dizer que estou assistindo-a há uma semana.
"Ganga", segundo a definição de Aurélio é
um "resíduo, em geral inaproveitável, de uma jazida mineral";
e "um tecido forte, azul ou amarelo".
Ganga bruta: um engenheiro mata a esposa
na noite de núpcias. Motivo: ela o traía. Só teremos
certeza disso no decorrer do filme, quando, em "flash-back", ele rememora
o namoro, as suspeitas, o noivado e, por fim, o crime. E absolvido (como
vêem, a história, afinal de contas, é assaz conhecida...)
por unanimidade e refugia-se no interior (na dupla acepção
da palavra). A metáfora obviamente remete ao engenheiro Marcos
Resende, que após o crime torna-se um resíduo duro e forte
como um minério, e justifica-se tendo em vista ser ele um engenheiro.
Neste entrelaçamento de imagens, metáforas e alegorias,
Humberto Mauro narra a sutil transformação de Marcos,
inserida sempre num contexto marcadamente sensual, plástico,
feérico e impressionista. O que sem dúvida atrai e surpreende
em "Canga Bruta" é esta forte carga de sensualidade, captada
magistralmente por movimentos de câmera expressivos, nitidamente
sensuais no modo como se aproximam dos objetos. Como já observou
Glauber, este "é um filme (...) concebido com absoluta maturidade".
Humberto Mauro a consegue de maneira algo despretensiosa, vezes desequilibrada,
utilizando efeitos naturalmente da época, como exemplo o excesso
de metáforas (que, como já percebemos, iniciam-se a partir
do próprio título) facilmente constatáveis tanto
no cinema que se fazia quanto na literatura. Deve-se registrar, já
que falei em literário, este natural parentesco literário
(que afinal de contas atingiu na época proporções
maiores, vide Semana de Arte Moderna de 22, movimentos europeus de vanguarda)
que a obra de Humberto Mauro apresenta, sem esquecer que boa parte de
seus primeiros filmes realizaram-se sincronicamente à existência
da revista "Verde" de Cataguases. Em Ganga Bruta traços de José
de Alencar podem ser discernidos sem maiores esforços, que, felizmente,
não influi muito.
Alguém já notou que se Humberto
Mauro tivesse se tornado romancista sua contribuição para
nossa cultura teria sido nula; felizmente ele resolveu contar suas histórias
em imagens. E aí sua contribuição é inigualável,
além de viva.
Assistam Ganga Bruta, esqueçam
a lorota do deslumbrado articulista e confiram. Garanto que não
irão chorar o dinheiro da entrada na cama, as poltronas do cinema
(nem todos é claro) também são quentes.
- Fernando Pires
Fonseca
.