Ganga Bruta, de Humberto Mauro

O fato de Ganga Bruta aparecer entre os dez filmes brasileiros mais lembrados nesta enquete realizada por Contracampo não é nenhuma surpresa. Em todas as pesquisas realizadas anteriormente ao longo de várias décadas, esta obra-prima de Humberto Mauro marcou presença, em que pese as variadas gamas de atuação e abrangência das pesquisas, assim como as diversas procedências dos votos individuais. É um consenso entre a comunidade cinematográfica e tem passagem garantida entre todos os meios culturais nacionais na categoria de clássico absoluto.

Na verdade, Ganga Bruta sempre foi, desde sua concepção, um filme-marco da cinematografia brasileira. Fruto da união de Mauro e de Adhemar Gonzaga, sua realização sela o encontro de aspirações e ambições tão opostas quanto complementares na configuração de um paradoxo fundamental para a tentativa de compreender o cinema brasileiro como um todo. Este encontro do gênio criador com o homem de negócios, ou melhor, de um cinema de vocação marcadamente artesanal com o empreendimento sempre frustrado de uma indústria, encontro realizado invariavelmente sob o signo de um discurso nacionalista, tem sido desde sempre a figura mais recorrente dessa história já madura, com mais de um século. Em 1930 explorava-se este encontro como algo inédito e depositavam-se esperanças de um futuro promissor sob sua bandeira; o tempo encarregou-se de frustrá-las, mas não impediu que este momento se fixasse na história como um ponto de inflexão privilegiado.

É claro que o resultado material desta união ajudou e muito o tempo nesta tarefa: pois Ganga Bruta reúne em si qualidades ímpares no campo estético. A colocação em prática de idéias e conceitos apreendidos e incentivados pela turma da Cinearte por um gênio de intuição e apuro artístico (além de conhecedor e curioso da técnica) como Humberto Mauro pode ter agradado mais ou menos à crítica da época, mas constitui sem dúvida um objeto único. Quem consegue esquecer uma seqüência como o flashback do protagonista evocado por uma canção entoada em seresta? Ou aquelas em que o simbolismo com forte influência freudiana irrompe inesperadamente em meio à ambientação predominantemente naturalista, como a união sexual do galã Durval Belline e Déa Selva? Mais que a aplicação e realização plena do padrão estético da Cinearte (padrão composto de conceitos como sub-entendimento, symbolo ou sophisma, como aponta Paulo Emílio), é a idéia de uma representação brasileira em sua essência que está em jogo.

Não é para menos que Mauro seria redescoberto e valorizado anos mais tarde pelo Cinema Novo. Na verdade, é bem possível que seja a partir desta redescoberta que Ganga Bruta passe a ocupar seu posto no cânone do cinema nacional. Em sua Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, Glauber aponta Ganga como "um dos vinte maiores filmes de todos os tempos" e coloca Mauro na posição de "pai" do cinema brasileiro. É o primeiro, se não me engano, a inscrever o filme na categoria de clássico.

E o que resta, afinal, a um clássico senão encontrar sua posição no cânone, como um velho encontra seu repouso definitivo numa bela urna? O status de documento histórico não faz jus a este filme, nem seu engessamento numa lista, qualquer que seja. Sua apreciação e constante reavaliação crítica que, graças a um esforço de décadas dedicadas à restauração, poderão ser realizadas por gerações, são os fatores mais importantes para a transcendência da obra. É um legado digno, que nós da Contracampo tomamos como tarefa fundamental à qual procuramos dedicar um esforço máximo. Mais que um peso morto na memória de alguns, Ganga Bruta deve viver em sua plenitude no centro vital de nosso cinema.

Fernando Veríssimo