Os Fuzis, de Ruy Guerra
A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos


Leonardo Vilar em A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos

Até o último voto, uma indefinição marcava a enquete realizada por Contracampo: qual seria o décimo filme da lista? Numa corrida mais próxima do que a eleição presidencial americana, houve inclusive recontagens constantes, para garantir que não houvesse enganos. Mas, ao contrário de lá, o final não podia ter sido mais feliz: com o último voto selou-se o empate que permitiu que a lista de 10 virasse lista de 11, e que dois grandes filmes do cinema brasileiro acabassem lembrados: Os Fuzis, de Ruy Guerra e A Hora e Vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos. O empate é especialmente feliz por permitir que dois filmes realizados com tamanha proximidade temporal (o primeiro é de 1963, o segundo de 1965), por dois diretores com obras importantes no cinema nacional, fossem destacadas. De fato, existe mais em comum entre os dois filmes do que apenas a proximidade de anos de produção. Ambos são produtos do Cinema Novo, sendo que os dois são o segundo filme de diretores de estréias promissoras. Parecem renegar a idéia de que o segundo filme é sempre uma decepção após uma grande estréia. Ruy Guerra estreou em 1962 com Os Cafajestes, um dos maiores sucessos de público do Cinema Novo, e que recebeu também 4 votos nesta eleição. Já Roberto Santos havia realizado O Grande Momento em 1957, um filme pré-Cinema Novo, mas que traz muitas marcas deste, mas principalmente do neo-realismo italiano, sendo uma produção de Nelson Pereira dos Santos. Na verdade, talvez terminem aí as semelhanças entre os dois filmes, e cabe separá-los para uma rápida análise de suas respectivas importâncias nos seus momentos de produção, e no cinema brasileiro.

Os Fuzis (1963)

Ruy Guerra chega ao Brasil em 1958. Moçambicano, vem após uma passagem pela Europa, onde estuda cinema no IDHEC. Um bicho político acima de tudo, chega com idéias de dirigir filmes e encontra a gênese do Cinema Novo em ebulição. Após a estréia bem sucedida, parte para a filmagem de um roteiro que havia escrito na Grécia, para ser filmado lá, sobre uma pequena vila, a qual está sendo ameaçada por uma matilha de lobos famintos que vai descendo das florestas que a cercam. Os habitantes não possuem armas de fogo, pois o momento histórico segue-se a uma revolução popular, e o povo está proibido de possuir armas. É chamado um destacamento do Exército para protegê-los. Uma vez lá, porém, os soldados entram em conflito com os moradores, e numa escalada, acabam por matar um deles. Escorraçados, mas também assustados, se retiram da vila, e quando a história chega ao fim, os lobos vão descendo das florestas em direção ao povo sem armas para se defender. Ruy decide adaptar o filme para o Nordeste brasileiro, e para isso conta com a ajuda inestimável do roteirista Miguel Torres, um grande amigo, que acaba falecendo num acidente de carro durante as pesquisas de locação para o filme.

A partir da história descrita acima, Ruy e Torres desenvolvem a idéia dos retirantes famintos que chegam a uma cidade. Paralelamente, chega um destacamento do exército chamado pelo grande produtor de alimentos local para proteger seu estoque e o transporte deste para a capital, receoso de um possível ataque dos migrantes. Os retirantes são liderados por um beato místico que prega a adoração a um boi santo que fará chover. A escolha do sertão como paisagem é emblemática do momento do cinema. A partir do pressuposto de buscar uma especificidade nacional, os cineastas procuram-na, num primeiro momento, no interior, e não nas cidades grandes, cosmopolitas por natureza. A paisagem imensa e árida do sertão fascina os diretores e artistas em geral. A descoberta e colocação do povo pobre e sofrido em primeiro plano surge como principal diferencial inicial, e isto está mais do que em qualquer lugar no sertão nordestino.

Ruy escolhe por mesclar uma linguagem entre o documental e o ficcional, embora como ele mesmo deixe claro, a fronteira entre os dois seja difícil de distinguir. O filme se dá em três diferentes registros: primeiro, os retirantes, mostrados de forma quase distante e não personalizada; depois, uma série de depoimentos com um registro muito próximo do documental, com personagens do local falando de acontecimentos passados e de seu ambiente; e, por último, os soldados, que são tratados como personagens individuais e destacadas. Ruy se alterna entre estes três elementos, que vão, na sua soma, adquirindo significado por um movimento de oposição e aproximação entre eles.

Neste estrutura de narrativa paralela, em blocos, o tratamento formal diferenciado adquire múltiplos significados. As cenas documentais (que como o diretor revela, só o são na aparência e na autenticidade da presença daquelas pessoas da região, mas que de fato são depoimentos passados a elas por ele mesmo) possuem uma duração longa, sempre em plano parado. Com isso, Ruy consegue duas camadas de significação diretas: primeiro, fala do estado de imobilidade natural daquelas pessoas, para quem aquela situação, e suas lendas e mitos já duram séculos. Segundo, consegue passar uma idéia de uma cultura principalmente oral, que passa adiante seus conhecimentos desta forma, na qual, portanto, o importante é ouvir.

Mais interessante ainda é o tratamento dado aos soldados. Como elementos estranhos ao local, tudo neles é diferenciado. Ao contrário de uma cultura oral, eles são retratados de forma muito mais visual, dinâmica, pois representam uma certa modernidade. Por isso, a câmera se aproxima em closes e se move o tempo todo. No entanto, não são cortes rápidos, e sim movimentos em plano-seqüência, que parecem indicar que eles precisam se adequar e sentir a passagem de tempo longo, típica do sertão.

É vital no cinema de Ruy Guerra compreender o plano-seqüência como elemento de distensão temporal e espacial. Temporal pois ele mostra os efeitos da passagem de tempo sobre os personagens, e o espectador. E espacial, pois ao se movimentar sem cortes por um local, ou ficar parado longamente, permitindo a visualização de grande profundidade, acaba por aumentar a percepção deste local. Vale dizer ainda que, segundo Ruy, é impossível não se pensar tempo em função de espaço e vice-versa. Ao usar o plano-seqüência, ele os unifica, como Picasso fazia ao pintar uma figura de frente e perfil ao mesmo tempo. Se houvesse o corte, mesmo que seguindo cuidadosamente o "raccord", haveria uma fragmentação de ponto de vista que, necessariamente, leva a uma fragmentação de tempo e espaço. Por isso, Os Fuzis, mesmo em seus momentos mais dinâmicos é pensado na estrutura dos planos-seqüência, muitas vezes com longos e elaborados movimentos que vão de um personagem ao outro, permitindo que a ação do primeiro seja digerida e leve à reação do segundo. Esta estrutura formal, além desta distensão rítmica-temporal, deixa entrever um grande rigor de composição, resultado do magnífico trabalho do outro estrangeiro radicado no Brasil, o diretor de fotografia argentino Ricardo Aronovich. A sofisticada formação teórica de Ruy Guerra e Aronovich tornam o trabalho visual de Os Fuzis algo bastante distinto da secura de um Vidas Secas, e houve os que criticassem o filme por seu excesso de beleza visual.

Mas esta crítica parece menor perto do trabalho de composição da história, na qual surge a figura de Gaúcho, um forasteiro que fará a intermediação entre os retirantes e os soldados. Enquanto os retirantes são retratados de forma coletiva, com seu sofrimento cercado por um imobilismo relacionado ao misticismo, e os soldados surgem como figuras ligadas ao mundo moderno e dinâmico, mas a serviço das ideologias mais anti-revolucionárias e opressoras do povo pelo povo, Gaúcho encontra-se num meio termo. Ele rejeita a "ordem e progresso" às custas do povo que os soldados representam, mas também não possui uma linha de ação contrária, nem uma ideologia formada. Nós vemos que ele mesmo utiliza o povo e suas necessidades em proveito próprio. Ao longo do filme, sua oposição aos soldados parece muito mais fruto de uma "picuinha" pessoal do que uma capacidade de enfrentamento de classes, até porque ambos pertencem à mesma classe. Quando finalmente sua revolta explode, não é mais que uma explosão pessoal, e por isso mesmo ineficaz contra os sistemas já estabelecidos.

Jean-Claude Bernardet, em seu Brasil em tempo de cinema, o enquadra numa série de personagens de filmes do período como exemplo de que, apesar do cinema brasileiro da época buscar tratar do povo, a solução dos problemas vinha sempre de elementos de fora das camadas populares. Isso, segundo Bernardet, advinha do fato de que os cineastas, membros da classe média, realizavam filmes para esta mesma classe, apenas utilizando o povo como personagem. Assim é que eles não conseguiam localizar neste povo os agentes de mudança. A solução de Ruy no filme, porém, indica uma compreensão deste mecanismo, já que pela morte de Gaúcho e pela inutilidade de suas ações num âmbito social, fica mostrada a inadequação deste caminho individualista na mudança das estruturas sociais. Talvez por vir de fora do Brasil, Ruy parece encontrar um distanciamento crítico nesta questão.

Quando lançado, o filme vence o Urso de Prata em Berlim, mas é cortado por seu produtor antes de estrear no Brasil. Ruy não assina então a versão lançada, e acaba se indispondo com outros realizadores do Cinema Novo por achar que alguns deles apoiaram o produtor nesta decisão. A crítica se divide em ferrenhos opositores e defensores entusiasmados. Sentindo-se mal-vindo, ele acaba por sair do Brasil novamente. Em 1977, acaba realizando A Queda, um raro caso de continuação no cinema brasileiro, um filme que encontra os personagens de Os Fuzis quase 15 anos depois, morando no Rio de Janeiro e envolvidos com as questões urbanas e operárias. Este filme teve 2 votos na contagem desta votação. Independente da recepção na época, com o tempo Os Fuzis tornou-se um marco do cinema nacional, prova disso é que esteja nesta lista, quase 40 anos após sua realização.

A Hora e a Vez de Augusto Matraga (1965)

Roberto Santos também respira cinema desde cedo. Cursa aos 22 anos o Seminário de Cinema, onde conhece entre outros Nelson Pereira dos Santos. Paulista, trabalha em estúdios como a Multifilmes e a Vera Cruz, e faz parte da equipe de realização de Rio 40 Graus. Por conta desta parceria com Nelson, acaba convencendo-o a produzir o seu primeiro longa, O Grande Momento, realizado em 1957. Com grande influência neo-realista, o filme teve alguma influência nos realizadores do Cinema Novo, e sua importância pode ser atestada pelas 10 lembranças nesta votação. No entanto, embora o filme tenha feito sucesso de crítica e ganho vários prêmios, Santos demora oito anos até poder filmar de novo. No meio tempo, ele tenta engatar outros três projetos de longa, mas não consegue. Acaba trabalhando com roteiro, documentários, até mesmo "jingles", para sobreviver.

Com a eclosão do Cinema Novo, ele recebe uma segunda chance, e decide adaptar um conto de Guimarães Rosa, do livro "Sagarana". O conto, assim como acontecerá com o filme, se chama A Hora e a Vez de Augusto Matraga. Com ele Santos realiza o movimento típico deste primeiro Cinema Novo, passando do ambiente urbano de O Grande Momento para o sertão, embora não exatamente o sertão árido de outros filmes como Os Fuzis ou Vidas Secas e sim o interior de Minas Gerais, terra da maioria dos trabalhos de Rosa.

Desnecessário dizer que a narrativa de Rosa, com sua mistura de linguagem popular e erudita, sempre de grande oralidade, apresenta uma série de dificuldades de adaptação ao cinema. O conto narra a virada de um jagunço violento ("que nem cobra má, que quem vê tem que matar") que é abandonado pela mulher, filha e capangas, espancado por inimigos, e qu eresolve então esquecer o passado e começar vida nova num lugar distante. Trabalhador e crente em Deus, sabe que sua hora e sua vez vão chegar, o que acontece numa explosão final de violência.

Roberto Santos tem na mão, portanto, um prato cheio de temas e figuras típicas do imaginário brasileiro do sertão: a violência, o cangaço, o misticismo, a vingança, a desonra. Sua história, porém, não é a de um grupo, mas a transformação pessoal de um indivíduo. Roberto Santos sempre declarou ter especial afeição pelo "sujeito que é driblado pelas circunstâncias e pessoas; não me interessa o que dribla e faz o gol." Neste sentido, Matraga é o personagem perfeito para ele, um homem completamente perturbado, que começa como um grande calhorda, é humilhado e volta à vida como um crente que acredita ter recebido uma segunda chance, mas sempre ciente que sua hora há de chegar.

Ele tira da convivência entre a violência latente e a religiosidade no sertão o substrato do seu filme. Em vários momentos, anjinhos de quermesse dividem o enquadramento com jagunços, e o duelo final, uma das cenas mais famosas do cinema nacional, se passa dentro e às portas de uma igreja, onde explode a violência.

Esteticamente falando, o filme também possui uma cuidadosa fotografia que cria um preto e branco quase prateado. Aos cuidados de Hélio Silva, há ainda inúmeros enquadramentos e movimentos de câmera absolutamente originais, que tentam falar diretamente do estado mental perturbado desta figura quase mítica que é Matraga. Há alguns dos mais belos e significativos plongés e contraplongés do cinema brasileiro, e é feita inclusive uma citação ao clássico de Lima Barreto, O Cangaceiro. A trilha sonora é de Geraldo Vandré, cuja música tema continha no refrão uma afirmação que o próprio Santos considerava contrária à concepção ideológica que ele tinha do personagem ("Se alguém tem que morrer/ que seja para melhorar"), mas que ele decidiu manter em respeito à liberdade criativa do compositor.

Pode-se discutir que o principal nome na construção deste Matraga é mesmo o de Leonardo Villar, que tem uma interpretação estupenda como o personagem principal. Ele tem a capacidade de, com alguns olhares, conseguir ser tão direto e complexo quanto Guimarães Rosa em duas frases. Este tipo de ator era necessário para que o filme atingisse os resultados procurados, visto que é praticamente a odisséia deste personagem que é contada. No elenco há ainda um Mauricio do Valle que parece vir direto de Deus e o Diabo, além de Jofre Soares e Flávio Migliaccio.

Mas, o mérito de todo o sucesso da realização do filme é mesmo de Santos, que consegue criar imagens que dizem muito com o mínimo, como acontecia com as expressões que Rosa criava. Ele se mostra um inteligente adaptador, criando elipses que não há no conto, alongando cenas, introduzindo personagens, mas acima de tudo, transpondo linguagens. A cena final mostra sua capacidade de criar uma nova realidade a partir do conto, já que esta se passa numa casa no trabalho de Rosa, e no filme se passa numa igreja, emprestando um novo significado simbólico a todo o ritual sangrento que só pode terminar em morte.

No final, o grito de Matraga ("NÃÃÃÃOOOO!!) também surge como uma improvisação de Villar, que o próprio diretor não considerava a mais sutil das interpretações, mas que decide manter em respeito ao seu ator principal. Com Matraga, Roberto Santos parece buscar atingir os mesmos resultados que sempre foram atingidos por Guimarães Rosa: do regional, retirar a universalidade. E isso certamente está no filme, que não por acaso também resiste ao teste do tempo e aparece nessa lista dos mais importantes do cinema brasileiro.

Eduardo Valente