Em busca de uma fotografia participante

 

No novo cinema brasileiro, a fotografia representa sobretudo uma forma de pesquisa. Assim, o fotógrafo integrado nessa perspectiva não se limita, simplesmente, a traduzir em elementos fotográficos a intenção do realizador. Fotógrafo e realizador tornam-se parceiros de uma busca, cujo resultado é o filme. A fotografia liberta-se de seus cânones gramaticais rígidos, torna-se instrumento maleável diante da realidade a expor.

Esta nova forma de fotografia-instrumento só surgiu, entretanto, depois de um longo período de lutas.

Quando nasceu o movimento conhecido como Cinema Nôvo, a mumificada forma visual de expressão dominante em nosso cinema representou o primeiro entrave a seu desenvolvimento. A velha geração tentava vedar o caminho à geração que nascia, com suas ansiedades, procuras e afirmações próprias, na tentativa de construir um cinema culturalmente brasileiro. Sem contar com uma compreensão inicial, sem qualquer espécie de ajuda, sem escolas para uma formação profissional, os realizadores e técnicos do Cinema Novo tomaram-se autodidatas. Uns formavam-se, inicialmente, no campo teórico, outros no campo prático. Todos, entretanto, estavam integrados numa mesma perspectiva cultural, todos tentavam organizar e criar um cinema cujas origens partissem de uma revisão da realidade brasileira. Foi muito difícil, porém, ultrapassar a teimosia da velha guarda.

Quando era ainda fotógrafo comercial, com muita vontade de fazer cinema, fui testemunha das lutas entre a rebeldia do Cinema Nôvo e o tradicionalismo vazio do cinema habitual. Comecei a participar da luta com Barravento. Assinei a ficha técnica do filme como assistente de direção, porém a incompatibilidade entre um jovem e um profissional levou-me a entrar no campo da fotografia cinematográfica, refilmando vários planos. Não podia ver a luta entre uma realidade nascente e uma escola de princípios estáveis, sem dela participar.

Em Barravento, a disputa travava-se em dois campos totalmente diversos: Para seu jovem realizador, o importante era captar a realidade, tentar compreendê-la. Para seu fotógrafo, esta perspectiva era desmesuradamente louca, partindo, como partia, de um jovem de vinte anos, provinciano, sem qualquer trabalho cinematográfico a não ser um curta-metragem experimental. Ele, o fotógrafo, era um homem de alicerces profissionais, com anos de aprendizado na alienada Vera Cruz, com estágios feitos em Hollywood, e unia brilhante carreira no Rio e São Paulo. Para o nosso fotógrafo, o princípio máximo consistia na submissão da arte à técnica, em seu velho mecanismo endeusado e onipotente. Para o jovem realizador de Barravento, a técnica deveria ficar a serviço da arte. Não havia lugar para o preciosismo técnico. A luta começou desde o primeiro dia, numa tentativa de fazer com que o fotógrafo compreendesse a intenção do diretor. Queria ele uma integração do homem-paisagem, no melhor estilo documentário, e tudo fez para organizar uma fusão regional-universal, dentro da linguagem de autor que então ensaiava. Por sua vez, o fotógrafo, um dos melhores do Brasil, lutou, com todas as suas forças, na defesa de uma posição de profissional acadêmico, tentando preservar seu gosto formalístico, elevado a elemento de primeira grandeza na composição de um filme, onde o enquadramento valia mais, gramaticalmente, que as convicções do autor. Em sua opinião, cinema era enquadrar, iluminar com requintes de falsificação, estilizar a paisagem, em total inconsciência de adequação destes elementos ao tema do filme. Este fotógrafo poderia ser apontado como um autêntico representante do até então dito cinema nacional, como um digno discípulo de uma escola cinematográfica estrangeira estabelecida em São Paulo, onde pontificavam alguns chamados mestres brasileiros totalmente afastados da realidade nacional, envolvidos em complexos coloniais, sem nenhuma espécie de vivência ou sensibilidade brasileiras.

Neste clima de conflitos nasceu Barravento. Foi a partir daí que, verdadeiramente, entrei para o cinema como fotógrafo.

Partindo de uma grande afinidade de sentimentos, liguei-me aos que formavam o recém-iniciado movimento de Cinema Novo. Todos nós acreditávamos nos mesmos princípios básicos, e buscávamos, sobretudo, criar um estilo de fotografia sem ostentação, despojada de qualquer artificialismo, sem os preconceitos formais da velha escola de composição fotográfica. Lutávamos por uma renovação cultural de nosso cinema. Havíamos deixado de ser simples técnicos isolados, e participávamos, ao lado do realizador, da elaboração temático-visual do filme. O fotógrafo começava a dar, assim, através de seu trabalho, uma contribuição muito mais ampla que os simples enquadramentos pré-históricos e as superadas composições de crepúsculos, tão amados por nossos fotógrafos académicos, e tão usados e abusados pelos fotógrafos amadores de todo o mundo.

O fotógrafo do Cinema Novo descobre seu mais importante instrumento: a câmara. Todos nós acreditávamos no cinema de rua, sem fabulosas maquinarias, sem arcos e lentes especiais, e tentávamos fazer de nossa câmara um instrumento maleável.

Foi nessa época que Glauber Rocha lançou seu lema: "uma câmara e uma idéia". Naquele momento, este princípio pareceu-me verdadeiro e útil para o desenvolvimento do cinema nacional. Depois das refilmagens de Barravento, já me sobrava experiência para confirmar a necessidade do lema. Sentia que os grandes aparatos já não eram imprescindíveis. Durante as refilmagens, havíamos usado câmaras de uma só objetiva, material verdadeiramente digno de um museu, com motores velhos, cansados, e objetivas sem nenhum rendimento óptico. Quando fizemos a refilmagem da seqüência de Luíza Maranhão, tomando banho de mar, utilizamos uma película vencida, de fabricação exclusivamente para retratos, em rolos de 30 metros. Trabalhamos ainda com a câmara na mão. O resultado, entretanto, foi ótimo. Havíamos conseguido um dos mais belos efeitos noturnos do filme. Descobrimos nestas refilmagens importantíssimas formas mecânicas, entre as quais, a utilização criadora da zoom. Compreendemos a inutilidade dos rebatedores, com sua luz feia e chapada, um verdadeiro entulho na mise-en-scène da câmara na mão. Descobrimos a luz dura e a fotografia participante. Nossas conversas, durante esse tempo, giravam sobre futuros filmes, sobre o que poderíamos ter feito se eu conhecesse o mecanismo da filmagem, que até então havia sido um mistério para mim.

Quando dávamos Barravento como pronto, surgiu uma grande discussão entre Glauber e o responsável pela fotografia inicial do filme. Teve início um período de polêmicas sobre a forma da fotografia cinematográfica. Esta polêmica transpôs os limites de Barravento, e passou a ser a polêmica da fotografia do Cinema Novo. Entre os que presenciaram estas discussões estava Luís Carlos Barreto, naquele tempo ainda em namoro com o cinema, que defendia, por sua experiência da moderna fotografia de reportagem, o estilo usado nas refilmagens de Barravento. Estava desencadeado o movimento da nova fotografia cinematográfica brasileira, que tão bons frutos veio a dar mais tarde.

Anos passavam. Na Bahia, eu fazia reportagens cinematográficas para a Iglu Filmes, adquirindo prática no uso da câmara na mão e na captação rápida de motivos reais. A reportagem foi, para mim, uma grande escola. Aí aprendi a formar enquadramentos imediatos e variáveis, e minha ação como fotógrafo tornou-se mais rápida. Entretanto, meu afastamento dos centros cinematográficos, a ausência total de contatos com outros profissionais, numa troca de conhecimentos que muito me beneficiaria, deixaram-me completamente atrasado em matéria de técnica de laboratório, tempo de revelação, luz, copiagem. Sé conhecia então as câmaras Arriflex e Eyemo. Meu atraso era grande. Um dia apareceu Leon Varsano. Várias vezes nos encontramos, filmando os mesmos assuntos. Profissional competente e de grande sensibilidade, ele nunca deixou de dar-me verdadeiras aulas, durante nossas reportagens, mesmo sendo concorrente da firma em que eu trabalhava. Comecei a conhecer os pequenos segredos indispensáveis para a formação de um bom repórter cinematográfico, coisa que nunca cheguei a ser. Lucrei imensamente, porém, no setor estritamente técnico, no pouco que sei sobre rendimentos de objetivas, sobre filtros, sobre alguns segredos a respeito de máquinas de filmar, sobre obturadores, grifas e outras coisas do gênero.

No terreno do longa-metraøem, ainda era quase totalmente inexperiente. Os dois profissionais de fotografia de cujas equipes fiz parte sempre se fecharam diante de qualquer explicação de ordem técnica. Foi somente pela confiança de Roberto Pires, num filme de sua direção, que trabalhei, pela primeira vez, como cameraman de um longa-metragem. Vi, pela segunda vez, como se dispunham rebatedores e refletores. Pela segunda vez, observei como eram puramente mecânicos os movimentos de câmara tradicionalmente usados, e como era convencional a forma de luz adotada em nossos filmes, em geral.

Nesta altura, através de muitas conversas com Glauber, nossas idéias próprias ias amadurecendo. Através dele, tomava conhecimento do que faziam os fotógrafos novos do Rio. Conhecia então, de nome, Mário Carneiro, Fernando Duarte, David Neves, Luís Carlos Saldanha, juntamente com Luís Carlos Barreto, que já havia encontrado na Bahia. Vibrei quando vi a fotografia de Mário Carneiro em Porto das Caixas. Passei vários dias eufórico, pois já havia no Brasil um fotógrafo com estilo próprio, porém tematicamente sincronizado com o tema geral do filme, no qual se inseria. Depois de Porto das Caixas, foi a vez de Vidas Secas, com uma fotografia despojada de belezas pictóricas, cuja principal função era levar o espectador até a caatinga o fazê-lo sofrer do mesmo sol que sofre o nordestino. Senti a terra nordestina com toda a sua luminosidade, sem perspectiva e profundidade, com seus horizontes borrados pela luz, pelo calor opressivo e pela hostilidade da vegetação. Em seguida a Vidas Secas, surge Ganga Zumba, onde Fernando Duarte mostrou sua capacidade de privar-se do belo supérfluo e acompanhar, com segurança, a narrativa fílmica.

A nova perspectiva de fotografia brasileira já se havia imposto.

Por este tempo, Glauber dava os últimos retoques no roteiro de Deus e o Diabo, e eu fazia a fotografia de O Tropeiro. Infelizmente, Tropeiro foi um filme de composição acadêmica, onde não pude realizar coisa alguma do que havia planejado. Valeu, entretanto, como experiência, através da qual pude sentir como o laboratório de revelação trata um principiante. As várias dificuldades que encontrei marcaram minha futura conduta diante dos responsáveis por esta máquina comercial que presta serviço ao cinema.

Glauber termina, nesta altura, seu trabalho de preparação para Deus e o Diabo. Chegam os dias do chamado período de pré-filmagem. Minhas conversas com Glauber orientam-se, sobretudo, para a escolha da forma que iríamos dar à textura plástica do filme. Paralelamente ao desenvolvimento do roteiro, Glauber e eu chegamos à conclusão de que a única forma de fotografia possível em Deus e o Diabo na Terra do Sol seria aquela que, omitindo-se de qualquer forma de beleza especificamente fotográfica, deixasse de aparecer isolada, e optasse pela participação e integração total no tema do filme.

Abro aqui um parêntese, para contar o que, uma vez, um dos cobras da fotografia no Brasil disse a respeito de meu trabalho em Deus e o Diabo. Em tom de deboche, a coisa dita foi a seguinte: "Não se chega nem a notar que existe fotografia". Fiquei, realmente, satisfeito, e aceitei o dito como elogio, sobretudo porque partia de um elemento cuja natureza já conhecia, e em cuja equipe trabalhei como operador de câmara. Meu objetivo tinha sido, precisamente, este, o de alcançar uma forma de fotografia que não fosse notada.

Fechando este parêntese, e voltando ao que dizia, anteriormente, Glauber e eu fugíamos de tudo que tivesse a aparência de um figurativo gracioso, sem poder de comunicação. Esquematizamos o estilo que seria usado, deformando e modificando as formas clássicas de trabalho, e pondo em seu lugar elementos sentimentais e intelectuais. Tudo para não desviar o espectador para contemplações estéticas desligadas do filme. A película seria trabalhada, então, conforme as necessidades expressivas do filme.

Levamos ao engenheiro-chefe do laboratório nosso plano concreto para o negativo que queríamos. Houve a primeira reação. Vários problemas foram criados. Nenhuma solução foi apresentada. Não havia o menor incentivo, a menor vontade de auxiliar nossa busca. O laboratório limitava-se a apresentar obstáculos, expondo as partes mais negativas de outras experiências feitas, mais ou menos, no mesmo processo que a nossa. Estes obstáculos não tinham apenas um tom comercial bem comportado, o que seria compreensível. Seu verdadeiro e maior objetivo era o de opor resistência a criações de estilo, que se supunha fossem causar algum abalo nas estruturas do padrão técnico de laboratório, suposição de todo gratuita e incompreensível. Os testes que havíamos feito deram o resultado que buscávamos. Ouvimos, entretanto, vozes contrárias: dos grandes profissionais, mestres de um tipo estereotipado de enquadramento, luz e textura, e dos técnicos laboratoristas que não podiam admitir uma forma de aproveitamento fotográfico diversa das previsões dos fabricantes de películas, e das utilizações já vistas, a partir das quais os mestres aprenderam a fazer cinema. Muita luta foi necessária para chegarmos a um acordo, o que, entretanto, não foi conseguido de todo.

Através de nossas conversas, de uma afinidade de sentimentos e de experiências que muito alargaram nossas amizade, Glauber e eu havíamos chegado, tacitamente, à conclusão de que, para o desenvolvimento de novas idéias, era necessário contar com gente nova, sem compromisso artístico-profissional, e sem medo de rupturas de uma "carreira promissora". Nosso trabalho em Deus e o Diabo confirmou esta conclusão.

Durante as filmagens, passamos por Monte Santo, Trapagó, Bendegó, Cococorobó, Cansanção e Canudos. Sertão das caatingas baianas. Comemos muita poeira da estrada transnordestina. Subimos cem vezes os três quilômetros da escada do Monte Santo. Matamos cascavéis e jararacas. Comemos mocó de macambira, em nossas experiências sertanistas. Andamos quilômetros a pé, carregando material nos braços, nas costas e na cabeça. Atravessamos áreas de mandacarus, xique-xique, macambira e favelas. Vimos brasileiros que pareciam figuras remotas das Capitanias Hereditárias. Lutamos, sofremos, vimos, ouvimos, e fizemos um filme. Um filme composto, trabalhado, elaborado, meditado muitas vezes, e muitas vezes improvisado no mais puro estilo das produções pobres brasileiras. Tudo foi dentro de uma forma que não excluía, ao lado dos valores intelectuais, o instinto e o sentimento, o bom gosto e a coragem de saber e poder quebrar tabus. Tentávamos comunicar, e comunicar através de uma forma explícita e simples.

Desta maneira continuava o movimento do Cinema Novo brasileiro. Os obstáculos, entretanto, não deixaram de surgir. Numa recente discussão, alguém dizia que nosso movimento, para a criação de um novo cinema, havia formado um quisto no panorama cinematográfico brasileiro. Verdadeiro quisto existia, e ainda hoje existe, formado pelos componentes da velha-guarda. Foi esta anomalia que levou o grupo tradicionalista a não aceitar, nem acreditar nas idéias do Cinema Novo, deixando de contribuir para a formação de um novo quadro de profissionais que, se estava agregado num grupo à parte, só o fazia por exigência de luta. Para este grupo novo, o objetivo inicial era levar novas formas à tela, formas necessárias para o novo tipo de linguagem cinematográfica que embrionava. Tudo tornava-se então válido na luta. O importante era dizer alguma coisa, e diríamos de qualquer forma, com câmara na mão, com filmes vencidos, com câmara de 16 mm., e com nossa pouca noção artesanal. Se havia um bloqueio, com falsa fachada de profissionalismo, só havia um meio: armar acampamento ao lado e esperar o tempo, o tempo que sempre está presente na formulação histórica de um movimento.

Tivemos de resistir diante da descrença geral que nosso movimento provocava. Lembro-me de que, quando procurávamos atores para Deus e o Diabo, muitos daqueles com os quais havíamos falado, dando ouvidos aos bem informados da época, não acreditavam que Glauber pudesse realizar sua obra. Glauber era tomado como um louco. Até para o aluguel do material, a sindicância em torno de nosso grupo foi severa. Todos queriam saber quem seria o fotógrafo e quem seria o operador. Eu. A réplica do interlocutor vinha, então, acompanhada de uma risadinha e de uma pequena indagação: "Ah! ah! ah! Quem é esse cara? Nesse caso, só alugaremos a máquina com nosso operador." Como a equipe já era grande para o pouco dinheiro que havia, e como eu já ocupava o cargo de operador, o que era inclusive necessário para a execução de forma que havíamos adotado — narrativa de reportagem, câmara na mão, naquela ocasião pouco divulgada no longa-metragem brasileiro, por ser antitécnica, tremida, etc. —, tivemos de alugar uma câmara velha e com ela partir para o interior baiano.

Com ela começaram nossos dramas. No primeiro dia de filmagem, na primeiríssima tomada, a câmara quebrou-se. Tivemos de parar uns dias, à espera de uma nova câmara. A que chegou era um pouquinho melhor, mas seu tacômetro não marcava corretamente os números dos quadros. Era preciso fazer uma pequena compensação, ou calcular a velocidade pelo som da cadência do filme passando pela janela, no mais belo estilo das antigas câmaras movidas a mão. Finalmente, conseguimos rodar os primeiros metros, que foram remetidos ao laboratório, no Rio. Ficamos aflitos à espera dos copiões. Depois de quinze dias, chega uma carta do produtor, comunicando que o laboratório se recusava a revelar o filme tal como eu o havia exposto, e com o tempo de revelação pedido. Gastei quatrocentos quilômetros de estrada para telefonar da Bahia para o Rio, tentando explicar tudo como eu queria. Recebi então uma animadora resposta para um novato; o laboratório revelava, sem responsabilidade alguma. Tremi, mas aceitei o desafio. Recebemos os copiões, e o resultado era o que esperávamos. Tudo na base das velhas fotografias de atualidade e da gravura popular. Entrei numa fase de alegrias desmesuradas. Continuamos a filmar baseados numa busca de realismo, de reportagem viva. Filmávamos sob qualquer condição de tempo que oferecesse segurança à câmara, à película, e ao bem-estar dos atores. Trabalhamos em dias de sol, em dias sem sol, em dias muito nublados, pouco nublados, com frio, com calor, e até com chuva. Nada impedia nossa tentativa de captar o que estava diante de nós. Havia sido improvisada uma procissão de muita importância para o clima emocional que Glauber desejava dar ao filme, quando, no momento mais forte, em que presenciávamos um grande número de pessoas cantando uma ladainha, em entonações quase histéricas, começou a choviscar. A meu lado, Glauber não fez a pergunta que eu esperava, nem eu deixei, um momento sequer, de captar todos os movimentos e expressões que sabia serem necessários para sua concepção. Com a câmara na mão, colhemos tudo o que era bom, e que nunca mais aconteceria.

Dentro da linguagem de ritmo interno, em Deus e o Diabo, foi grande minha participação como fotógrafo-câmara. Trabalhei com a câmara na mão, dentro da mise-en-scène do filme, entrando em contato com a personagem durante a filmagem, buscando e captando seus momentos mais importantes, participando do estilo de linguagem empregado no próprio filme. Uma mesma base de sensibilidade, de visão cênica e de estruturação geral do tema que havia sido adotado, unia-me a Glauber. Esta união tornava-se tão importante, ou mesmo mais importante que a técnica. Valia mais, em certos momentos, alcançar um objetivo artístico-comunicativo, do que ficar a pensar em filtros ou câmara tremida. Algumas vezes, a posição acadêmica pode ser válida, mas o Cinema Novo, no qual nos incluíamos, queria, sobretudo, participação, ligação de todos os elementos de composição numa expressão única, objetivo impossível de atingir se nos colocássemos, exclusivamente, no academicismo das belas formas.

Terminadas as filmagens, e montado o copião, era com prazer que víamos nosso trabalho igual àquele que havíamos previsto, durante dois anos de preparação. Grande tempo foi gasto em dobragens, mixagens, montagens, etc. Chegou então o dia em que vimos a primeira cópia. Dia de frustração geral. A cópia estava com correção de luz tão bem feita que até nuvem apareceu no céu, num céu que em todos os copiões estava de um branco quase puro. O branco do céu que havíamos conseguido era proposital, a fim de não atrair, com a extravagante beleza do céu da caatinga, a atenção do espectador para uma contemplação estética gratuita. Houve um grande protesto contra aquela mudança. A resposta do chefe do laboratório ficou, entretanto, firme: o filme ia para Cannes, e a reputação comercial-técnico-industrial do laboratório estava em jogo. Tempo não havia para outra cópia, e lá se foi um filme bonitinho, pintadinho, com mandacarus fazendo requebros de pose, de tão brilhantes que estavam, porque o técnico do laboratório acha que fotografia é uma coisa standard, que a película, sendo Plus-X, tem sua cor própria, seu rendimento próprio, segunda as especificações feitas pelos fabricantes; sendo Ferrania tem, pelos mesmos motivos, outras características e outras cores; sendo Dupont, ainda pelos mesmo motivos, possui novas características e novas cores, e assim por diante, ao infinito... Nós, os fotógrafos, temos, somente, de medir a luz com um fotômetro, acender uns tantos refletores, saber carregar um chassis, ter o braço firme para fazer bons movimentos de câmara, seguir as instruções dos fabricantes de películas e, finalmente, obedecer a todas as taxativas normas dos laboratórios de revelação.

A fotografia que o Cinema Novo se propõe construir, e que já vem construindo, não pode aceitar, passivamente, uma tal limitação sem motivos. Não somos ainda perfeitos conhecedores da técnica, mas temos o objetivo de realizar um certo tipo de evolução fotográfica, que já teria sido alcançada, certamente, se os responsáveis pelos serviços de laboratório não assumissem um desnecessário espírito professoral. Ao invés de serem nossos críticos gratuitos, poderiam ser nossos orientadores. Se, realmente, querem vestir a toga doutoral, deveriam acompanhar nossas idéias e nos ajudar a concretizá-las, sem a pretensiosa pose de quem já viu tudo na vida e não espera que mais nada de novo aconteça.

A fotografia como pesquisa, a que nos referíamos no início deste trabalho, visa, sobretudo, a absorver e compor o que chamaríamos de luz brasileira. Este objetivo representa uma tarefa árdua para o fotógrafo nacional. Cabe então a ele suprir as dificuldades, submetendo cada película que usa a testes capazes de fornecer um índice aproximado dos diversos graus de luz possíveis de obter. Depois destas experiências, o fotógrafo encontrará e escolherá a luz que lhe é conveniente, dentro das exigências dos temas que sua fotografia abordará. Só assim a fotografia poderá situar-se como elemento de. criação do filme. Só assim o fotógrafo deixará de ser um mero tradutor de luzes mecânicas, fornecidas por fotômetros e fabricantes de películas, para tornar-se um parceiro do realizador na composição de um filme. A luz não é o elemento único da fotografia de um filme, porém representa sua base. Uma fotografia que se proponha ser participante, participante da realidade brasileira, tem de, como condição básica, absorver e exprimir nossa luz. Sem essa condição, nossa fotografia se tornará falsa.

Resta ao fotógrafo brasileiro continuar em sua busca.

Valdemar Lima