Onde
se manifesta o partido cinemanovista?

Um fantasma ronda pelo cinema brasileiro
o fantasma do cinema novo. Sem correntes, sem gemidos terrificantes,
inclusive sem castelo, o cinema novo ainda existe como superego principal
do cinema contemporâneo feito no Brasil. Nossa lista não
diz outra coisa: dos onze filmes mais citados, sete pertencem a cineastas
identificados ao cinema novo e tendo sido realizados num período
de sete anos (1963 até 1969). Aliás, oito filmes pertencem
aos anos 60:
1963 Vidas Secas
1963 Deus e o Diabo na Terra do Sol
1963 Os Fuzis
1964 São Paulo S/A
1965 A Hora e a Vez de Augusto Matraga
1966 Terra em Transe
1968 O Bandido da Luz Vermelha (esse, o único off cinema
novo)
1969 Macunaíma
É capaz que um período catalize tanto de nossa memória
a ponto de ¾ dos filmes mais importantes pertencerem a ele? Sim,
e não é sem méritos. Os filmes acima mencionados
são, sim, pontos altos não só de nossa cinematografia,
mas do cinema como um todo. Participaram de um momento histórico
importante na vivência brasileira, estiveram na ponta de lança
da contestação e da pesquisa iniciada por Nélson
Pereira em 1955 e que tinha por vontade colocar o brasileiro na tela,
com seu modo próprio de ser e viver. Mas quando se questiona a
permanência do cinema novo, não é que queiramos questionar
o estatuto de obras-primas desses filmes, mas perguntar, na ausência
de outras épocas: depois e antes do cinema novo, não temos
muitas obras-primas?
Sim, responderíamos. Humberto Mauro
e Mário Peixoto, nosso passado, mas igualmente o período
das chanchadas, a Vera Cruz; depois, o cinema marginal, a pornochanchada,
Coutinho, Babenco, Reichenbach... pois bem, essa é a resposta institucional,
compreensiva e conciliadora. Como a lista, irreconciliável em sua
frieza numérica, responde a essa questão? Ela diz que sim,
que nossa memória cinematográfica erige dois ícones:
Ganga Bruta e Limite. Mesmo que reste a saber se essas são
dois filmes cuja memória foi criada pelo próprio cinema
novo (como não lembrar de Alex Viany e Paulo Emílio recuperando
Humberto Mauro como o pai do cinema novo?), esses dois filmes falam por
si próprios. Mas e depois? Depois de 1970, nada definido ainda.
A lista da Revista de Cultura Vozes dava Tudo Bem, de Arnaldo Jabor.
Outras listas deram Memórias do Cárcere, de Nélson
Pereira dos Santos. A lista de Contracampo colocou Cabra Marcado Para
Morrer, com ponto de exclamação em sexto lugar. A tradição
terá coroado a magnum opus de Coutinho como o único
grande marco de nosso cinema pós-cinema novo ou seria apenas uma
posição transitória devida ao imenso trabalho do
documentarista nos últimos anos? Só o tempo dirá.
Mas o que dizer de filmes como O Cangaceiro,
restrito a apenas sete votos (mais dois filmes da Vera Cruz foram citados)?
E as chanchadas, com apenas três filmes citados, e mesmo assim minguadamente
(Carnaval Atlântida, 7 votos; O Homem do Sputnik,
6; Nem Sansão Nem Dalila, 5). E o que dizer da inexpressividade
de quase todos os filmes votados de 1970 pra cá? Dois petardos
de Leon Hirszman, que mesmo assim era cineasta do cinema novo; Memórias
do Cárcere, sempre um momento forte na carreira do cineasta;
Ilha das Flores como um marco, 14 votos importantíssimos
para um curta-metragem; Toda Nudez Será Castigada, A Lira do Delírio,
Central do Brasil... todos com alguns votos significativos, mas nenhum
capaz de lutar em pé de igualdade com os cânones sessentistas.
É de se perguntar: por quê?
Uma razão sobressai, talvez: os anos
sessenta nos são todos contados. Ao contrário de toda a
nossa história, o tempo de contestação do cinema
novo já tem toda uma transparência para nós, já
está devidamente catalogado e historizado. Já tem os marcos,
os filmes inevitáveis, e isso é que dá a seus filmes
uma visibilidade muito maior do que o resto. Podemos ter dúvidas
quanto à melhor obra de Nélson Pereira dos Santos, mas a
tradição já nos diz: Vidas Secas. Sobre Joaquim Pedro,
a mesma coisa: Macunaíma... E sobre Júlio Bressane? Na dúvida
entre O Anjo Nasceu e Matou a Família e Foi ao Cinema,
nenhum entra. Reichenbach? Candeias, A Margem ou Aopção?
A história ainda não foi feita, e em vários dos casos
(os três últimos diretores) muita gente sequer viu os filmes.
Mas da mesma forma que a falta de uma história
impede que depois de 1970 tenhamos grandes marcos, é ao contrário
o excesso de história que formata nosso passado de forma que só
vejamos "os clássicos" e nada mais. Sim, temos Limite
e Ganga Bruta, mas só? Que fazer com São Paulo,
Sinfonia da Metrópole, que fazer com Tormenta e mesmo
com os outros filmes de Humberto Mauro? A estratégia do cinema
novo, de retomar a nossa produção do zero e observar onde
reside o nosso passado, trouxe a infeliz herança de criar um mito
da história do cinema brasileiro mais do que uma história
de fato.
Uma mentira muitas vezes repetida torna-se
uma verdade, disse Nietzsche. Podemos recuperar esse pensamento e dizer
que uma verdade muitas vezes repetida e reiterada torna-se um mito. Um
mito reativado torna-se um clichê. O cinema novo realizou sua tarefa,
construiu uma história e fez história na história
que construiu (todo grupo que se assume como marco histórico constrói
a história a partir de seu ponto de vista). Mas o que resta de
nosso na história que o cinema novo construiu? Devemos,
ao respeitar o movimento mais crítico da história
do cinema brasileiro, aceitá-lo sem críticas? Ou ser
fiel ao cinema novo consiste justamente em afastar o fantasma do cinema
novo de cima de nós? Os tempos são outros, as necessidades
são outras e os mitos não têm mais poder fundador
tornaram-se clichês... O clichê da favela, o clichê
do nordeste, o clichê da câmera na mão, o clichê
do alinhamento politizado também... Como mostrar sua admiração
ao cinema novo, como honrar Glauber Rocha? Sendo, segundo a expressão
corrente, viúva de Glauber? Mas a viuvinha é José
de Alencar, é romantismo.
Os verdadeiros cinemanovistas
não se rebaixam a dissimular suas opiniões e seus fins. Proclamam abertamente
que seus objetivos só podem ser alcançados pela revisão crítica
de todo o ideário do cinema novo. Nada temos a perder a não
ser remar contra o mito poderoso. Temos um novo cinema e uma nova memória
a ganhar.
Militantes do cinema
brasileiro, uni-vos!
Ruy Gardnier
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