Em Louvor de Person
São Paulo Sociedade Anônima, Luís Sérgio Person, 1965


Walmor Chagas em São Paulo S/A

(Texto publicado no Suplemento Literário do Estado de São Paulo e assinado)

Felizmente o que importa hoje é realizar um filme como se escreve um livro ou se pinta um quadro. Esta liberdade de criação em face do cinema tem seus pioneiros, e ocorrem-nos logo os nomes de Chaplin, de Stroheim, de Eisenstein, de Cocteau, e evocamos obras do vanguardismo francês e do expressionismo alemão.

Mas, hoje, as linhas mais vivas do cinema moderno são marcadas, de maneira sistemática, pelo signo da autoria. O cinema, arte cara, criação de fábrica, pôde emancipar-se em alto grau das imposições predominantes da indústria, e um Antonioni, um Fellini, um Bufiuel e tantos outros, inserem nos filmes as suas preocupações, modelam-nos com seu estilo pessoal, e o peso maciço da produção dobra-se, docilmente, à sensibilidade do seu autor. Não é impunemente que um crítico inglês chamou a fase atual do cinema de idade de ouro do cinema.

Mas quando isso acontece no Brasil, o nosso entusiasmo é ainda maior. E esse entusiasmo diante da modernidade do nosso cinema e da facilidade com que aprendemos o novo compasso aberto à sétima arte — como se aguardássemos o sinal dos tempos para usá-lo como sempre o desejamos fazer mais se estimula quando a experiência de criação que nos é oferecida tem como autor um jovem artista da nossa convivência e, como tema, a própria circunstância em que vivemos.

Em louvor de Person quero tecer meus ditirambos críticos, e em louvor da minha cidade quero assinalar que, pela primeira vez, a vejo captada, apesar da sua difícil recusa ao registro. Temo, apenas, que o que há de paulistano neste filme não seja prontamente assimilado pelas audiências estrangeiras.

Mas, de qualquer forma, eis uma obra de autor, a primeira obra de autor no plano do cinema urbano paulista. Começamos, recentemente, a enfrentar a face do país, com uma severidade e uma emoção que deu ao nosso cinema moderno categoria internacional válida. Nada se ocultou, porque não se fazia obra de exportação, mas de participação e de conhecimento. De súbito um Nelson Pereira dos Santos, um Glauber Rocha, um Paulo Cezar Saraceni, um Joaquim Pedro, um Roberto Farias, um Leon Hirszman, um Roberto Santos, para só citar alguns, levando as premissas propostas por um clássico da participação como Humberto Mauro e por um intuicionista de talento como Lima Barreto, começaram a olhar não o público, mas a realidade circundante, e fizeram cinema com o que viam e com o que testemunhavam.

Não podiam fazer de outra maneira, porque o que lhes interessava não era a bilheteria, mas a própria coerência, não era a indústria, mas o autêntico depoimento. Que interesse teria, para eles, jovens, dotados de consciência e de fidelidade aos problemas de sua geração e de seu país, utilizar o instrumento cinematográfico para reescrever frases feitas, narrar histórias sem data e brincar com a realidade da sua época?

E o que veio dessa aventura foi, ao mesmo tempo, a redescoberta do país, nas suas linhas fortes de crise — como a miséria do Nordeste, o sincretismo religioso das populações entregues à própria sorte, o afã de dedicação e de imolação seguindo na esteira dos taumaturgos e dos revoltados, as deformações impostas pelo progresso industrial atropelando estágios econômicos — e a descoberta, também, do poder de redenção contido no próprio testemunho.

Não era possível, tinham razão os jovens, nos limitarmos a um cinema de deleite, de fruição meramente estética, de divertimento superficial do público. Aqueles que não compreenderam que o grande acontecimento do cinema moderno foi a sua emancipação da categoria de espetáculo aprazível, para se impor como forma de conhecimento da realidade humana e social, ficaram à margem da esplêndida revolução e insistiram no cinema inautêntico, de fabricação de dramazinhos alienados, à maneira deste ou daquele paradigma consagrado.

No caso do Brasil, os novos diretores que surgiram nos últimos anos traziam, unanimemente, esse desejo de comprometer os filmes com as suas próprias idéias e suas próprias experiências. E, a tal ponto, que traíram uma certa repugnância pela caligrafia cinematográfica caprichada, que lhes parecia uma forma de impostura e de concessão. Colocavam mal os pronomes para conjugar melhor os verbos, dispensavam os adjetivos para dar relevo aos substantivos.

A Bahia e o Rio de Janeiro lideraram o que se denominou cinema novo brasileiro. Mas a identidade de pontos de vista foi quase total entre os jovens cineastas do país.

Agora Luís Sérgio Person dá a contribuição última de São Paulo a esse surto fecundo do nosso cinema atual, com o seu São Paulo S.A., reunindo uma equipe excelente onde, desde o produtor Renato Magalhães Gouvêa, até o fotógrafo Ricardo Aranovich, o montador Glauco Mirko Laurelli, o músico Cláudio Petraglia e os atores Ana Esmeralda, Eva Wilma, Walmor Chagas, Otello Zeloni, Darlene Glória, para só citar os de maior relevo, todos se empenharam para alcançar o resultado obtido.

O importante no filme de Person, além do fato de se constituir na primeira e ampla experiência de captação de problemas humanos da maior concentração urbana do país, é a circunstância de ser um depoimento pessoal. Person fala do que conhece e traduz em personagens e situações o seu sentimento da cidade onde nasceu e viveu. Este seu primeiro depoimento não é uma homilia. Isto não lhe interessaria. Só a decisão de debruçar-se sobre a humanidade paulistana confirma a sua profunda identificação com a cidade.

A atitude que assume tem semelhança com a dos outros novos do cinema brasileiro, buscando o ponto de crise, a linha de conflito, de onde nasce o drama, e não a exaltação superficial ou o documento neutro. Fazendo cinema na cidade ou nos sertões do Nordeste, o que procura hoje o nosso cinema não é o pitoresco nem o exotismo, mas a verdade. E a verdade registrada pela sensibilidade, portanto, interpretada.

Testemunho e interpretação, de tal forma que o testemunho venha marcado pela autenticidade da visão pessoal, eis o que dá a esta auspiciosa estréia de Luís Sérgio Person na longa-metragem a sua significação e indiscutível valor.

O herói de São Paulo S.A. é um anti-herói. Como o personagem da Tragédia Americana, de Theodore Dreiser, gerado pela filosofia do êxito norte-americano, o angustiado Carlos deste filme procura explicar-se e justificar-se pelo meio. É um fraco, um pusilânime, de certa forma cínico, por ausência de equilíbrio moral e de formação. É uma vítima do complexo econômico-social da urbe. Quer afirmar-se e, para tanto, não hesita em pactuar com a desonestidade no negócio e nas relações com as mulheres. Só encontra saída no amor, mas está comprometido, para cultivá-lo pela sua oscilante natureza.

O desespero do personagem sensibiliza o filme inteiro, e a cidade, ao fundo, comparece como ré do drama. Em nenhum momento Person distrai-se com a cidade como realidade autônoma. E isto me parece decisivo. A presença catalítica da metrópole existe para dar sentido ao drama, como grades de uma prisão na qual a criatura se debate, pensando libertar-se.

O filme se desenvolve em linhas paralelas, concorrentes e confluentes, armando um tecido rico de colocações humanas reveladoras. Apesar da complicada estrutura, não incide Person, ajudado pela mão segura do montador Glauco Laurelli, em formalismos exteriores. Para traduzir o máximo do corpo e do espírito da cidade, como núcleo do drama, precisava orquestrar a aventura do personagem com todo o universo urbano envolvente.

Nada mais paulistano — e é lamentável que a percepção dessa peculiaridade não possa ser fácil a platéias estrangeiras — do que a fuga desesperada de Carlos ao longo da vida noturna de São Paulo, ao mesmo tempo em que se processa a corrida de São Silvestre. Nada mais paulistano do que a pequena rua de bairro onde habita Luciana, na lívida madrugada em que Carlos proclama, ébrio, o seu amor.

Os pormenores locais, que plantam a história na realidade específica paulista, a verdade dos tipos femininos bem diversos, a figura admirável de Arturo, compõem um quadro que nos toca profundamente, pelo que representa como aproximação real e, ao mesmo tempo, condensada, do amálgama social e humano de São Paulo.

Person consegue jogar no filme, ao salientar um personagem-chave, a atmosfera, difícil de ser apreendida, da sua cidade, a São Paulo áspera e impiedosa da competição econômica, imenso centro de trabalho que cria a riqueza, mas sacrifica os mais frágeis na combustão do drama.

9 out. 1965

Francisco de Almeida Salles