Impressões sobre o seminário

 

O Seminário CINEMA BRASILEIRO: ANOS 90, 9 QUESTÕES foi, a meu ver, uma tentativa ambiciosa e abrangente de analisar e compreender o que representou (ou o que representa) a produção cinematográfica brasileira da década de 1990. O que me chamou a atenção de início foram a variedade e o rigor dos recortes temáticos que orientaram a constituição tanto da mostra de filmes e vídeos quanto das mesas de debates. Não me ocorre que tenha sido deixado de fora algum tema relevante. Na verdade, creio que a delicada questão do mercado (que acaba se vinculando a outras questões tão complexas quanto legislação e economia) talvez pudesse ser abordada com maior detalhe. Reconheço, porém, que este é um tema amplo demais e talvez merecesse um Seminário exclusivo.

Algo que gostaria de destacar de começo também é a expressiva participação da platéia, de onde partiram algumas questões originais e não suscitadas nos textos do Catálogo e nas comunicações dos palestrantes. Sinal de que muitos segmentos do público cinematográfico (estejamos falando de cinéfilos profissionais ou não) têm acompanhado com o interesse os debates em torno do cinema nacional que se acirraram na década de 1990.

O Catálogo da Mostra também merece ser destacado, pois não é apenas um catálogo de programação. Os textos que fundamentam as 9 questões a partir das quais se estruturou o Seminário o transformam em fonte de referência obrigatória para os interessados em cinema brasileiro em geral. Como algumas destas questões se interseccionam, há diferenças no tratamento de certos temas. Isto, sim, é que se pode chamar de diversidade. E a filmografia final, como já observei, é a radiografia mais completa disponível da produção da década.

Acho que a principal contribuição do evento foi a revelação de que, ao contrário do que rezava a lenda, a produção cinematográfica brasileira não se estagnou totalmente no começo da década, em decorrência da ação devastadora do governo Collor. O silêncio em torno da produção da Boca do Lixo paulistana conduziu a relatórios de produção incorretos no período, situação que o Catálogo do Seminário agora corrige. Esta constatação sugere que se afugentem preconceitos esquizofrênicos em relação à história do Cinema Brasileiro, impedindo que sejam ignorados ou rejeitados (a ponto de se lhes negar a própria existência) filmes que não agradem aos partidários deste ou daquele "modelo de filme brasileiro".

Outra coisa que gostaria de salientar é que, mesmo sem ter conseguido acompanhar a todos os debates, a questão do "cinema popular" (tema da mesa de que tomei parte) foi uma das mais abordados em todo o Seminário. Peço permissão para discorrer um pouco sobre isto. Fazendo um resumo do resumo, eu diria que Hernani Heffner, autor do texto do catálogo relativo à questão do cinema popular (que está disponível em versão ampliada na Contracampo), historicizou muito bem a variação semântica que sofreu o termo cinema popular e mostrou o espaço que cada uma das diferentes acepções ou vertentes deste cinema reivindicou ou conquistou na década de 1990. Assim, ele dá conta de várias definições de cinema popular, ou seja:

1. um cinema que visa o chamado "grande público", integrado pelas classes populares e médias; este cinema poderia ser desde o mais declaradamente comercial, que utiliza elementos de apelo popular para atingir este público, ou o cinema da "mea culpa", de realizadores que deram uma guinada em suas carreiras e propostas autorais e passaram a defender um cinema mais acessível etc. Acho importante no texto é o reconhecimento de que o tipo de filme brasileiro mais bem-sucedido comercialmente, e portanto mais popular, foi o filme infanto-juvenil de férias.
 
2. um cinema que se empenha em dar espaço para que o povo se expressasse diretamente, sem intermediação, herdeiro do CPC e de um certo Cinema Novo.
 
3. um cinema feito por realizadores egressos das camadas populares (não intelectuais de classe média, mas autênticos "homens do povo", como José Mojica Marins, Nilo Machado e Ozualdo Candeias), para citar três casos.

No Seminário, percebi uma propensão dos debatedores para um modelo de cinema que seja uma síntese das duas definições acima, com as adequações que a atualidade impõe. Mais do que isto, que o modelo de filme brasileiro defendido seria aquele que tematiza de forma lúcida e consciente o país, que formula uma visão ou interpretação da realidade nacional socialmente coerente e politicamente consistente e que, numa situação verdadeiramente ideal, o faça dentro de um estilo e linguagem cinematográfica também inconfundivelmente "brasileiros". De uma certa forma eu concordo com esta perspectiva, embora ache, para usar uma fórmula nada original, que o cinema que temos nem sempre é o cinema que queremos (como o país, diga-se de passagem).

A luta que se trava em torno do modelo ideal de cinema popular, como outras lutas semelhantes, não deve apontar um vencedor. Há quem defenda um certo tipo de cinema popular como uma "questão de sobrevivência". Este é o caso da diretora dos filmes de Xuxa, a Tizuka Yamasaki. Depois de ter atingido dois milhões de espectadores com SuperXuxa contra o Baixo Astral (1987) e dobrado esta cifra em Lua de Cristal (1990), Xuxa ficou 10 anos afastada do cinema. Seu retorno com Xuxa Requebra, lançado no verão 2000, com distribuição da Fox Film, foi um avassalador sucesso. Na época do lançamento, a diretora Tizuka, que já havia dirigido Lua de Cristal, declarou que achava importante esse tipo de filme. Além de permitir-lhe o exercício continuado da profissão - enquanto preparava outros projetos pessoais -, contribuía para a consolidação do cinema popular no Brasil.

Tizuka, diretora do premiado Gaijin, acreditava que Xuxa Requebra era uma contribuição para a afirmação do cinema popular, traduzindo, que cinema popular não era nada além de uma reunião de artistas consagrados na cultura de massa – cantores e dançarinas de axé music, modelos de capa de revista, atores de novelas e cantores recheados de discos de ouro – secundando ou coadjuvando o nume estelar de Xuxa, tudo costurado por um tênue fio de história para que o público cativo (que não ligaria a mínima se não houvesse nada mais além) acredite que se trata de um filme, não de uma edição um pouco mais comprida do Planeta Xuxa ou do Xuxa Park. Ela se esforça por legitimar este cinema popular perante as outras formas. Outros diriam que se trata de um cinema pragmático, porque visa o lucro certo e fácil e mereceria antes o aplauso, sob a fria luz dos números. Ou ainda, um cinema oportunista num certo bom sentido, na medida que seus produtores ofereceriam ao público já cativo da apresentadora um produto honesto, que diz ao que veio, sem nenhuma pretensão artística (de todo desnecessária). Exatamente o que o público quer e espera.

Os argumentos de Tizuka poderiam ser assim resumidos:
 
1. Cinema popular é grande sucesso de bilheteria.
 
2. Cinema popular é cinema menor, embora legítimo, feito para ganhar dinheiro (legitimamente).
 
3. De vez em quando, deve-se fazer um filme popular para tornar possível a realização de projetos pessoais de maior envergadura intelectual, de concepção mais sofisticada, mais adulta. Os fins justificam os meios.
 
4. Os diretores não devem ter preconceito contra o cinema comercial, isto é bobagem. Tudo é cinema, e tudo é válido para manter o profissional em atividade remunerada e que permita que ele vá treinando para não esquecer o que sabe.
 
O mais interessante é o terceiro ponto desta argumentação, que de certa forma desautoriza qualquer veleidade artística ao filme popular. Esta digressão, talvez um pouco longa, é só para fazer algumas considerações sobre um dos temas dos debates. Mas diversos temas relevantes foram tratados, como as formas de representação do Brasil pelo cinema da década (por Ismail Xavier e Ruy Gardnier), a anúncio do fim do Cinema Novo (Inácio Araújo), a relação do cinema brasileiro com a televisão, a publicidade e Hollywood nos 90 (Alfredo Manevy e Nelson Hoineff), entre outros.

Gostaria finalmente de fazer um comentário a uma observação absolutamente pertinente de Eduardo Valente no sábado, 24 de março de 2001, a respeito do fato de que maiores êxitos comerciais do cinema brasileiro da época estão associados à Rede Globo. Gostaria de dizer que a Rede Globo não é sinônimo de sucesso garantido, ao menos se formos fazer um balanço bem rigoroso da década. Cito dois exemplos. O primeiro é O Inspetor Faustão e o Mallandro, filme dirigido por Mário Márcio Bandarra em 1991, com dois populares apresentadores de programas de auditório (Fausto Silva) e infantil (Sérgio Mallandro). Ainda que fosse uma produção ocasional, feita para explorar o sucesso imediato de figuras televisivas, esperava-se um público bem maior do que o que foi prestigiar o filme nos cinemas. Tive a oportunidade de assistir a este filme, por dever de ofício e por curiosidade, numa sessão da tarde em período de férias na TV Globo, e posso afirmar que se trata de uma das mais inaceitáveis picaretagens perpetradas em nome do cinema, nacional ou não. O outro caso ilustrativo é Supercolosso, de Luiz Ferré, que Fatimarlei Lunardelli, em seu verbete sobre o Filme Infantil na ENCICLOPÉDIA DO CINEMA BRASILEIRO, diz ter sido o maior esforço de exibição jamais visto no cinema brasileiro (na verdade, não foi). A enorme audiência diária dos bonecos caninos manipulados nas manhãs da TV Globo parecia garantir um sucesso de bilheteria tranqüilo para o filme. Produzido e distribuído pela PARIS FILMES (é anterior a Globo Filmes), foi lançado simultaneamente em 234 salas em todo o país. O filme, porém, teve um desempenho de bilheteria muito abaixo da expectativa. Estes casos mostram que há altos e baixos na apropriação de personagens e tipos do universo popular da televisão e de outras mídias pelo cinema. Vamos aguardar a estréia cinematográfica pra valer da popularíssima dupla Sandy & Júnior, não em números musicais em filmes da Xuxa ou do Renato Aragão, mas como protagonistas de algum conto de fadas que consiga levar pelo menos uma pequena parcela dos seus milhões de fãs aos cinemas.

Lécio Augusto Ramos