"Nunca
fiz uma lista dessas
e não vai ser agora
que eu vou começar a fazer"

Carlos Diegues em carta aberta
à Contracampo
- Ao longo dos meses de janeiro, fevereiro
e março, quando a equipe de Contracampo procurou diversas pessoas
em busca de suas listas de filmes brasileiros prediletos, "os filmes
que fizeram a cabeça", como diz o texto abaixo, além
das respostas publicadas recebemos algumas negativas. Em uma carta enviada
a mim, Carlos Diegues explicitou com clareza alguns argumentos dos que
não se dispuseram a fazer uma lista. Percebendo isto, nós
lhe pedimos para publicar a sua carta, até como um contraponto
à idéia de fazer esta pesquisa, o que ele gentilmente
nos cedeu. É esta que segue abaixo.(Daniel Caetano)
* * *
Caro Daniel,
Obrigado pelo convite. Fico feliz em receber
seu email pois sou leitor assíduo e atento de Contracampo, desde
que, há algum tempo, Inácio Araújo me deu a dica
do site e seu endereço. A enquete recente que vocês fizeram
com os críticos, por exemplo, é um documento precioso
sobre o estado do pensamento cinematográfico no Brasil de hoje.
Conte comigo, sempre que você e Contracampo precisarem
de mim.
Mas infelizmente dessa vez não vou
poder colaborar com vocês pois não gosto, não costumo
fazer e sou até meio contra essa coisa de lista de dez melhores,
seja do que for. O cinema, como toda produção espiritual,
é complexo, imaterial e volátil, não tem a clareza
decisiva de um campeonato de futebol ou de uma corrida de cavalos, onde
a vitória de um só representa necessariamente a derrota
de todos os outros. Nunca fiz uma lista dessas e não vai ser
agora que vou começar a fazer, não sinto vontade alguma.
Ainda mais nesse caso, onde eu teria uma infinita dificuldade em listar
apenas dez filmes brasileiros que "tenham feito minha cabeça".
Por que só dez? Me considero, sem nenhuma demagogia , o cineasta
brasileiro de minha geração que mais foi influenciado
pelo próprio cinema brasileiro, o número de filmes nacionais
que transitam constantemente pela minha lembrança é enorme,
não tenho como compará-los e eliminar tantos para que
sobrem apenas dez. Por outro lado, muitas vezes a gente vive um momento
da vida em que tal cinema, tal cineasta, tais títulos, têm
uma importância muito grande que provavelmente não será
a mesma amanhã, quando as condições subjetivas
forem outras. Há filmes que eu admiro, outros que amo. Uns, sei
que são importantes, às vezes geniais, mesmo que não
sejam os meus preferidos. Outros, tenho prazer em vê-los e revê-los,
quantas vezes forem, embora saiba que nem sempre são aqueles
que mais marcaram a história de nosso cinema. Que critério
adotar para uma seleção de dez, sem ser injusto com seu
gosto e seu coração, sendo ao mesmo tempo preciso e coerente
com a história objetiva do cinema brasileiro? Como optar entre
matérias tão distintas e igualmente relevantes como, por
exemplo, Mario Peixoto e Humberto Mauro? Ou os dois e alguém
tão posterior quanto Glauber Rocha? Em que circunstâncias
escolheremos entre a chanchada e o Cinema Novo ou entre esse e o chamado
Cinema Marginal? Como escolher apenas um ou dois filmes da vasta e brilhante
filmografia de Nelson Pereira, apenas para dar espaço a outros
realizadores que admiramos igualmente? Que efeito pode causar no leitor
dessa lista uma escolha de filmes extraordinários que ele provavelmente
nunca viu e nunca verá, como por exemplo O Canto do Mar,
Cara de Fogo ou Bahia de Todos os Santos? Antes de ser
um cineasta, sou um cinéfilo. Faço filmes, em primeiro
lugar, porque amo o cinema. E esse amor me faz ver uma média
de um filme por dia, nas salas, no video, na TV. Muitos deles são
brasileiros que descubro e às vezes redescubro (ou procuro esquecer!),
conforme minhas aflições do momento.
Escolher apenas dez entre tantos filmes
que me foram tão importantes, em diferentes momentos, por diferentes
razões, é uma espécie de "escolha de Sofia", onde
a injustiça com os preteridos vai certamente perturbar e empanar
a glória dos vencedores. Peço portanto que me entenda
e me perdoe a recusa, não a tome por desfeita. Pelo contrário,
reitero meu respeito e minha admiração pelo trabalho de
Contracampo, que continuarei a acompanhar com o interesse de sempre.
Mais uma vez, obrigado pelo seu convite, com um abraço do
Carlos Diegues
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