Cabra Marcado Para Morrer, de Eduardo Coutinho

O último grande filme?

Deus e o Diabo, Limite, o Bandido da Luz Vermelha…, entre os filmes brasileiros mais certos de integrarem uma lista dos 10 melhores, está, surpreendentemente, em sexto lugar, Cabra Marcado para Morrer. O único documentário presente, além de o único filme realizado a partir da década de oitenta. Porém, a partir da constatação de que grande parte destes dez filmes diz respeito a um imaginário específico da década de sessenta, estará Cabra Marcado tão deslocado assim da lista mais óbvia ?

Qual sua importância para uma cinematografia que ainda hoje se espelha no Cinema Novo e que o ainda tem como referência de Cinema? De que forma Cabra Marcado também diz respeito a este ideal?

O filme de Coutinho é um dos últimos grandes filmes políticos brasileiros, e é a partir deste ponto que se estabelece uma relação mais próxima com a produção cinemanovista. Político, na medida em que é um instrumento ativo de questionamento de posturas tanto governamentais quanto de opinião pública. Uma postura não tanto marxista como a da década de sessenta em geral, diferenciada dela justamente por ser produto de um contexto novo, pós golpe, de um período em que o pensamento marxista foi perdendo sua hegemonia dentre a esquerda brasileira e mundial.

Um filme que trata de lutas de classe através de histórias extremamente pessoais e a partir do resgate de um primeiro filme que teria sido outra coisa caso não fosse interrompido. O que teria sido o outro Cabra se torna pouco importante diante do incrível resultado que é o Cabra que conhecemos. Um filme que não somente diz respeito a um período histórico, como também é História, ele é o próprio período do qual faz parte: Esteve tão suscetível aos acontecimentos do país quanto as pessoas estiveram, e pode ser tão ativo diante deles quanto elas, sofre toda uma transformação ideológica e estética ao longo do seu processo de realização. Não é um filme que simplesmente retrata um contexto, mas que se constrói em um momento crucial de reformulação deste, fazendo-se cúmplice dele também.

O filme de Coutinho começa a ser rodado em um momento de agitação das ligas camponesas nordestinas, é perseguido em função da ditadura e retomado assim que se desenha uma abertura política suficiente para se pensar a história recente. Um filme que é sobre outro filme e assim, ao mesmo tempo em que coloca em questão problemas como o sistema agrário e a repressão, questiona também o fazer cinematográfico. Um documentário claramente interventor em seu objeto, que não se coloca como algo exterior a ele, que traz uma linguagem nova aliada a um projeto político.

Coloca-se a partir dele a possibilidade mais concreta e direta de um cinema participativo, responsável por parte da vida de seus personagens. O fato de ser um documentário que lida com pessoas reais dá ao filme e ao seu diretor uma oportunidade efetiva de intervenção em suas vidas. Um cinema político que ultrapassa uma proposta de conscientização de injustiças sociais, muito comum na década de sessenta.

O filme de Eduardo Coutinho traça assim sua ligação com a geração cinemanovista: é uma ponte entre esta e a produção de meados da década de oitenta e de noventa. Faz parte de um momento histórico intermediário, assumindo uma postura política que irá se esmaecer e se modificar na produção cinematográfica que o segue: É evidente, a partir da última década, o abandono quase absoluto de uma ideologia defensora do cinema como instrumento político. É a crise da política como um todo se refletindo na produção cinematográfica brasileira atual.

Cabra Marcado para Morrer seria então o último grande filme brasileiro?

Até quando estaremos presos aos ideais do Cinema Novo? Até que ponto as questões dessa geração também não continuam atuais e ainda não resolvidas? Até que ponto o Cinema Novo, revisto, pode suprir as necessidades de inovação estética e de levantamento de questões atuais ?

Não há nada mais a ser acrescentado na história de nosso cinema pela produção dos anos 90 ?

Abandonaremos o modelo cinemanovista em função de que Cinema?

Repetirá a próxima geração essa lista de dez melhores filmes, ou terá como referência filmes que terão em comum apenas o fato de serem heterogêneos demais para fazerem parte de algo maior: seja um movimento, um pensamento... uma lista ?

Marina Meliande