O último grande
filme?
Deus e o Diabo,
Limite, o Bandido da Luz Vermelha…, entre os filmes brasileiros
mais certos de integrarem uma lista dos 10 melhores, está, surpreendentemente,
em sexto lugar, Cabra Marcado para Morrer. O único documentário
presente, além de o único filme realizado a partir da
década de oitenta. Porém, a partir da constatação
de que grande parte destes dez filmes diz respeito a um imaginário
específico da década de sessenta, estará Cabra
Marcado tão deslocado assim da lista mais óbvia ?
Qual sua importância
para uma cinematografia que ainda hoje se espelha no Cinema Novo e que
o ainda tem como referência de Cinema? De que forma Cabra Marcado
também diz respeito a este ideal?
O filme de Coutinho é
um dos últimos grandes filmes políticos brasileiros, e
é a partir deste ponto que se estabelece uma relação
mais próxima com a produção cinemanovista. Político,
na medida em que é um instrumento ativo de questionamento de
posturas tanto governamentais quanto de opinião pública.
Uma postura não tanto marxista como a da década de sessenta
em geral, diferenciada dela justamente por ser produto de um contexto
novo, pós golpe, de um período em que o pensamento marxista
foi perdendo sua hegemonia dentre a esquerda brasileira e mundial.
Um filme que trata de lutas
de classe através de histórias extremamente pessoais e
a partir do resgate de um primeiro filme que teria sido outra coisa
caso não fosse interrompido. O que teria sido o outro Cabra
se torna pouco importante diante do incrível resultado que
é o Cabra que conhecemos. Um filme que não somente
diz respeito a um período histórico, como também
é História, ele é o próprio período
do qual faz parte: Esteve tão suscetível aos acontecimentos
do país quanto as pessoas estiveram, e pode ser tão ativo
diante deles quanto elas, sofre toda uma transformação
ideológica e estética ao longo do seu processo de realização.
Não é um filme que simplesmente retrata um contexto, mas
que se constrói em um momento crucial de reformulação
deste, fazendo-se cúmplice dele também.
O filme de Coutinho começa
a ser rodado em um momento de agitação das ligas camponesas
nordestinas, é perseguido em função da ditadura
e retomado assim que se desenha uma abertura política suficiente
para se pensar a história recente. Um filme que é sobre
outro filme e assim, ao mesmo tempo em que coloca em questão
problemas como o sistema agrário e a repressão, questiona
também o fazer cinematográfico. Um documentário
claramente interventor em seu objeto, que não se coloca como
algo exterior a ele, que traz uma linguagem nova aliada a um projeto
político.
Coloca-se a partir dele
a possibilidade mais concreta e direta de um cinema participativo, responsável
por parte da vida de seus personagens. O fato de ser um documentário
que lida com pessoas reais dá ao filme e ao seu diretor uma oportunidade
efetiva de intervenção em suas vidas. Um cinema político
que ultrapassa uma proposta de conscientização de injustiças
sociais, muito comum na década de sessenta.
O filme de Eduardo Coutinho
traça assim sua ligação com a geração
cinemanovista: é uma ponte entre esta e a produção
de meados da década de oitenta e de noventa. Faz parte de um
momento histórico intermediário, assumindo uma postura
política que irá se esmaecer e se modificar na produção
cinematográfica que o segue: É evidente, a partir da última
década, o abandono quase absoluto de uma ideologia defensora
do cinema como instrumento político. É a crise da política
como um todo se refletindo na produção cinematográfica
brasileira atual.
Cabra Marcado para Morrer
seria então o último grande filme brasileiro?
Até quando estaremos
presos aos ideais do Cinema Novo? Até que ponto as questões
dessa geração também não continuam atuais
e ainda não resolvidas? Até que ponto o Cinema Novo, revisto,
pode suprir as necessidades de inovação estética
e de levantamento de questões atuais ?
Não há nada
mais a ser acrescentado na história de nosso cinema pela produção
dos anos 90 ?
Abandonaremos o modelo
cinemanovista em função de que Cinema?
Repetirá a próxima
geração essa lista de dez melhores filmes, ou terá
como referência filmes que terão em comum apenas o fato
de serem heterogêneos demais para fazerem parte de algo maior:
seja um movimento, um pensamento... uma lista ?
Marina Meliande