O cinema popular acabou?
por Hernani Heffner

 

Cinema popular: algumas questões

Quando uma sociedade volta-se para seus segmentos humanos mais amplos, pobres e ignorados, procurando pesquisar traços culturais que configurem uma identidade, estamos classicamente diante da tentativa de construção ou de reforma do estado-nação. Dos românticos, no século XIX, aos modernos, no século XX, perdura um longo e vasto processo de definição do ser brasileiro, cujas raízes históricas, étnicas e culturais se conformam sempre ao homem comum. A "autenticidade" e a "pureza" das classes ditas populares sustentaram várias proposições teóricas e inúmeros projetos concretos de documentação e preservação de manifestações culturais do povo. O razoável consenso existente entre os estudiosos quanto à existência e pertinência de uma "cultura popular" só sofreria sérios abalos com a irrupção da chamada "indústria cultural" (no caso brasileiro, com alguma expressividade nos anos 30-40, e de forma definitiva a partir dos anos 60). No dizer dos que defendiam a primeira, esta a desfigurava ou mesmo provocava o seu desaparecimento, sobrepondo-se como manifestação "fácil" (e por vezes lucrativa, ao contrário do evento autêntico) ou lazer imediato e apelativo. Para os membros da própria indústria cultural, em geral seus executivos, tratava-se apenas de transposição a um meio mais eficiente, duradouro e democrático das obras da cultura como um todo, não configurando uma padronização técnica, estética e ideológica a priori.

Em que pese os problemas conceituais que ambas as posições apresentam, é preciso reter suas linhas de pensamento básicas e verificar o quanto elas penetraram o cotidiano de um campo como o cinema. A expressão "cinema popular" é certamente contraditória em termos, sendo a sétima arte um produto típico da Segunda Revolução Industrial e um dos maiores segmentos da indústria cultural do século XX. Mesmo assim admite uma pluralidade de sentidos dependendo da época e de quem a emprega. Nos anos 50, aqui e lá fora, cinema popular significava basicamente cinema comercial, ou seja, um conjunto de filmes feitos com a intenção de atingir grandes parcelas do público, que mantinha com estas obras uma relação de aceitação, familiaridade ou demanda. As expectativas de ambos os lados coincidiam e convergiam em grande parte para uma linguagem naturalista, sacramentada na chamada narrativa clássica. De certo modo este sentido perdura até os dias atuais, ainda que o filme hoje compartilhe seus significados internos com os apostos pela campanha publicitária que o lança no mercado, isto é, na sociedade. Nos anos 60, para nós brasileiros de uma certa classe média politizada, cinema popular também queria dizer cinema engajado. A rigor seria um cinema realizado em nome e em prol das classes populares, mais especificamente do proletariado, assumindo um olhar crítico da sua visão de mundo. Daí a atribuição bastante comum às cinematografias do antigo leste europeu do adjetivo populares. Na passagem para os anos 70, surge mais um sentido, desta vez recuperando o conceito romântico de popular. Para os cineastas identificados com o chamado universo marginal, haveria um cinema praticado de uma forma autêntica, ou seja, como forma de expressão livre dos convencionalismos impostos pela produção industrial. Esses realizadores se encaixariam na categoria dos artistas primitivos, naïfs, para os quais o meio de expressão (cinema ou outro qualquer) não passa de uma extensão de seu processo interior de representação do mundo. Esses cineastas também estariam ligados aos estratos mais baixos da sociedade, reforçando os elos com uma expressão cultural não maculada pela padronização tão ao gosto dos estratos médios e de elite (cultura nessa época significava basicamente as preferências enunciadas pelas classes dominantes). Nos anos 80, o que se colocaria em xeque seria justamente essa oposição, revelando-se com base em estudos históricos e em novas definições teóricas para o conceito, a existência de uma tradição popular no cinema brasileiro. A amplitude e a longevidade de sua linguagem característica evidenciariam inclusive um enraizamento em fontes culturais mais amplas, prestando-se assim a servir também como signo de um ser brasileiro.

O cinema praticado nos anos 90 propicia um bom terreno para a verificação dos destinos desses cinemas populares forjados já há algum tempo. Se em momentos anteriores ocorreu um cinema feito por realizadores egressos das classes populares, visando o grande público e atrelando-se a ou revendo um estilo ou gênero cinematográfico qualquer, as transformações estruturais mais amplas da última década trouxeram um quadro aparentemente novo. A outrora tendência generalizante foi como que se dissolvendo, particularizando seus elementos internos, e até mesmo desaparecendo. À diluição característica do produto de mercado da indústria cinematográfica brasileira se sobrepôs uma renovada ênfase nos temas "nobres" e na eficiência narrativa, valores mais afetos aos reclamos de uma classe média cada vez mais onipresente nas salas de exibição. Nesse sentido não basta apenas associar tal ou qual filme a uma idéia ou fórmula de cinema popular preconcebida. É preciso perceber em que corrente, vale dizer, tradição, ele se insere e como se comporta dentro dela. Descobrir se a obra tem caráter epigônico ou reformador, lastro popular ou de elite, representação realista ou estilizada, pode esclarecer sobre o que ainda seja considerado popular em termos cinematográficos no Brasil contemporâneo.

Retomando as por assim dizer quatro séries básicas, pode-se estatuir que um cinema visando o grande público, integrado principalmente pelas classes populares e médias, tem em um O Cangaceiro, um Bye Bye Brasil ou um O Quatrilho exemplos marcantes e bem sucedidos. O projeto da Vera Cruz e assemelhados, dos "produtos de qualidade" à la Embrafilme e dos primeiros títulos da chamada retomada dos anos 90, parece assentar-se na proposição de um diálogo com o substrato cultural desse enorme contigente visado. Não por acaso recorre-se a temas e a tipos identificados a esse universo, assim como a um cinema de gêneros, isto é, pré-codificado, e à uma ênfase no dramático, como que reencenando a nação em um modo compreensível e assimilável. Esta intenção, em específico, ganha corpo no considerável número de filmes baseados em figuras e fatos da história brasileira feitos nos últimos anos. Títulos como Guerra de Canudos, Hans Staden e Quem Matou Pixote? assumem uma posição aparentemente isenta diante da narrativa histórica, fazendo do didatismo recurso e finalidade últimos para ganhar a atenção do espectador. A "distorção" apontada por historiadores e especialistas, longe de representar uma condenação dessa produção só reforça sua adequação aos padrões clássicos do espetáculo cinematográfico, no qual a emoção se sobrepõe à reflexão.

Colocar-se política, social e esteticamente próximo às classes populares e à cultura popular implica obviamente em um recorte diferente da realidade, pelo menos para cineastas egressos de outros estratos. Saindo dos moldes reconfortantes do cinema de gênero, os realizadores precisam desnudar os discursos temáticos e formais, desmascarando a ideologia ou utilizando-a em favor dos oprimidos. Se o Cinema Novo desenvolveu este projeto, o fez assumindo a condição do oprimido, seja para criticá-lo em sua alienação, limitação e conservadorismo, seja para alçar-se à condição de um seu representante legítimo. Neste segmento, o panorama que se seguiu foi o de uma gradual modificação desse parti-pris. Em vez de ser a voz do oprimido, aprendeu-se a dar espaço para que ele se exprimisse diretamente, respeitando a dinâmica interna de suas manifestações culturais. A evolução desta crítica e a procura por um equilíbrio tensionado de ambas as posições parecem ter encontrado nos anos 90 um momento culminante e acabado. Basta pensar em filmes como O Fio da Memória, Conterrâneos Velhos de Guerra e especialmente Santo Forte. A resolução desta questão, aparentemente afeta a uma geração específica, vem acompanhada pelo abandono quase que completo deste tipo de proposição cinematográfica. Os filmes citados são também praticamente os únicos desta natureza, não podendo ser confundidos com documentários mais "clássicos" como, por exemplo, .

Reagindo à apropriação de uma "voz popular" e reconhecendo nela uma irredutibilidade, começou-se a frisar na virada para os anos 70 a existência de verdadeiros cineastas populares. Para além do fato de serem egressos dos estratos mais baixos da sociedade, realizadores como José Mojica Marins, Ozualdo Candeias e Nilo Machado exprimiam em seus primeiros filmes um ponto de vista identificado aos processos culturais populares. Mais do que isso, reformulavam em termos inteiramente novos, incluindo por vezes o estético, a representação da vida e da mente do homem comum. Embora alçados à categoria de "cults" nos anos 80, muito em função da adoração pelo trash que se instalou naquele momento (uma forma de exotismo e enquadramento?), não conseguiram também chegar à contemporaneidade em atividade regular, nem deixaram seguidores expressivos. As transformações na configuração do mercado interno – fim das formas de exibição tradicionais, substituídas pelos multiplexes altamente concentrados em áreas densamente povoadas, assim como o encarecimento das entradas e conseqüente concentração do público na classe média – e o fim da base de produção que alicerçava seu trabalho, como, por exemplo, a famosa Boca do Lixo, contribuíram decisivamente para o descontinuidade de suas carreiras. Se ainda existem naïfs, como o brasiliense Afonso Brazza, produzem penosamente para um mercado atomizado e regional, retrocedendo a uma estratégia característica dos ciclos regionais da década de 20. O que sobrou foi o fetiche da produção de baixo custo, retomado de tempos em tempos pelas novas levas de cineastas em nada populares e associado a suposto estilo trash movie, como em Loura Incendiária.

Se as camadas populares do grande público evadiram-se das salas, especialmente quando são projetados filmes brasileiros, como atraí-las novamente? Esta questão perpassou a década de 90, não só como resposta ao interregno provocado pelo governo Collor, mas também como redefinição de um formato de produção brasileira de mercado. Sabendo-se que a classe média é insuficiente no Brasil para a formação de uma grande bilheteria, tentou-se reincorporar de alguma forma o universo popular. Buscou-se no início simplesmente dar prosseguimento a determinados gêneros ou ainda recuperar elementos cinematográficos tradicionais. Chanchada, pornô-chic, sexo explícito, filme de aventura, filme infanto-juvenil de férias, há de tudo um pouco nos primeiros anos do período. Títulos como O Escorpião Escarlate, Forever, Aventuras Eróticas de Dick Traça, A Gaiola da Morte e Uma Escola Atrapalhada esforçam-se em reeditar um cinema de expressão popular, alcançando bilheterias decepcionantes, mesmo entre os mais bem sucedidos. Os cerca de trinta filmes feitos até 1993 evidenciam a falência dos vários modelos de produção anteriores. Mesmo a inserção de um dado popularesco como a dançarina Carla Perez, no tardio e epigônico Cinderela Baiana, não altera o quadro e o destino do filme, fracasso retumbante em meio a grande expectativa contrária.

Dentro todos os tipos de filmes mencionados acima, o único que sobrevive, não sem uma pausa no tempo e um retorno com algumas alterações decisivas, é o produto infanto-juvenil de férias. Considerando todo o período, são exibidos cerca de vinte e cinco títulos, o que configura o filão de maior vigor do momento e quase um "gênero" dentro do cinema brasileiro. Se nos primeiros tempos Manobra Radical, Era Uma Vez e Supercolosso não se saem bem, quando a estratégia de produção descobre a nova face do público tem-se títulos algo sofisticados como Menino Maluquinho, Como Ser Solteiro e Castelo Rá-Tim-Bum. Além disso, ao se associar de vez o elemento televisivo – na prática a verdadeira cultura popular de massa do Brasil contemporâneo -, e se recuperar com convicção alguns dos elementos estruturais da tradição cinematográfica popular brasileira, demarcada como origem na chanchada de caráter musical, criou-se condições nos últimos anos para um novo tipo de produto infanto-juvenil. De Zoando na TV à Requebra e Popstar, estamos diante da paródia inofensiva (a Amazon Women on the Moon) e do recurso aos sucessos musicais do momento, veiculados não mais pelo rádio e sim pela televisão. Estamos também diante da presença mais sistemática deste veículo como produtor cinematográfico, recriando uma cadeia que incorpora boa parte das chamadas camadas populares.

A crítica considerou a maior parte destes produtos de baixa qualidade cultural. Em que pese o preconceito a priori existente em muitos textos e o equívoco conceitual ao substituir estético ou artístico por cultural, efetivamente a maioria dos filmes é ruim e fez muito sucesso de público. Esta constatação é bem menos importante do que a percepção do uso da mesma estratégia – recuperar o elemento popular por sua origem – por um outro conjunto de filmes, este reconhecido pela crítica como culturalmente relevante. Títulos como Central do Brasil, O Auto da Compadecida e Eu,Tu, Eles desenvolvem o mesmo movimento de busca de um diálogo maior com o grande público, e o fazem tentando trabalhar tanto uma linguagem acessível quanto um universo temático de domínio comum. A noção de cultura que esses filmes exprimem se constrói próxima àquela advogada por folcloristas e historiadores da cultura popular, isto é, apresenta-se associada a um momento arcaico, quase inicial e portanto, mais puro e autêntico, porque intocado pelas distorções do mundo contemporâneo. Não por acaso, os três convergem para o mesmo universo, o Nordeste, e o retratam como um lugar pobre mas com gente nobre, esperta e capaz de sobreviver às contradições do dia a dia. O sucesso alcançado foi tão grande quanto o dos filmes "televisivos".

O que fica deste panorama? A primeira constatação dirige-se para o fato de que formas tradicionais de se fazer cinema no Brasil parecem ter se esgotado na última década. A pornochanchada, o sexo explícito e o cinema de gêneros clássicos simplesmente desapareceram ou estão fadados ao fracasso, como demonstram os casos recentes de O Dia da Caça e Tolerância. Não parece haver também mais espaço e principalmente meios de sustentação econômica para experiências desenvolvidas por cineastas efetivamente egressos das classes populares. O cinema comercial enquanto tal é aquele praticado por uma indústria cultural de fato, a qual na verdade, em grande parte, recicla dados culturais. Estes são em grande parte populares no sentido de um circuito popular de consumo. Se existe um outro cinema, alternativo a este, eles diferem apenas na fatura estética e não na postura ideológica. Não por acaso o diretor de Eu, Tu, Eles declarou que seu propósito era "fazer Cinema Novo bem feito". Ou seja, há uma apropriação da "voz popular", procurando-se como que utilizá-la simbolicamente em termos de uma construção de identidade, e de uma outra tradição, desta vez cinematográfica (tanto quanto a chanchada serve de base aos filmes "televisivos"), a qual chancela uma outra origem nobre. Sem falar na reiteração da usurpação do discurso do outro, e na reificação de uma imagem de pureza e bons sentimentos a uma terra atravessada por profundas contradições sociais, uma e outra se vêem submetidas ao "bem feito", isto é, a um padrão de mercado definido pelos limites de uma indústria cultural, pois a cultura popular, classicamente uma resistência à exclusão, conforma-se apenas ao valor de uso e não ao valor de troca.

Hernani Heffner é pesquisador