Temos local na aldeia global?
por Eduardo Valente

 

Se olhamos para a produção "brasileira" dos anos 90, um problema logo vem à tona, por definição: o que qualifica de fato uma obra de arte como "nacional", como "brasileira"? Será que há um e apenas um critério que defina isso? Onde, afinal, reside a autêntica nacionalidade de uma obra? E mais, isso realmente tem importância?

De fato, as questões de nacionalidade estão presentes até antes de se começar a filmar. Alguns filmes optam pelo caminho da co-produção, o que leva geralmente a uma tentativa de se adequar a alguns parâmetros contratuais que pedem divisão de elenco, de línguas, de locações, causando uma dificuldade de se "nacionalizar" o filme. Temos o exemplo de O Judeu, de Jom Tob Azulay que, em parte por conta da co-produção, foi um filme difícil de se finalizar. Ou, talvez ainda melhor, Bocage – O Triunfo do Amor, de Djalma Limongi Batista, que faz da co-produção com Portugal não apenas circunstância prática, mas tema principal do filme, na verdade um grande estudo da herança lusitana e da mescla de culturas que confunde Brasil, Europa e África, em torno da língua portuguesa. Mesmo caminho pode-se encontrar, ainda que menos diretamente, em Terra Estrangeira, de Walter Salles e Daniela Thomas, que tenta mostrar uma geração que se sente sem pátria.

Outra questão importante diz respeito à nacionalidade do diretor, especialmente se visto como o autor da obra. Exemplos na década incluem Olé – Um "Movie" Cabra da Peste, de Roberto Santucci, filmado por um brasileiro, todo passado nos EUA, mas usando um tema tão tipicamente americano quanto brasileiro: a imigração. E os filmes dirigidos por Bruno Barreto em Hollywood ou Sérgio Toledo na Inglaterra, possuem algo de brasileiro? Ou o caso mais emblemático: Coração Iluminado, dirigido por Hector Babenco. Argentino radicado há anos no Brasil, mas que realiza aqui uma volta ao seu país de origem, uma reflexão sobre sua juventude, praticamente toda falada em espanhol. Como localizar a nacionalidade do filme?

Existem ainda as questões sobre o "futuro" do filme, seu lançamento. Muitos filmes tentam incorporar personagens, línguas ou atores estrangeiros já pensando no lançamento com um pé no mercado internacional. Podemos citar os exemplos de Oriundi, com Anthony Quinn, ou de Bela Donna, com Natasha Henstridge e Andrew Mc Carthy contracenando com pescadores cearenses falando inglês. Ou ainda Jenipapo com os sem-terra poliglotas e A Grande Arte, primeiro longa de Walter Salles, estrelado por Peter Coyote. Mas, talvez o filme que melhor incorpore esta tentativa de internacionalização na sua trama seja mesmo Bossa Nova, de Bruno Barreto. No entanto, não por acaso, os filmes de maior repercussão em festivais no exterior não possuem nenhum personagem estrangeiro ou falando outra língua, como é o caso exemplar de Central do Brasil, mas também de Sertão das Memórias. Parece que, assim como no Cinema Novo, aos estrangeiros interessa um certo olhar sobre o Brasil que não precisa incluir nem eles como personagens, nem sua língua. Mas, afinal, se a língua indicasse nacionalidade poderíamos pensar que Tudo é Brasil, de Rogério Sganzerla, talvez o mais brasileiro filme da década, não o fosse por ser quase todo em inglês.

Mas os filmes exibidos na sala de cinema do CCBB durante a mostra são os que expõem de forma mais direta as contradições e dificuldades de se localizar a nacionalidade e sua expressão num filme. Temos O Monge e a Filha do Carrasco, um filme dirigido não só por um brasileiro, mas por um dos pioneiros do Cinema Novo (talvez nosso movimento cinematográfico mais "nacional" e, como dissemos, mais internacional...), Walter Lima Jr. A produção também é brasileira, assim como boa parte do elenco. Um filme nacional, então? Pode ser, mas não tão depressa: afinal o filme é inteiramente falado em inglês, financiado por americanos e se passa numa terra e tempo incertos, mas que certamente não representam o Brasil. Complicou? Então que tal o seu oposto: um filme passado no Brasil ou, mais especificamente, no interior. Um documentário, produzido por um brasileiro, falado em português. Ah, bom, este sim é um filme "nacional", certo? Mas, por outro lado, dirigido por um inglês (Nigel Noble), com um trabalho visual e narrativo que não se diferencia muito da investigação de tantos documentários que podemos ver na TV e no cinema mundial. Porque seria Os Carvoeiros um filme brasileiro, então?

Por final, o filme que fechou a década explicitando toda esta confusão. Um filme cujo próprio diretor é um reflexo da confusão de identidade nacional. Nascido em Moçambique, filho de portugueses, com passagens pela França, Portugal, Cuba, e principalmente Brasil, onde construiu uma significativa obra cinematográfica. Mas não é brasileiro; aliás, segundo ele mesmo, não é de lugar nenhum. Sua pátria, disse uma vez, é a língua portuguesa. Estaria na língua então a expressão da nacionalidade? Pode parecer solução, mas aí é que Estorvo complica tudo de vez. Expressão exata desta sensação de não pertencer a lugar nenhum, a nada, a ninguém, o filme é falado numa mistura de línguas e sotaques que a cada minuto aumenta a desorientação de seu protagonista e de seu espectador. E a paisagem? Ruy Guerra opta por misturar Rio de Janeiro e Havana de forma que não se sabe qual cena foi filmada aonde. A verdade é que esta é a cara da modernidade, este é o mundo hoje: uma paisagem transnacional, uma língua que agrega todas, uma eterna sensação de "não pertencer". Estorvo fecha a década com mais perguntas que respostas, como todos nós.

Eduardo Valente é editor da revista eletrônica Contracampo