O (cinema) brasileiro tem memória?
por João Luiz Vieira

 

Vem a ser lugar comum a afirmação de que o brasileiro não tem memória, de que poucos em nosso país se interessam por nossa história, por nosso passado. Outro lugar comum, e este não é igualmente privilégio do Brasil, localiza esse desinteresse num contexto geocultural, que explica, ainda pelo viés do "Novo Mundo," a ausência de um passado forte e digno de ser preservado. Aqui tudo é novo, estamos sempre condenados a um "futuro" que, na verdade, parece nunca chegar. Por outro lado, conseguimos produzir um cinema que tem uma história, celebrada em meados da década passada com pouca pompa e quase nenhuma circunstância. O cinema produzido no Brasil da década de 90 procurou, em diversos momentos, manter um diálogo com essa história, através da retomada de temas caros à construção de uma identidade cinematográfica nacional – o retorno ao sertão, a paisagem e o imaginário do Nordeste tomados como iconografia consagrada, imagem forte de domínio público já exaustivamente trabalhada pela televisão – ou através da citação, da paródia que reverencia mais que debocha, de homenagens ou simplesmente através de remakes, algo novo que surgiu nesse diálogo com o passado e que talvez seja a mais forte lembrança de que, sim, possuímos também a memória de um cinema vigoroso à espera de um redescobrimento.

A arqueologia investigadora, que tenta resgatar materialmente o que ainda sobrou desse passado visual, incorporou, narrativamente, imagens caras à nossa história, tematizando o próprio cinema como história – o exemplo bem sucedido de Aurélio Michiles em O Cineasta da Selva ou as incríveis imagens do verdadeiro Lampião, filmado pelo olhar estrangeiro do libanês Benjamin Abraão em Baile Perfumado. Além da ficção, o trabalho criterioso de pesquisa também se expressou de maneira singular e sempre polêmica através de documentários que também buscaram questionar os limites desse formato – em especial Sylvio Back, talvez o cineasta que de forma mais consistente vem se ocupando de nosso passado, histórico ou artístico, em filmes como Rádio Auriverde e, especialmente, Yndio do Brasil. Esse baú de imagens tem nos ajudado a entender um pouco de nossas contradições – como somos, como nos vêem, como gostaríamos (ou não) de ser diferentes, ultrapassando a história individual de cada personagem, coletivo (como nos índios de Back) ou individual (a Carmem Miranda, de Bananas Is My Business, ou o outro estrangeiro cineasta Orson Welles na seqüência de documentários de Rogério Sganzerla), mas sempre emblemáticos de uma certa idéia de nação que vai sendo colocada em xeque.

A herança histórica do cinema brasileiro foi remexida e apropriada no sentido de, longe da busca de rupturas com o passado, conforme radicalizada pelo Cinema Novo, tentar reatar pontes e continuidades – em especial quando esteve em jogo a necessidade de um cinema que corresse atrás do chamado grande público. É o que acontece com a chanchada revisitada de For All, O Trampolim da Vitória. Ou, num outro viés mais contemporâneo, com seqüências do tipo Quem Matou Pixote?. O pressuposto é que, de alguma maneira, trazemos boas lembranças de um período onde havia uma identificação ampla entre um público popular e o cinema nacional, hoje quase inexistente. Popularizada pela televisão em inúmeras novelas, a busca de uma iconografia "brasileira" (ou melhor, do que se consagrou como sendo o melhor do cinema brasileiro) retornou às imagens do cangaço e do sertão, agora invariavelmente afastadas do sofrimento e do desconforto do passado preto e branco do Cinema Novo. Em meio a belas paisagens e pôr de sóis "cinematográficos," essas imagens ressurgiram em filmes – além do Baile vale lembrar Central do Brasil, Eu Tu Eles, O Cangaceiro, O Sertão das Memórias – em que tanto a linguagem quanto em especial a fotografia "transformaram o sertão num jardim ou num museu exótico, a ser resgatado pelo grande espetáculo," conforme nos diz Ivana Bentes.

Prova incontestável do resgate da memória cinematográfica brasileira é a sucessão de remakes de filmes de sucesso ou não, que ganharam novas e sedutoras embalagens, como Matou a Família e Foi ao Cinema, Navalha na Carne ou O Cangaceiro, este, não por coincidência, refilmagem de Aníbal Massaíni do clássico de Lima Barreto, o primeiro filme a revelar, internacionalmente, a existência de um forte cinema latino abaixo do Equador. Simultâneo ao resgate do imaginário do sertão e do diálogo com o nordestern, sua atualidade foi a de reviver, ainda que rapidamente, a retomada de valores estéticos e de produção perdidos na Vera Cruz dos anos 50. Tal como naquela remota experiência, estamos diante de um cinema que exibe um total domínio não apenas da técnica – sempre elogiável na medida em que materializam valores por toda a vida cobrados do cinema brasileiro, em especial com relação ao som e à cor – mas também da narrativa mais clássica, produzindo filmes que se querem internacionais e populares, ou melhor, "globalizados" ao condensar temas locais, históricos ou tradicionais, dentro de uma estética "internacional".

Se a memória hoje cada vez mais não tem pátria, no cinema ela freqüentemente misturou o nacional com o internacional. Assim o diálogo com a memória cinematográfica é um exercício sem fronteiras que pode tanto cruzar o Atlântico quanto, mais uma vez, as paisagens do sertão pelo viés poético da reverência a um Wim Wenders, seja em Terra Estrangeira ou em Central do Brasil, espécie de releitura brasileira de Alice nas Cidades. Esse cinema de citação e reverência talvez tenha encontrado sua expressão mais consistente nos filmes de Guilherme de Almeida Prado. Longe da paródia autofágica da chanchada ou da ironia debochada do cinema marginal, filmes como Perfume de Gardênia ou A Hora Mágica animam imagens que valem por si só, desrealizadas, fechadas num acúmulo de referências intertextuais, visivelmente encenadas, fingidas. Esse universo claustrofóbico amplia, de uma certa forma, o conceito de paródia no pós-modernismo, conforme Linda Hutcheon, para caracterizar uma atitude que se situa menos no pastiche ridicularizante do que na reverência ao modelo. Continua provocando um distanciamento, agora mesclando à reverência um componente complementar de fascinação por formas narrativas consagradas que assimilam um anti-naturalismo hoje completamente diluído ao gosto de platéias cult. É de se perguntar: por que a memória, diante da espetacularização cada vez maior do que pode ser o real, exacerba exatamente o falso, o encenado?

João Luiz Vieira é pesquisador e professor de cinema na UFF