Hollywood, TV, publicidade:
referência ou interferência?
por Alfredo Manevy

 

Uma coisa e outra ocorreram com os filmes brasileiros dos anos 90: referência e interferência, e não raro num mesmo trabalho. Tomada em stricto sensu, entendo a relação de referência como aquela feita com consciência, mas que pode ou não estar imbuída de crítica. Na relação de referência, o cineasta não apenas consome e reproduz o ícone de Hollywood, mas ciente de sua origem e sentido, joga com ele a partir de objetivos que podem ou não ir além desse universo que lhe empresta citações. E entenderei como interferência a relação inversa, onde o universo de "empréstimo" ganha a queda de braço, e faz do cineasta a sua interferência inconsciente no contexto brasileiro.

Nas poucas e genéricas auto-críticas que os cineastas brasileiros costumam promover, vejo acentuar-se uma herança pouco democrática, que é a quase proibição de exemplificar as críticas quando negativas. Só se estimulou o "falar bem", num sintoma do qual obviamente é impossível falar bem: a década de 90 foi uma das mais rarefeitas em termos de reflexão, e uma das mais corporativistas do cinema brasileiro (só salva pelo gongo no nítido crescimento de debates públicos em festivais e novas publicações entre 1997-2000). Filmes como Buena Sorte mostram bem os efeitos estéticos dessa rarefação. Seu desastre não tem nada a ver com sorte ou azar, e nem com a procura do interior americanizado do Brasil. Está sobretudo no primarismo estético (subestimação da narrativa clássica) e na própria incapacidade de dar continuidade a uma aposta de gênero, o que significaria realizar outros filmes country (tarefa inviável sem indústria), além de muito investimento em pesquisa (coisa que produtores de set, alçados a produtores executivos, ainda acreditam ser anti-comercial). Procurou-se o gênero sem a procura de indústria e seus procedimentos, o que é uma piada sem graça para os cofres públicos. Desacertos de gênero passam então a procurar o nicho de arte e ensaio, como um alento indevido. Já realizadores como Walter Salles e Andrucha Waddington começaram na seara do gênero e depois se afastaram, aprimorando-se como cineastas, e mostrando que muito do flerte com o cinema americano também viabilizou, no caso deles, o molde de aprendizado e menos a idéia de projeto estético (tal como se via no cinema paulista dos anos 80, de Wilson Barros e Chico Botelho). No caso de Salles, um bom exemplo de que a referência ao cinema americano pode não necessariamente significar o rompimento do cineasta com um esforço de pensar do país.

Filmes como Os Matadores, O Dia da Caça, Bossa Nova, Pequeno Dicionário Amoroso e Ed Mort são casos ainda mais interessantes de referência ao cinema de Hollywood, numa chave de inserção melhor pensada. Com seus altos e baixos, Os Matadores aponta para o filme de fronteira, subgênero interessantíssimo pelas tensões territoriais, sociais e políticas, que põem em foco pela simples escolha desse terreno explosivo. Tipo de filme que, em Hollywood mostrou seu enorme potencial de gênero, e com Orson Welles, seu potencial político. Bossa Nova acertou ao ir no vácuo de Pequeno Dicionário Amoroso, apostando na possibilidade de uma comédia romântica carioca, ainda que sem o brilho que a TV conseguira nas Comédias da Vida Privada. A versão empobrecida da aposta é Como ser Solteiro, mas versões empobrecidas às vezes fazem parte da construção de um gênero. No caso de Ed Mort, ao não incorporar o aspecto mais sofisticado da comédia clássica, o filme perdeu a chance de fundar um possível "noir tropical". Uma desenvoltura maior no trato com o gênero só será vista em O Dia da Caça, na simbiose de narração clássica e fundo político que os filmes de Hector Babenco e Antônio Calmon já tinham nos anos 70, e num cruzamento inteligente com outro brilhante filme dessa década, Apocalipse Now.

O Que é Isso Companheiro? me parece um caso mais específico de filme, que trabalha no limite de filme político e thriller psicológico, e que faz dessa ambigüidade seu oportunismo mais questionável, pois sabe-se que os movimentos mais gerais da política têm pouco a ver com a psique dos jovens. Como Nascem os Anjos já se assume como comédia de erros, com boas doses de ironia social, o que parece ser mais assumidamente um projeto que o cineasta Murilo Salles vem aprimorando filme a filme.

E não podemos omitir que, na década de 90, apesar da forte incidência de Hollywood em nossa cultura e da proliferação dos que se autodenominam "autores", muitos deles americanófilos, ninguém formulou o gênero enquanto problema, como faziam, por exemplo, Bressane e Sganzerla. Os diretores da Belair eram, antes de tudo, muito cultos e críticos. Ironicamente, o cinema marginal foi moda "verbal" entre os "autores" dos anos 90; e o gênero, um repertório de uso.

Por fim, é fundamental entrar num patamar mais definidor da opção interferência vs. referência que, além de se mostrar a esta altura um tanto forçada, deixa agora de ser meramente estética. A simultaneidade entre a bandeira do sucesso de público e o quase total abandono da atuação política da classe, substituída pela negociação com agentes e empresários, acabou criando uma situação contraditória para as apostas de gênero. Se conscientes ou não, pouco importa. Também não contribuiu a fumaceira ideológica promovida por parte dos cineastas. Houve quem procurasse o público em chave autoral, quem fizesse homenagem ao Cinema Novo em chave melodramática (ou seja, num gênero anti-Cinema Novo), quem citasse Bressane fazendo cinema à moda de Robert Zemeckis. Tudo combinado a um discurso de apologia da diversidade e não-afirmação de projetos: o discurso circulante só reproduziu o paradoxo da atividade no modo de produção. E realça o fato mais particular dos anos 90: foi a primeira vez na história do cinema brasileiro em que, sem projeto algum de indústria, tanta gente procurou o alcance de público que lhe é característico.

Alfredo Manevy é editor da Revista Sinopse e mestrando da ECA-USP