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Que
história é essa?
Cinema e História na década de 90 A década recém terminada caracterizou-se pelo número expressivo de produções que dialogam com a história do Brasil, variando muito de intensidade, forma e perspectiva ideológica. Motor importante neste sentido foi a efeméride dos 500 anos do descobrimento. Mas num nível mais profundo pode-se atribuir tal característica ao fato dos cineastas, em tempos de globalização, terem sentido a necessidade de rediscutir a questão nacional, e aqui se constituiu um amplo arco de respostas indo de risíveis ufanismos até propostas radicais sobre um país "cronicamente inviável". Quase desde as suas origens, conforme observou Jean-Claude Bernardet, a cinematografia brasileira buscou temas na história pátria1. A asserção pode ser verificada já no segundo decênio do século XX através de filmes como A vida do Barão de Rio Branco (dir: Antônio Leal, 1912), O grito do Ipiranga (dir: Giorgio Lambertini, 1917) ou Os heróis brasileiros na guerra do Paraguai (dir: Achilles Lambertini e Giorgio Lambertini, 1917). Pelas informações existentes, já que estas fitas estão desaparecidas, a orientação ideológica das tramas encaixava-se num quadro completamente oficial de leitura da história do Brasil. Para os seus realizadores tratava-se tanto de buscar a inserção do produto nacional no mercado interno apelando para uma temática com pouca probabilidade de sofrer concorrência estrangeira, como também era uma forma de integração destes indivíduos junto à elite política e social da época, da qual eram dependentes economicamente2. Até os anos 50 a filmografia inspirada na história do Brasil pautou-se pela reprodução da leitura oficial e conservadora, a única exceção talvez tenha sido o documentário de longa-metragem Vinte e quatro anos de lutas (dir: Ruy Santos, 1947) sobre a trajetória do PCB (Partido Comunista Brasileiro), mas o filme ficou retido na censura e se perdeu. Somente a partir do Cinema Novo os realizadores abordarão de forma crítica a história do país em filmes instigantes como Ganga Zumba (dir: Cacá Diegues, 1964), Deus e o diabo na terra do sol (dir: Glauber Rocha, 1964) e Como era gostoso o meu francês (dir: Nelson Pereira dos Santos, 1970), dentre outros. Não se deve, entretanto, pensar que o antigo veio desapareceu, mas sim há uma convivência dos dois desde então. Por exemplo, O que é isso, companheiro? (dir: Bruno Barreto, 1996), Guerra de Canudos (dir: Sérgio Rezende, 1997), Mauá, o imperador e o rei (dir: Sérgio Rezende, 1999) e Hans Staden (dir: Luiz Alberto Pereira, 1999) encaixam-se num quadro oficial de interpretação da história do Brasil, quadro que obviamente não é o mesmo entre os anos 10 e os 90 mas cujos interesses mistificadores permanecem, daí coisas incríveis como a extravagância sanguinária de um dos guerrilheiros, a caracterização estereotipada de Antônio Conselheiro, o paternal Mauá tomando cachaça com o ex-escravo moribundo ou o chefe indígena apresentado como bom selvagem na acepção mais ingênua. Nestes filmes, e a eles poder-se-ia juntar O quatrilho (dir: Fábio Barreto, 1995) e Anahy de las missiones (dir: Sérgio Silva, 1997), os conflitos solucionam-se através do entendimento mútuo e mesmo quando não se resolvem a palavra de ordem é manter a esperança, afinal há sempre um belo sol no horizonte – imagem recorrente em várias das películas citadas. Da mesma forma que na década de 10 trata-se de tentar penetrar no mercado interno dominado com um produto cuja temática dificilmente pode sofrer a concorrência estrangeira, mas agora também há o esforço redobrado em oferecer ao espectador um espetáculo diante do qual, pelo menos, ele não sinta vergonha ou constrangimento ao fazer comparações com as fitas norte-americanas. Também a fim de se aproximar do espectador, a narrativa tende a ser a mais esquemática possível, não se precisando lembrar o quanto isto já determina em boa medida a leitura histórica conservadora. Carlota Joaquina, princesa do Brazil (dir: Carla Camurati, 1994) e For all, o trampolim da vitória (dir: Luiz Carlos Lacerda e Buza Ferraz, 1997) no tocante à trama não diferem do quadro da história oficial. Entretanto, estas fitas possuem a virtude de retrabalhar um tipo de humor cuja origem em termos audiovisuais remonta à chanchada e por isso elas recolocam em jogo de forma implícita uma fatia da história do Brasil, a saber, àquela relativa ao cinema aqui produzido. A ambigüidade gerada pela opção em explicitar uma leitura banal da história política mas trabalhar implicitamente com códigos cinematográficos muito enraizados no imaginário nacional cria uma dissonância especial e que particularmente Carla Camurati trabalhou bem. O documentário ocupou papel de destaque no tratamento cinematográfico da história brasileira. O velho (dir: Toni Venturi, 1997), apesar de acertar em cheio ao escolher como tema a vida de Luis Carlos Prestes, transforma questões relevantes em fofocas pois dá excessivo crédito a figuras pouco confiáveis na função de historiadores e/ou analistas. Rádio Auriverde (dir: Sylvio Back, 1991) continua o trabalho de Sylvio Back de recontar cinematograficamente episódios marcantes da nossa história com um posto de vista crítico, ressaltando-se nesse caso a criteriosa pesquisa de imagens de arquivo sobre a participação brasileira na Segunda Guerra Mundial. Césio 137 (dir: Roberto Pires, 1990), que poderíamos chamar de exercício de história imediata sobre o acidente ocorrido com material radiativo em Goiânia no final dos anos 80, é dos poucos docudramas brasileiros realizados de forma competente. Mas o grande destaque fica por conta de Conterrâneos velhos de guerra (dir: Vladimir Carvalho, 1990), no qual a saga de Brasília é recontada a partir dos depoimentos de operários que presenciaram o massacre de companheiros num protesto quando da construção da capital, fato este abafado pelas elites e transformado pelo filme numa metonímia das relações sociais no Brasil. Curioso notar que a própria história do cinema foi tema de documentários, a causa passa pelas efemérides – 100 anos de cinema e 100 anos de cinema brasileiro – mas é nítida a preocupação dos cineastas em buscar novas identidades do passado com as quais possam dialogar. Seja a trajetória da estrela que sai do Brasil e vai para Hollywood – a Carmen Miranda de Bananas is my business (dir: Helena Solberg, 1995) –, do gênio internacional incompreendido por todos mas apaixonado pelo país – o Orson Welles de Tudo é Brasil (dir: Rogério Sganzerla, 1998) – ou do cinegrafista sensível vivendo num lugar paradisíaco porém inóspito – o Silvino Santos de O cineasta da selva (dir: Aurélio Michiles, 1997) – configura-se a sedução pelo artista deslocado mas que apesar de tudo realiza uma obra marcante. Fora desta perspectiva, temos O cinema de lágrimas (dir: Nélson Pereira dos Santos, 1995) que misturando ficção e documentário amarra uma viagem pela produção de melodramas da América Latina numa espécie de acerto de contas, pois é sabida a antiga desconfiança dos cinemanovistas para com a produção cultural dita popularesca. Voltando à ficção, três filmes de interesse na sua relação com a história são Lamarca (dir: Sérgio Rezende, 1994), O judeu (dir: Jom Tob Azulay, 1996) e Brava gente brasileira (dir: Lúcia Murat, 2000). Sérgio Rezende conseguiu dar dimensão complexa a Lamarca evitando quase sempre a tentação de fazê-lo uma espécie de super-herói, muito embora o final quase ponha tudo a perder com o personagem morto numa posição que lembra Jesus Cristo. O judeu é baseado na biografia do dramaturgo Antônio José da Silva que nasceu no Brasil e trabalhou em Portugal no século XVIII, o filme chama atenção pelo refinado tratamento imagético e por discutir a intolerância sem apelar para o sentimentalismo ou para o reino das conciliações. Lúcia Murat fez uma das reflexões mais ricas do cinema brasileiro contemporâneo sobre as contradições e a violência do encontro entre as culturas européias e ameríndias, evitando todo tipo de mistificação e apontando para a força da memória como forma de resistência. Cabe ainda destacar alguns filmes adeptos do experimental no nível da linguagem e que desenvolveram propostas de leitura da história fora dos cânones oficiais. Em Bocage – O triunfo do amor (dir: Djalma Limongi Batista, 1998) retoma-se a tradição do cinema nacional de alegorizar os grandes movimentos históricos mas aqui não apenas do Brasil como de todo mundo lusófono, importando também destacar a chave estética homoerótica que lhe dá um ar absolutamente inovador e, infelizmente, pouco analisado. Nós que aqui estamos por vós esperamos (dir: Marcelo Masagão, 1999) buscando refletir sobre o que foi o século XX no mundo utiliza predominantemente imagens de arquivo e música, alguns letreiros e nenhuma locução; sua articulação não se detém nos fatos dando mais valor às problemáticas gerais, ou seja, não interessa por exemplo a Segunda Grande Guerra mas sim a questão dos grandes genocídios. Alma corsária (dir: Carlos Reichenbach, 1994) tem uma solução narrativa inteligente ao evitar construir personagens cujas motivações fossem dadas pela necessidade em ilustrar acontecimentos históricos, como bem apontou Ismail Xavier o filme "... destaca vivências que aludem a momentos históricos emblemáticos, desde os anos 50, mas se concentra no relato de uma vida curta, porém intensa, pontuada pela continuidade da amizade e por uma nítida escolha dos valores alternativos, em oposição ao reacionarismo político e ao senso filistino do pequeno-burguês"3. Finalmente em O baile perfumado (dir: Lírio Ferreira e Paulo Caldas, 1997) reconta-se as aventuras de Benjamin Abraão, cinegrafista das únicas imagens em movimento de Lampião, aqui se entrecruzam temas clássicos da nossa história social com a própria história do cinema brasileiro, e, mais do que isso, se discute a questão da construção das imagens, dos interesses aí envolvidos e das múltiplas possibilidades de reapropriação da história e das imagens. Arthur Autran é professor de história do cinema brasileiro no Depto. de Cinema da FAAP e doutorando no Instituto de Artes da Unicamp. |
1 BERNARDET, Jean-Claude. Qual é a história? In: BERNARDET, Jean-Claude, AVELLAR, José Carlos e MONTEIRO, Ronald. Anos 70 – Cinema. Rio de Janeiro: Europa, 1979. p. 49-50. 2 Ver GALVÃO, Maria Rita. Crônica do cinema paulistano. São Paulo: Ática, 1975. p. 46-72. 3 XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro dos anos 90. Praga, São Paulo, v. 9, jun. 2000. |