|  Como 
        se (des)constrói um país?por Juliano Tosi
 
     A expressão 
        é tradução do meio social, espaço simbólico 
        do auto-reconhecimento – e, como tal, tem conseqüências históricas 
        diretas. Ao situar e dividir o tema em termos de formação 
        nacional, o que se propõe é, antes de tudo, um desejo de 
        interpretar e se enredar por esse caminho: o que o cinema brasileiro representou 
        nos anos 90 em relação à identidade do país. 
        Ao tomar como dado fundamental do debate a questão estética 
        – e, neste caso, mais ainda, uma estética da repercussão, 
        do querer-dizer, da militância da imagem – o que se tenta alcançar, 
        na verdade, é a questão ética: não apenas 
        o conteúdo, mas a forma de dizê-lo – também faz parte 
        da resposta. Sem dúvida, é uma anatomia do Brasil – como 
        também o símbolo da lei meio caótica dos eventos 
        nacionais, traço de um país ainda em formação, 
        atrasado na corrida da História e que, sem tempo a perder, precisa 
        (re)pensar sua auto-imagem à medida mesmo que a elabora, que busca 
        sua identidade: afinal, como se (des)constrói esse país? 
        No cinema brasileiro, como já se disse, tudo é signo, 
        pois tudo significa: tradição que existe na precariedade 
        (no mais das vezes involuntária, diga-se) das chanchadas, na fome 
        cinemanovista, no lixo e na boçalidade marginais – e na incompletude 
        geral. De uma maneira ou de outra, tudo isso sempre revelou, por analogias 
        políticas, muito sobre quem nós somos. E nos anos 90, qual 
        foi a postura do cinema brasileiro diante da experiência social 
        periférica e subdesenvolvida? Quais foram as soluções 
        estéticas que os diretores encontraram para se deixar contaminar 
        pelas tensões do país?, para desarrumar o arrumado?, 
        para proclamar de boca cheia seu inconformismo? Numa década 
        de diversas mudanças no mundo, de vários dados novos no 
        imaginário coletivo, mas que fechou suas cortinas reescrevendo 
        os descompassos de um progresso sempre ambíguo, conservador, de 
        uma modernização iminente nesse Brasil, no entanto, de eternos 
        contraste e conflitos – nessa década de 90, em qual papel o cinema 
        se fez empenhar? Se desde a falência 
        do projeto nacional-popular – seja pela fantasia de uma abrangência 
        completa, seja pela impossibilidade desse tipo de intervenção 
        pedagógica – o cinema brasileiro se debate de maneira intensa sobre 
        a questão do "como falar do país", o que acontece 
        nos anos 90 é algo ainda mais profundo: a necessidade de um novo 
        cinema, a urgência de se conferir um outro valor à imagem, 
        de se investir numa significação estética para além 
        da convenção – cultural, sim, como também social 
        – falsamente neutra. Um sonho em especial pontua essas exigências: 
        o de se criar uma imagem que, ao buscar seu modelo fora da razão 
        dominante, ao subverter as expectativas e instalar a crise em sua própria 
        forma de dizer, faz vir à luz o que há de oculto no cinema 
        condicionado e inoculado do clichê. E o melhor do cinema brasileiro 
        na década, o que mostrou mais vigor, foi o que tratou de superar 
        a crise de invenção e encarar os desafios que aparecem – 
        notadamente o se fazer de novo relevante e ressonante, após alguns 
        anos de esquecimento no limbo da preocupações nacionais. 
        É um cinema que muitas vezes, é verdade, existiu e resistiu 
        à margem do novo arranjo de produção, ignorado pelo 
        público e mal digerido pela crítica – mas que ainda assim 
        cuida de in(ve)stigar, de transfigurar novos sentidos para o país, 
        de ser o mau exemplo para o espectador, procurando intervir primeiro nos 
        olhos para, quem sabe, criar e experimentar outras realidades. Tarefa nem sempre 
        fácil, diga-se, mas é apenas dessa maneira que o cinema 
        pode redescobrir o Brasil: não um problema de captação 
        de recursos, ou meramente de mercado, como muito se falou, mas uma questão 
        preliminar, crucial, de diálogo existencial (o que ainda não 
        é), transfigurante e visionário (o que será?) entre 
        filme e espectador, imagem e nação. O cinema como forma 
        de problematizar as respostas imediatas e surradas, que não atendem 
        mais às demandas imediatas do mundo, como forma de sonhar – e coletivizar 
        – outras experiências de vida, de sugerir realidades que – ainda 
        – não existem. Cinema ponta-de-lança, que descobre e experimenta 
        livremente, que rompe com a distância respeitável do espetáculo 
        (a passividade consumidora), que vence as resistências iniciais 
        de fruição – tudo em nome do que muitos tentam fazer esquecer, 
        os encantos e exuberância criativa brasileira.  Cinema interpessoal, 
        também, de investigação de identidade, que seleciona 
        os momentos fundadores do imaginário coletivo para reencontrar 
        valores privilegiados, para buscar o que há de permanência: 
        Orson Welles em Tudo É Brasil, no meio do carnaval carioca, 
        captando um Brasil num mosaico sincrético, popular e não-oficial; 
        Mário Reis subindo o morro, transgredindo a etiqueta social da 
        época e criando um novo modo de cantar nas imagens de O Mandarim. 
        Cinema de essência, de cumplicidade com o que é ancestral 
        na experiência brasileira, que reencontra sua gente através 
        de um olhar ora mítico, ora crítico: assim Crede-mi, 
        assim O Sertão das Memórias.  Cinema de desconfiança 
        nas imagens do Brasil central, oficial, que informa não apenas 
        pelo tema, mas pelas situações que mostra e, principalmente, 
        pela maneira de mostrá-las. Seja o retrato cruel dos subúrbios, 
        do lado arcaico do país no que ele tem de mais violento e selvagem, 
        do ocaso do sonho liberal dos anos Collor: O Vigilante; seja a 
        vivência individual como comentário e síntese desses 
        tempos globalizados e de crise do pensamento ideológico: Estorvo; 
        seja o diagnóstico cáustico das mazelas e frustrações 
        nacionais, em contraste ao imaginário moldado pela televisão: 
        O Lado Certo da Vida Errada.  Enfim, cinema de paixão, 
        claro, de conversão ao Brasil: são imagens que descrevem 
        o Brasil, não apenas como o local da incompletude, mas como espaço 
        onde ele pode se realizar e manifestar em sua plenitude – para o bem e 
        para o mal –, onde tem seu próprio modus vivendi, imperfeito, 
        mas coisa nossa – este que é o dado importante. Juliano Tosi é 
        redator da revista eletrônica Contracampo | 
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