Como
se constrói um país
por Ruy Gardnier
Não é
de hoje que o cinema brasileiro tenta construir a imagem do país.
Intencionalmente ou não, desde os anos 30 o cinema nacional apoia-se
nos mitos pátrios para refletir uma determinada imagem, um determinado
perfil de nação. Desde Carmen Miranda esbanjando simpatia
exótica até Humberto Mauro filmando o Descobrimento à
maneira de um milagre, a aposta de que o cinema deveria refletir uma certa
essência brasileira estava lá - do bárbaro acolhedor
que era a imagem desejada pelo colonizado (Zé Carioca não
nasceu à toa) até o patriota autodeterminado desde seu nascimento,
tentativa de elaboração de uma imagem própria. Colonizada
ou em vias de independência, a nascente imagem cinematográfica
do país manterá entretanto uma característica comum:
a tentativa de criação de um mito de origem brasileiro.
Trinta anos depois,
eclode o cinema novo como um movimento de renovação de temas,
linguagens, modos de produção e sobretudo com o interesse
de fazer da figura do diretor de cinema um intelectual, um interlocutor
social válido no que diz respeito aos rumos da nação,
à existência dos brasileiros, à política cultural,
etc. Era interesse dos cineastas do cinema novo debater, em seus filmes,
com os discursos de outras áreas de saber sobre o Brasil: antropologia
(Gilberto Freyre), literatura (Mário de Andrade), crítica
(Antônio Cândido, Paulo Emílio). Em verdade, o que
estava em jogo nessa disputa modernista era o mito fundador que responderia
à questão "o que é o Brasil?", e a crença
de que uma fábula histórica autóctone poderia criar
uma identidade nacional, uma representação do país
como um todo. Como o dito de Orlando Senna, o mundo deveria ser "pensado
pelos cineastas-filósofos". Assim como no começo do século
XIX na Alemanha (Goethe, Schiller, Hölderlin), o Brasil moderno recorria
às ficções (literatura, cinema) para fazer filosofia
e exprimir uma figura do brasileiro. Figura na acepção
de Ernst Jünger: um todo que é maior do que a soma das partes.
O cinema novo tem
uma relação de dupla opressão com o mito fundador:
de uma parte ele precisa cassar o mito, tentar romper a figura do mito
(herança do populismo), e de outra ele precisa se comportar como
criador de imaginário, o que resvala na mitificação.
E esses mitos são quase sempre os mesmos: fazer do povo o elemento
dinâmico do sistema, mostrando a passagem da ignorância à
tomada de consciência (populismo de esquerda), e recorrer à
imagem de um Brasil profundo, representado pelos segmentos mais pobres
e desassistidos do país – subúrbios, favelas, campo –, e
que por isso mesmo encarnariam uma essência brasileira (essencialismo).
Assim Cinco Vezes Favela, Barravento, Macunaíma...
Se há uma tensão que permeia todo o cinema novo, é
a que poderia bem ser expressa pela seguinte questão: "pode-se
mistificar o povo?" Esse é o ponto de fissura desse movimento e,
mais profundamente, o ponto de fissura dos dois projetos estético-políticos
advindos do Modernismo literário. Respondendo positivamente à
questão do mito, Paulo Emílio e o grupo Clima (e a grande
maioria das obras do cinema novo) tomam Mário de Andrade como guru
filosófico e tentam criar a figura essencial brasileira. Respondendo
negativamente à necessidade de mi(s)tificar, está o Glauber
Rocha de Deus e o Diabo em diante, retomando Oswald de Andrade
para fazer da obra de arte a purgação da impossibilidade
de criar um mito. O herói glauberiano é por excelência
aquele que tenta apegar-se aos mitos (Corisco, Sebastião, Porfírio
Diaz, Governador Vieira), mas que não consegue porque sabe que
nenhum mito vai conseguir sintetizar a idéia de um brasil unitário,
essencialmente o mesmo. O lema do herói positivo de Glauber não
é Matar ou Correr, mas correr (Deus e o Diabo) ou
morrer (Terra em Transe).
Nos anos 90, o jogo
estético-político não assumiu a mesma força
de movimento como nos anos 60. Os tempos são outros: insistem em
nos dizer que a política é questão de economia, que
vivemos a era do "fim das ideologias", que não existe
mais direita e esquerda. Diversos cineastas, todavia, tentaram expressar
cinematograficamente uma síntese daquilo que seria essencialmente
o Brasil, o que certamente envolve questões políticas e
estéticas. A tentativa mais ambiciosa de construção
da imagem do país é Central do Brasil, premiado filme de
Walter Salles. Aparentemente despretensioso (não custa lembrar
que as palavras Central e Brasil não foram escolhidas
ao acaso), o filme narra a saga de uma brasileira comum, mas descrente
e cética, rumo a um Brasil essencial (um Nordeste estilizado, em
processo de reconstrução existencial), onde ela guiará
um ser humano órfão (ou seja, sem direção)
a seu lugar próprio; assim, ela conseguirá ela mesma ganhar
um sentido e uma crença. A metáfora assistencialista (ou,
como propõe um gênero literário em voga, de auto-ajuda)
é inescapável: o filme propõe a caridade e o paternalismo
como solução de redenção nacional, apoliticamente,
conforme a tradição conservadora brasileira.
Mas se a esperança
ingênua, de um lado, esconde uma séria e perigosa convicção
política, igualmente o niilismo ressentido conduz à inoperância.
Cronicamente Inviável Ao fragmentar a narrativa em diversos
esquetes, o diretor Sérgio Bianchi dá um sentido de totalidade
nacional à trama, e nela coloca inúmeras situações
onde abundam a violência interpessoal, a anomia e a culpa social,
numa estética da abjeção que não poupa o espectador,
fazendo-o sentir-se mal pelo que está vendo. Se o riso desesperado
e o sadismo são a única saída política para
um Brasil cronicamente inviável, estamos feitos. Cronicamente
Inviável constrói um mito de nação pela
negativa.
Santo Forte,
de Eduardo Coutinho, propõe outra forma de resolver a questão
da imagem do país. Subindo o morro com sua equipe em busca de uma
pesquisa sobre religiosidade, Coutinho observa sem prejulgamento um todo
sincrético que entretanto não pode ser sintetizado por um
mito. Se há síntese de nação, ela não
carrega com ela um sentido totalizante de nação. Apenas
vive-se. Coutinho propõe um cinema da multiplicidade sem síntese
possível, uma relação com o espectador que não
o violenta ou acaricia, mas que faz dele cidadão, sem paternalismo
nem culpa social.
Se o cinema novo vivia
com a presença massificante herdada dos anos 30 da necessidade
de criar um mito de nação, a tarefa política do cinema
por vir é desembaraçar os anos 60 dos anos 30.
Ruy Gardnier é
editor da revista eletrônica Contracampo
|
|