O
que há de novo no cinema novo?
por Inácio Araújo
O
Cinema Novo não existe mais. O que Walter Lima Jr. faz não
tem nada a ver com o que faz Cacá Diegues. E o que este faz pisa
em solo bem diferente que o de Paulo Cezar Saraceni ou Nelson Pereira.
Na
verdade, olhando retrospectivamente para os anos 60, verifica-se facilmente
que cada um desses cineastas (e mais Glauber, Joaquim Pedro, Person, Roberto
Santos, Gustavo Dahl, Hirszman, etc.) já tinha um temperamento
próprio.
O
que os unia era justamente a postulação da pessoalidade
– a autoria – associada a uma série de fatores da época:
o embate com um modo de produção (o dos estúdios),
com o academismo da Vera Cruz ou a irresponsabilidade social – acho que
viam a coisa assim – da chanchada. Havia ainda um ambiente político
que favorecia o surgimento de um movimento nacional e nacionalista e,
mais, levava a percepção dos espectadores a aproximá-los
todos. De resto, era a primeira vez no país que o cinema era visto
como uma atividade de intelectuais, e não de artesãos que
deviam o essencial de sua formação ao aprendizado puramente
técnico com seus mestres.
De
tudo isso, a única coisa que permanece imutável de lá
até hoje é o relativo heroísmo do ato de fazer cinema.
Mudaram as circunstâncias técnicas e políticas. Com
o tempo, cada um desses autores foi para seu canto. Cada um desenvolveu
personalidade e estilo próprios. Com o tempo, as vicissitudes do
governo militar, o discurso cinemanovista passa por uma progressiva banalização,
na medida em que das questões estéticas dos anos 60 deriva-se
para a luta, sobretudo política, pela institucionalização
do cinema brasileiro. A "batalha do mercado", materializada pela Embrafilme,
torna-se a partir dos anos 70 o foco central da atividade cinemanovista.
Os
anos 90 são, mais do que qualquer outra, uma década mosaico:
teve do experimental até abortivos ensaios de cinema industrial,
ou academismo disfarçado de filme "para público". Mas, essencialmente,
se fez de retalhos dos discursos do Cinema Novo, a partir da necessidade
de restaurar uma atividade bruscamente interrompida em 1990. O ideal revolucionário
dos anos 60 e o pragmatismo das décadas de 70 e 80 misturavam-se
agora ao ideário globalizante dos 90. Não é por nada
que Arnaldo Jabor será o maior arauto da Lei do Audiovisual. Os
90 começam, assim, como uma década em que não se
sabia o que filmar (pois não havia para quem exibir) e terminam
como um tempo de negociação: trata-se de filmar agradável
para não assustar investidores e seduzir o arredio espectador de
classe média. Já o público seguro, aquele que permitia
ao cinema brasileiro ser cinema, o espectador pobre e semi-alfabetizado,
esse sumiu miseravelmente das salas.
Nesse
panorama cheio de contradições, mas marcado substancialmente
por um retorno da "cavação" (mascarada de modernidade),
os realizadores do Cinema Novo foram – com todas as diferenças
entre si – um elo essencial com a tradição, e de certa forma
resgataram, em seus melhores momentos, a tradição que ajudaram,
mais do que ninguém, a instituir.
Cacá
Diegues fez desde uma pequena produção (Veja Esta Canção)
até um superespetáculo (Orfeu). O primeiro representa
sobretudo uma atitude política (fazer um filme nas condições
terríveis do início da década), o segundo reencontra
um veio pessoal, perceptível desde Ganga Zumba. Em ambos
os casos, Diegues tinha o pensamento cinemanovista original na cabeça:
fazer filmes, tirando-os do nada, no primeiro caso, e produzir um cinema
de espetáculo à brasileira, um filme-enredo, com cara de
desfile de escola de samba, no segundo. Nesse sentido, Orfeu me
parece um filme extremamente pessoal e bem-sucedido.
Nelson
Pereira prosseguiu em seu projeto de aproximação da literatura
com o cinema. No geral, A Terceira Margem do Rio está muito
longe de seus melhores filmes e muito aquém de Guimarães
Rosa. Mas existe uma continuidade entre A Terceira Margem e Vidas
Secas, que não está na transposição de
palavras em imagens, mas, quem sabe, na busca de imagens equivalentes
às palavras com que a literatura constituiu um Brasil (nesse sentido,
Nelson parece um pouco com Bressane, só que a obsessão de
Bressane é antes de tudo a música popular).
Walter
Lima mudou um pouco sua concepção de cinema em relação
aos anos 80. Em Inocência e Ele, o Boto, em particular,
Walter se afirmava como o herdeiro de uma tradição brasileira,
reencontrava o cinema clássico, Humberto Mauro sobretudo. Nos anos
90, passou a pensar menos no Brasil e mais no cinema como linguagem universal,
o que lhe permitiu filmar O Monge e a Filha do Carrasco, esse filme
de lugar nenhum, que junta a língua inglesa com o barroco mineiro.
Foi rejeitado pelo que tem de estranho. A mim, fascina justamente pelo
que essa Babel tem de inusitada. No fim, talvez goste mais do Monge
do que de A Ostra e o Vento – que também é um filme
de lugar nenhum, mas como esse lugar nenhum é o Brasil eu, pessoalmente,
sinto falta ali daquela brasilidade ostensiva dos seus filmes anteriores.
Por
fim, mas não por último, existe Paulo Cezar Saraceni. O
fiel da balança. Se o Cinema Novo não existisse, O Viajante
o teria inventado. Não é um filme dos anos 90. É
um filme em que uma camada de tempo recobre outras e outra e mais outra.
Lá estão Minas e Lucio Cardoso, o catolicismo e Humberto
Mauro. Mas lá está também Marília Pêra,
como uma Irma Alvarez de Porto das Caixas reencontrada. Ambas procuram
a vida desesperadamente, ambas tentam triunfar sobre as circunstâncias
adversas (o casamento, em Porto das Caixas, o filho retardado,
em O Viajante), lutam contra um meio que não as compreende.
Mas sabem, no fundo, que a vida nunca está lá onde nós
a pomos.
Se
eu tivesse de escolher apenas um filme para resumir o que a década
de 90 teve de melhor, seria O Viajante, esse filme percurso. Quase
40 anos o separam de Porto das Caixas. Mas é como se seu
autor tivesse percorrido um longo caminho para voltar ao seu ponto de
partida. Tão severo quanto antes, mas enriquecido pelo tempo. Mudado,
marcado, porém o mesmo.
Alguém
dirá que O Viajante é anticomercial. Eu acredito
que Saraceni, assim como sua heroína, luta contra as circunstâncias.
O tempo atual pede um cinema digestivo. A isso só se pode responder
com cinema. Penso que filmes como esse são os que ficarão
e que, daqui ou 20 ou 30 anos, ainda serão vistos com prazer e,
talvez, mais bem compreendidos do que hoje.
Inácio Araújo
é roteirista e crítico de cinema pela Folha de São
Paulo
|
|