ZéZero



ZéZero de Ozualdo Candeias

Atribui-se falsamente o "primitivismo" de Ozualdo candeias ao desconhecimento de técnicas narrativas e de montagem, acreditando-se que toda rispidez que aparece na película, toda aspereza estética de seus filmes não se devem a uma vontade deliberada de atingir tal e qual o espectador, mas numa falkha de comunicação e lisibilidade. Ora, essa tese vem definitivamente abaixo (já teria vindo antes em qualquer visão cuidadosa de qualquer filme dele, mas deixa pra lá) quando conhecemos o percurso de seus dois médias metragens de meados dos anos 70, Candinho e ZéZero. Não só são os únicos filmes de fato subversivos da década de 70, como também são os únicos filmes realmente proibidos, pelo único e simples motivo de Candeias ter-se recusado a exibi-los à Censura Oficial. Exibir Candinho e ZéZero era, de fato, contestatório e passível de prisão. A rispidez e a aspereza de Candeias não se limitam a seus filmes; trata-se, muito mais do que uma técnica do choque, de uma visão de mundo, de uma obra da não-reconciliação definitiva entre os opostos. Se a tarefa de um bom montador é diluir um plano no outro para manter entre eles uma leitura perfeita, então a montagem-Candeias (muito mais do que a montagem do montador Candeias, porque ele já montou outras coisas sem essa função específica de linguagem) é o contrário do que faria um bom montador: ele tenta restituir a tensão indissociável entre um plano e outro, a necessária brutalidade na passagem de uma imagem a outra. A grosseria não é técnica, é estética: é preciso recusar o modelo narativo clássico – o da transparência, da comunicação perfeita, do sentido predeterminado – em nome de um cinema que quebre a fruição do espetáculo e engaje o espectador naquilo que ele vê. Se todo diretor faz seu filme para um espectador ideal, o espectador que Candeias tem em mente assiste o filme EM PÉ.

ZéZero conta a história de um agricultor pobre, José Necas e Só. Num belo dia (belo nada...), surge uma mulher que exibe informação por todos os lados. Ela é fina, sedutora, e mostra a ZéZero todas as maravilhas da civilização: jornais, cinema, cartela do Baú da Felicidade, fotografias de mulheres em trajes sumários... A mensagem é inequívoca: indo à metrópole, ZéZero poderá desfrutar de todas as regalias que a civilização moderna vive – glamour, sucesso e vida social estarão à sua disposição, mas acima de tudo o dinheiro, que todas as loterias prometem. ZéZero vai então à cidade. Nela, ele não encontra o paraíso imaginado, mas apenas uma versão diferente do inferno em que já vivia; um inferno que, entretanto, ele terá que aprender a remediar.

Da mesma forma que vêem erradamente em Candeias a figura do cineasta primitivo, há também os que tentam associá-lo igualmente sem razão a uma versão idiotizada de rousseauísmo, segundo a qual o homem vive feliz enquanto vive em estado de natureza e, depois que transforma-se em ser social, começa o inferno. Só que em Candeias, há sempre o inferno, só há inferno. Ao analisar ZéZero, Paulo Emílio Salles Gomes não deixa de mostrar seu idealismo mistificador e jogá-lo para cima do pobre Candeias quando escreve que "o caboclo ingênuo do começo de ZéZero, com seu feixe de lenha no ombro, era, em última análise, feliz"1. Nem em primeira nem em última, papai.

O chamado da natureza, tão idílico e aconchegante em certos autores, assume ao contrário em Candeias um alto grau de podridão e repugnância. Essa repugnância pode ser grandemente observada no que diz respeito ao sexo em seus filmes. Em ZéZero, há duas cenas de sexo. Nas duas, a prática sexual é vista como jogo de poderes (o poder da força e o poder do dinheiro): na primeira ele é permitido porque há dinheiro envolvido e na segunda o sexo é forçado. Mas que não haja erro: Candeias copmeça e termina a feliz cena de sexo enquandrando-a entre duas telas brancas, procedimento sofisticado de montagem que jamais encontrou par em toda sua carreira. Das duas uma: ou a seqüência exprime um sonho de José Necas (e aí a vida é de fato o mesmo inferno sempre) ou ela é um momento breve, único, destacado da vida e sem esperanças de prolongamento (o que corrobora que, mesmo havendo momentos felizes, é a miséria que impera). mesmo quye a significação esteja em aberto, o sentido é fechado, e muito bem determinado: a desgraça é inelutável, o sinistro sobrevém mesmo que se chegue a um bom termo. A felicidade é um mero interlúdio, talvez só mesmo existindo de fato em sonho.

ZéZero acompanha em sua grande parte a vida de José Necas na cidade, que pode ser resumida em poucos afetos: trabalhar em construção, visitar putas, escrever cartas à família, e o afeto principal, que toma todo seu tempo e dinheiro: apostar na loteria. É aí que Candeias assume conclusivamente seu caráter de margnial (à margem da lei) e critica abertamente a loteria institucional, bolação dos militares para acalmar os ânimos da população e dar-lhes uma chance de ficar rica. "Mas vai que apostando a gente ganha, né?" Ganha, até ganha, mas Candeias é mais esperto que isso. ZéZero de fato aposta, aposta, até que ganha loteca. Recebe o dinheiro e volta para o campo, para ajudar a família. Chagando lá, sabe da triste notícia: enquanto ele apostava na loteca, morreu todo mundo, não restou ninguém. ZéZero consternado: "Mas e agora, o que é que eu vou fazer com tanto dinheiro?" Ao que aparece novamente a mesma dama midiática do começo do filme, nua mas paramentada com negativos de filme por todo o corpo. ZéZero não tem idéia do que fazer com o dinheiro, mas ela tem uma opção (sempre uma opção...) muito válida a dar""Enfia no cu". Precisa dizer mais?

Ruy Gardnier


1. Carlos Augusto Calil e Maria Teresa Machado, orgs., Paulo Emílio, um intelectual na linha de frente Ed. Brasiliense.