Criticanarquicanozerodeconduta

Meus cadernos de cinema/cahiers
du cinema escritos com uma Parker 51 que acabei perdendo numa poeira,
em 63, registraram & comentaram 1.200 filmes, com o que comecei a
pagar imposto de renda crítica ao único crítico que
respeitei (Jean-Claude Bernardet, na fase anárquica de UH 62/63).
Biáfora era o mestre de berço e os cahiers roubados sempre
na cabeceira ao lado do Spica.
A admiração
física pelo cinema estava nascendo. Comprei e bifei então
todos os livros de cinema. Uns quinze, entre nacionais e coleção
espanhola Rialp. Li todos de cabo a rabo, andando pelas ruas da vila Carrão,
Tatuapé, ônibus onde passageiros davam tiros & intervalos
das sessões de cinema na área: cines Universo, Bras Politeama,
Piratininga, Gloria, São Luiz, Aladin, São Jorge, Penha
Palace e Príncipe, Jupiter & demais poeiras adjacentes. Solitário
ou acompanhado de um colega de infância imbecil, o Cálgaro
(até hoje meu amigo: só tenho amigos sinceros que aceitam
as minhas agressões frontais), eu era, o anti-intelectual por excelência.
Não é como no Day for Night ou nos filmes do Godard, a mania
& tradição francesa do intelectualismo, onde os personagens
acabam de ver um filme e já agarram uma revista. Eu buscava informação
para entrar no cinema bem calçado. Pois nessa época não
havia escola de cinema. Tive que ser autodidata. O cinema profissional
que me esperava, entretanto, era uma selva, na Boca do Lixo a cultura
era a vivência profissional. Fiquei meio sacaneado com isso e apelei
para o ambiente dito cultural, profissionalmente empírico, o cineclubismo,
felizmente, terminou me devolvendo â Boca do Lixo. Exorcizei-me
da formação autodidata e fiz as primeiras amizades no Costa
do Sol, Honório (da 8ento Freitas). Isso em 65/66. Eu já
escrevia no São Paulo Shimbun (jornal da colônia japonesa)
& as "brainstorms" que originavam as críticas nasciam com técnicos
& diretores de cinema da Boca. Principalmente o Candeias, que se recusava
a ir em cinema (antes da "Margem")
Meu diploma tinha
sido uma curta mas fulminante liderança cineclubística no
Dom Vital, onde o Zé Júlio Spiewak me apresentou o Sganzerla.
O Trevisan acompanhou comigo toda essa época, pois trabalhava no
Cinemateca. Era um encucado & julgava-me "sem-fundamentação",
dizendo que eu era
inconseqüente. O cara demorou mas se retratou e ficamos unha e carne
até e1e dar o grito libertário com Orgia. As Críticas
do "Shimbun" continuavam. Eu ganhava uma ninharia, mas recusei sistematicamente
passar para outros jornais. Só a marginalidade do "Shimbun", que
eu distribuía de mão em mão, garantia a liberdade
crítica. Não era critica de jornal: era crítica de
cinema, crítica brasileira legítima, pois abalizada junto
ao ambiente cinematográfico brasileiro, paulista em particular.
Estava nascendo o JT, com página inteira de crítica, eu
(§) montes ao Sganzerla crítico, ou Capovilla, contendista. Lima,
um mineiro cinemaníaco, foi expulso do Dom Vítal, num de-
bate sobre "Menino de Engenho". Os demais críticos de SP eram fantasmas.
Apelidamos o Alfredo Sternheim, que se assinava "S" de "O Sombra". O Fassoni
era neutrol puro, portanto saudável. O Ignácio Loyola me
deu toda a promoção. O Orlando Parolini, primeiro crítico
do "Shimbun", ficou de eminência parda até que assimilasse
o anarquismo dele para
ser eu mesmo e inclusive
contesta-lo radicalmente (os anárquicos são pólvora
crítica versus nitroglicerina cultural), mas até hoje o
Parolini é um poeta melhor que Piva e Willer, justamente por isso
perdido no anonimato.
"Pierrot le Fou",
do Godard, tinha
chegado com um atraso
de pelo menos 7 a- nos no Brasil, como criação, pois eu
& Parolini já tínhamos adaptado vivencialmente não
só o Rimbaud, mas Lautréamont também. Deglutimos
tudo antropofagicamente, antes da diluição tropicalista.
A tragédia: Parolini, muito doido, destruiu em 68 o média-metragem
"Via Sacra", fotografado pelo Reichenbach, então aluno da ESC.
Assim, o testemunho só sobre- viveu mesmo guttemberguiamente. Era
a minha primeira direção. Brigas Rimbaud/ Verlaine.
O cinema nacional
prosseguia de mão a pião. Godard era deus. Glauber ("Terra
em Transe") era pederastia & lirismo
caótico. Sganzerla,
com "Luz Vermelha",
não me impressionara
no lançamento, mas depois passei dois anos dissecando o filme e
considerei o bicho como a revolução
fílmica a que
eu inclusive me propusera. Tinha eclodido a Boca do Lixo como movi-
mento. Voltei a ela,
disposto a me afundar nos pântanos da rua do Triunfo. Alidado com
Callegaro ("Pornógrafo"), consegui me libertar novamente: até
hoje acho o filme tão bom quanto "0 Bandido". Como crítico
ainda e sempre no "Shimbun" a idéia de ser um baluarte da crítica
me deu grandes prazeres. Em 69/70 eu resolvi assumir Rimbaud "in totum":
autoflagelação numa quitinete do
Glicério para
fazer a melhor crítica de cinema do Brasil. O estômago contra
as costelas, anotações críticas do silêncio
do cinema nacional. O Jean-Claude não escrevia mais. Pelo Trevisan,
conheci-o pessoalmente. Confirmou-se o respeito. Mas a minha luta (mein
kampf) era também contra ele, Realismo Crítico. Contra essa
limitação, embora salvaguardando-a e aliando-se a ela dentro
de um processo. Aliás é a batalha que continua com meu amigo
Petri: um continuador de Jean-Claude? Claro que não, mas incorporando-o
dogmaticamente. Quando, da minha parte, os dardos críticos continuam
rasgando as limitações do realismo crítico. Prosseguirei
a guerra até a exorcização de Oswald de Andrade,
Brasileiro & antropófago, o revolucionário total. Por
isso ninguém se retrata: eles ainda acham que o MacLuhan é
um reacionário, coisa que não importa nele, & de lingüística
sabem tanto quando a vovó cibernética de tricô. Escrevem
sobre filmes sem saber que a moviola é uma teia de aranha elétrica
& magnética. O Inácio Araújo é o único
montador que conheço a ser ao mesmo tempo um sintetizador lingüístico
& editor crítico, talento que segundo Biáfora o cinema
nacional "não merece".
Como se nota, só
há meia dúzia de críticos de cinema consideráveis
em SP: eu, discípulo libertário e autônomo do Biáfora,
e o Paulo Emílio Salles Gomes, que na década de 40 foi mestre
do Biáfora e, nos anos loucos de 60, mestre do admirável
Jean-Claude Bernardet, que agora tem por diluidor o caríssimo Renato
Petri. Em síntese: Paulo Emílio foi o grande precursor,
escreveu um livro sobre Jean Vigo para libertar-se ("exorcismo"),
e sabemos muito bem quem foi o avô Vigo novecentista, tanto quanto
ignoramos o Zelão, pai do Hélio Oiticica. A crítica
de cinema, nesta paulicéia nada desvairada, nasceu com Paulo Emílio
e poderá morrer comigo, gerações extremas de uma
anarquia crítica. Os demais críticos trabalhadores &
bem intencionados inclusive são sucata jornalística, portanto
não consideráveis cinematograficamente.
Jairo Ferreira
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