O Velho e o novo

 

Quando Eyes wide shut foi exibido no Festival de Veneza de 1999, um dos muitos e jovens críticos presentes externou sua primeira impressão de modo contundente: era uma obra anacrônica, de um velho. Esta leitura, colhida mais ou menos ao acaso, parece juntar-se à recepção quase unanimemente decepcionada ou negativa que o filme obteve no lançamento. Esperava-se, grosso modo, de um lado, a confirmação do mito, com mais uma demonstração impecável e grandiloqüente de engenho e arte, à semelhança de 2001 – A space odissey, Barry Lyndon, Dr. Strangelove... E, de outro, pelo menos alguma coisa que justificasse a esperada (e culta) ousadia sugerida pela combinação marqueteira "o filme mais erótico jamais feito" + "Kubrick". A própria presença do filme no festival fazia parte dessa estratégia, embora contrariasse profundamente as idéias do realizador a respeito. Como se sabe, Kubrick controlou diretamente toda a comercialização da maioria de seus filmes, rechaçando conscientemente participações em competições e similares em favor do contato rápido com o espectador comum. Ademais, emprestar-lhe reconhecimento público através de um festival parece absurdo, para não dizer oportunista.

De certa forma, o crítico veneziano teve uma percepção aguçada do filme. Sua recusa do tema e da forma, do look e do estilo narrativo, das personagens pouco atrativas, banais, comuns e da contemporaneidade óbvia (nada de exotismos ou supra-realismos) poderia ganhar um reforço argumentativo se ele tivesse aberto um pouco mais os olhos e se deparado com uma obra vazada em uma old fashioned way. Procurar marcas de estilo, como hiperbólicas interpretações (lembrar da extensa galeria formada pelas personagens de Sterling Hayden, Malcolm McDowell, Jack Nicholson e R. Lee Ermey, entre outras), foi um erro. Kubrick reinventou-se mais uma vez. Sem ser exatamente um revolucionário (no sentido poundiano), sabia servir a uma certa tradição cinematográfica procurando novas combinatórias e novas estratégias de composição. Desta vez, com vistas também a um approach marcadamente pessoal, íntimo, interior. Não que fosse um discurso sobre si, não o é. O projeto permanece o de um pequeno afresco sobre a decadência da sociedade contemporânea primeiromundista. Mas o percurso desenvolvido nesse terreno é permeado por intromissões imperceptíveis da vida kubrickiana, as quais fornecem pelo menos um dos suportes estéticos do filme.

A começar pela troca da Viena fin de siècle, presente no original literário, uma novela de Arthur Schnitzler, em favor da Nova Iorque de 1999, Eyes wide shut opera inúmeras associações com a biografia do diretor. Não se trata aqui de reproduzir a tentadora e romântica idéia de que ele sabia que ia morrer e fez um acerto de contas com o passado. Nada mais equivocado, a começar pelo fato de que seus filmes demoravam anos para chegarem às telas. E o último não foi diferente (as pesquisas e a redação do roteiro começaram por volta de 1994 e a produção foi iniciada dois anos mais tarde). Mesmo assim houve uma transformação no modus operandi e uma aproximação a esse universo, digamos, mais familiar. Em sua origem remota, isto é, logo após o lançamento de Full metal jacket, o projeto tinha na tecnologia um de seus fatores impulsionadores. Kubrick externou o desejo de pesquisar e realizar um filme inteiramente digital, sem uso de atores ou cenários reais. Na impossibilidade técnica e financeira para tanto, e já com a Traumnovelle em mente, passou-se aos clássicos estudos para definição de película, câmara, objetivas, luzes, etc. Desse processo foi surgindo um surpreendente convencionalismo e mesmo um certo aspecto regressivo: ao lado das clássicas Arri (foram usados os modelos 535), objetivas grande angular (predomínio da 18mm) e janela padrão dos anos 90 (1.85:1), definiu-se também uma retomada do parti-pris de Barry Lyndon (respeito às fontes luminosas naturalmente existentes em cena). Kubrick tentou inclusive reutilizar o famoso par de lentes Zeiss, desenvolvidos para as cenas à vela. Neste momento descobriu-se o caminho para modelar a visualidade do filme, seu look.

Voltar a técnicas passadas, voltar ao passado, voltar à cidade natal. Após quase quarenta anos de auto-exílio na Inglaterra, como retratar a Nova Iorque atual sem voltar fisicamente à ela, sem falseá-la ficcionalmente? Problema interessante e que não admitia a quebra do exílio. Reconstruí-la em outro país significou quase que literalmente transportá-la para lá. Para preencher os quatro quarteirões construídos em estúdio e as diversas moradias e ambientes de trabalho cenográficos, levou-se desde abajurs até postes de rua. No limite, durante os primeiros planos do Dr. Hartford perambulando pelas ruas, desenterrou-se mais um desusado artifício, a projeção de fundo que tanto marcou o cinema hollywoodiano dos anos 40 e 50. Realizado com soberba maestria técnica, este efeito traz a "verdadeira" Nova Iorque para dentro da cena. Mesmo assim, o estranhamento quanto à diégese citadina foi enorme. O crítico do Washington Post, por exemplo, preocupou-se ostensivamente com este ponto. Para ele os problemas do filme começavam pelo fracasso em retratar/representar a metrópole atual. Pecado mortal para o provável jovem crítico, que não soube ler aquilo que estava efetivamente na tela. Não soube e não teve memória para discernir uma antiga Nova Iorque, com seus prédios baixos, envelhecidos, postes de ferro, grandes táxis amarelos, acanhadas fachadas néon, enfim, uma cidade ainda pré-midiática (sem poluição visual, especialmente a mercadológica, e resplandescência luminosa significativas).

Alguém poderia argumentar tratar-se de um filme noturno (passa-se basicamente no transcorrer de uma noite). Correto, mas insuficiente no que concerne a um ícone tão óbvio para os dias atuais. Esta imagem soturna, crepuscular da cidade reencontra a atmosfera schnitzleriana e opera um contraste fundamental em relação ao casal central, ambos indivíduos de meia idade, classe média alta, bem sucedidos profissional e socialmente. Sua estampa atual e vitoriosa, reforçada pela sobre-semantização proporcionada por Cruise e Kidman, ídolos casados na vida real (embora esta escolha tenha sido circunstancial – o filme foi iniciado com Harvey Keitel e Jennifer Jason-Leigh nos papéis principais), não encaixa na mise-en-scène deliberadamente démodée a sua volta. Ainda que a crise que os arrasta para um confronto tenha origem em suas frustrações individuais, ela só se revela inteiramente no tortuoso rito de passagem para o estágio cínico do convívio social, quando as ilusões cedem em favor das convenções arquitetadas pelos jogos de poder. No momento em que as ações estão prestes a fugir ao controle, o milionário Victor Ziegler intervém e diz ao moralmente arrasado doutor: "Stop playing games". É hora de entender a função real dos jogadores e principalmente sua hierarquia. Resta ao protagonista a sensação de peixe fora d’água e a desilusão final proporcionada por sua mulher, que em vez de quebrar o círculo vicioso do uso social do semelhante, adere ao jogo em sua essência, prostituindo-se no casamento.

O que poderia ser uma velha história de traições e incompreensões amorosas ganha assim um ar de estranheza não apenas pela oposição criada entre esses pares antitéticos - cidadãos primeiromundistas contemporâneos (leia-se individualistas, consumistas, sexistas, etc.) X metrópole urbana decadente (leia-se espaço privilegiado para a troca de interesses baseada em valores simbólicos e não em necessidades naturais) -, mas principalmente pela estratégia de construção visual da arena do confronto. A tensão entre escolhas aparentemente pessoais e afetivas (Kubrick forjou uma profissão para a protagonista, dona de galeria de arte, que lhe permitiu, por exemplo, decorar o apartamento em que ela vive com quadros de sua esposa real, Christine) e sua função no jogo cênico ganha um substrato definitivo no estilo fotográfico desenvolvido para o filme. Levando sua propensão de retorno ao passado às últimas conseqüências, o diretor opta não só por um velho approach, o de Barry Lyndon, como o viabiliza através do recurso a uma película há muito fora de linha de fabricação, o 5298 da Kodak. Boa parte da sensação de passado experimentada pelo espectador, traduzida por desconforto, déja vu, ou simples incongruência inconsciente com um estilo contemporâneo, advém dessa falta de atualidade da imagem, referida a um padrão técnico e estético dominantes. Indo mais longe nesta intenção e, na verdade, dando o pulo do gato artístico, Kubrick submete o negativo a uma puxada de revelação em dois stops, o que resulta em uma visualidade "suja" e sobrecarregada em seus tons dominantes. Esta opção se aprofunda, inclusive, na retomada de construções pictóricas clássicas, com as cores saturadas refazendo abstratamente os planos da imagem. Mais uma homenagem à Nova Iorque da infância, conceituando em termos cinematográficos algo como Broadway Boogie-woogie, de Mondrian?

Talvez mais do que isso. Eyes wide shut parece uma reafirmação do credo moderno, que tinha em seu horizonte a transformação do homem e da sociedade com vistas à criação de um novo humanismo, fundado justamente em relações mais autênticas. A reação ao fracasso desse projeto não se dá para Kubrick no desenraizamento cultural e na utilização do cinema como instrumento de arte e lazer domesticados. Pelo contrário, reafirma a permanência do "mal" (a violência hodierna em todas as suas modalidades) e o compromisso do artista com suas convicções e sua trajetória frente a essa situação. Esse embate quase metafísico tem uma base muito concreta dentro do filme. No deslocamento mais acentuado em relação ao original literário, Kubrick transferiu a ação dos dias que se seguem ao carnaval para as vésperas do natal. A festa maior da cristandade fornece não só a logística fotográfica (boa parte do filme foi iluminada com luzes decorativas natalinas e somente isso) como a moldura precisa para a avaliação do que transcorre frente aos nossos olhos normalmente bem fechados. O longo projeto civilizatório ocidental, abordado por Kubrick do tempo das cavernas ao futuro então longínquo de 2001, transparece em seu momento contemporâneo através de um olhar desiludido e levemente nostálgico.

Podemos recordar, à guisa de pequeno contraponto, a trajetória de um outro "velho", Bernardo Bertolucci. Ou melhor, relembrar a recepção igualmente fria e negativa a um filme seu, Stealing beauty, agora provavelmente oriunda em sua maior parte dos críticos mais experientes. Para eles, inversamente, este diretor havia feito concessões demais justamente ao novo, às marcas da contemporaneidade, justamente aquilo que ela tinha de mais utilitária. Referiam-se, por exemplo, à utilização da textura videográfica, aos enquadramentos e montagem à la MTV, à trilha sonora composta de sucessos de rádio aptos a forjarem o sub-produto CD e ao apelo a um tema teen, a busca da identidade na passagem à idade adulta. Seria uma decepção pelo comercialismo implícito, pela falta de critério artístico e tendo em vista a carreira (isto é, o passado) de Bertolucci, plena de clássicos maiores como Il conformista e L’ultimo tango a Parigi.

Poucos devem ter lembrado que o modelo não era exatamente inédito na obra do diretor. La luna já estabelecia com muita intensidade o conflito velho x novo, não só em termos de idades mas principalmente em termos de confrontos culturais e artísticos. O filme rendeu-lhe pesados dissabores e proporcionou-lhe ao fim e ao cabo um prolongado auto-exílio pelo mundo. Após quinze anos, uma conversão ao budismo tântrico e passagens cinematográficas pela China, Marrocos e Nepal, aconteceu o retorno à paisagem italiana com Stealing beauty. Este reencontro não se dá em termos exatamente pacíficos. Reunindo um conjunto de personagens egressas de diferentes partes do primeiro mundo (Estados Unidos, Inglaterra e Itália, principalmente), estabelece-se um processo de caracterização que incorpora a velha dicotomia Velho Mundo x Novo Mundo em novos termos. Mais propriamente, desloca-se a ênfase do político, do militar, do econômico, para a esfera da cultura entendida como comportamentos, gostos, idéias, sentimentos. Com todo o seu lastro histórico, a Europa só pode apresentar culpa e degenerescência, signos associados ao pai oculto e ao escritor moribundo. Inclusive, o grupo de meia idade, todos herdeiros do espírito libertário do maio de 68, encontra-se "isolado" e refém de uma imagem geracional. A paradisíaca Toscana esconde compromissos e omissões cruéis.

A chegada da jovem americana põe em cheque esta representação forjada de um mundo perfeito. A clareza de seus objetivos e suas aparentes pureza e ingenuidade desvelam lentamente o panorama real daqueles fugitivos do mundo moderno, lugar que eles um dia buscaram alterar com sofreguidão e pouco sucesso. Resta-lhes a teia protetora de amizades construídas ao longo da vida. Amizades surgidas de momentos de paixão, desejo e amor fugidios ou impossíveis. Amizades como sublimação de várias impotências mal resolvidas ou nunca enfrentadas. Será justamente o destemor da adolescente em perscrutar o desconhecido o que a distingue deste grupo aparentemente tão avançado comportalmente, vale dizer, culturalmente. Não escondendo ou renegando seus "pequenos" valores (como a música pop, isto é, do vil mercado), Lucy vai desvelando a hipocrisia à sua volta. Ela não cobra mudanças ou explicações, simplesmente segue o destino traçado por si mesma. Seria isso a tão decantada alineação das "novas" gerações, a lógica individualista imposta pela nova configuração do mundo em seu momento neo-liberal e pós-moderno? Para tempos tão pouco solidários, Lucy demonstra invejável coragem para enfrentar junto ao semelhante instantes tão decisivos quanto apavorantes, como a busca da identidade pessoal, o primeiro amor, a primeira transa, a morte, o passado pessoal obscuro. Tanto Stealing Beauty quanto Eyes wide shut, rodados quase na mesma época, parecem constatar a morte de um projeto coletivo, flagrando o individualismo preso em meio às teias da história, o primeiro, e da sociedade, o segundo, mas divergem sobre o devir dessa ideologia do mundo contemporâneo.

Uma das formas para se perceber o tratamento da questão é verificar o papel desempenhado pela arte em ambos os filmes. Em Eyes wide shut, o produto artístico comparece sob a forma de commodity, objeto de consumo para uma apropriação social qualquer. A protagonista, Alice, embora seja galerista, faz questão de literalmente de sobrepor do chão ao teto das paredes dezenas de pinturas, emprestando-lhes um valor meramente decorativo. E quando está comprando presentes de natal, opta por uma coleção de reproduções de Van Gogh, um ícone do mercado consumidor de artes plásticas. O milionário Victor Ziegler é também um colecionador de arte, dispondo pelos aposentos de sua mansão dezenas de exemplares da chamada "boa" arte, com peças egressas da Antiguidade e da Renascença (ou seja, da história do ocidente europeu). E mais significativo do que tudo, a senha para o ingresso na orgia é o título de uma ópera de Beethoven, Fidelio. Kubrick comentara certa vez, quando perguntado sobre a fixação da personagem principal de A clockwork orange por este compositor clássico alemão, que o comportamento "sugeria o fracasso da cultura em ter qualquer efeito maior em termos morais sobre a sociedade". E exemplificava: "Muitos dirigentes nazistas eram homens cultos e sofisticados, mas isso não os fez, ou a qualquer outra pessoa, melhores". Ou seja, de um filme ao outro, só se confirmou a degradação do impulso artístico pelas pressões da sociedade. Já Stealing beauty faz, mais do que na arte, nos artistas, uma profissão de fé, pelo que revelação esta condiçào pode proporcionar. Seria um instrumento de conhecimento precário, parcial, mas indispensável. Gravitando principalmente entre o pai escultor, que a revela mulher através de uma escultura, e o velho dramaturgo que a faz refletir sobre as aproximações entre vida e arte, e desbravando seu interior e a paisagem a sua volta ao iniciar-se nas tramas da poesia, Lucy reafirma uma condição inescapável, a de sujeito da história, qualquer que ela seja.

Hernani Heffner