O Que há para saber sobre
Ozualdo Candeias?


Bentinho, Ana Mendonça, Lucy Rangel, Valéria Vidal e Mário Benvenuti em A Margem

O que há para saber sobre Ozualdo Candeias? Esa pergunta não deve ser encarada do ponto de vista da arrogância, porque não é questão disso. Ela deve realmente ser tomada como uma verdadeira dúvida acerca da obra desse cineasta. Primeiro pela constatação nada difícil de fazer de que Candeias é facilmente o cineasta mais desconhecido de nossa história recente. Correr atrás de filmes seus para ver é algo simplesmente inútil, a não ser que você tenha dado a sorte de ter gravado A Margem na TV Cultura ou, estando em São Paulo, tenha tido a iluminação divina de estar presente a uma das bissextas sessões de filmes do diretor. Segundo por uma constatação mais firme, menos dadas às contingências da história do que à essência da obra. Seus filmes recusam um saber pré-constituído, a especialização, o savoir-faire dos críticos. Seus filmes são indescritíveis, como as grandes obras que chamam à ação, sejam elas 79 Primaveras de Santiago Alvarez, O Atalante de Jean Vigo ou as Duas ou Três Coisas do Godard. Filmes cujo alto grau de imediatidade com o espectador mostra que eles se preocupam muito pouco em ser obra – um objeto cultural montado segundo as regras da cultura, do paradigma de um "autor" e dos demais embaraços sociais de fruição e bom gosto – mas se preocupam muito em ser dispositivo, um objeto cultural que pouco importa se é um livro, um panfleto, uma peça mambembe ou um produto da mais alta estirpe, mas que muito importa que seja um mecanismo de ação, um experimento que – em sentido propriamente químico – reaja com o espectador.

Mas em que sentido queremos falar da "reação"? Não é propriamente a necessidade de todo produto cultural a reação com seu espectador? Sim, mas há na obra de Candeias e de mais alguns grandes algo que ultrapassa isso, que faz o vínculo mais imediato. Tomemos os filmes politizados de um Ken Loach ou um Costa-Gavras, por exemplo. São filmes que tencionam conscientizar o espectador, torná-lo consciente para as questões de desigualdade e opressão do mundo contemporâneo. Mas não há exatamente reação nos filmes deles, por um único e excelente motivo: seus filmes são feitos respeitando exatamente todas as bases do modelo social (isto é, burguês) de fruição cinematográfica – reviravoltas de roteiro, suspense, um enlace amoroso, intriga internacional... Eles fazem "bons" filmes para a classe média. Nada reage. Observemos ao contrário Candeias, Godard, Vigo: não são necessariamente cineastas militantes de esquerda, mas há algo no cinema deles que entope a tela e quebra o modo básico de fruição do espetáculo, transforma o espectador em co-agente, impede a diegese da sociedade contemporânea, ou seja, a distração. Os filmes de Candeias não nos permitem geralmente dizer de um plano em especial "olha, como é belo", mas ao contrário, nos faz perceber como são belos todos os gestos estéticos de seus filmes. O belo é o movimento, não a imagem (mesmo que certas imagens sejam verdadeiramente muito belas).

De onde a insuficiência do crítico ao deparar-se com uma obra que, por sua simplicidade e evidência, desafia o crítico a ter o que dizer. Porque se ela instaura uma relação estética imediata com o espectador antes de uma relação com a história do cinema ou com a história, o "especialista" fica sem muiuto o que fazer. Mas que fique aqui claro: não é que Candeias (como Godard ou Vigo) ignore a técnica cinematográfica ou que seja um "primitivo", seja lá o que esse termo queira dizer. Ozualdo Candeias sabe exatamente como fazer "direitinho", só que ele sabe – e essa consciência não é programática, como em Godard, mas intuitiva – que fazer cinema "certo" não atingiria nunca os seus objetivos estéticos. Daí ele precisar reinventar – como todo grande autor – um vocabulário completamente novo ao cinema (de que cineastas poderia se dizer o mesmo?), levá-lo a limites, estrangular, entupi-lo de tudo o que não se vê nele.

Muito se fala, a propósito de Candeias, de cinema marginal (A Margem de fato foi o que deu nome ao "movimento") e, por outro lado, de primitivismo. Mas as duas tentativas de decifração acabam caindo sempre na obviedade da "escola" e nunca explicando o particular. Primitivo ele não é: basta ver a primeira parte inteira de A Margem, toda construída a partir de câmera subjetiva e de um intrincado jogo de olhares que já declarariam como absurda toda postulação de primitivismo. Quanto a ser marginal, é outro problema. O que se quer dizer com isso? Que seus personagens estão à margem da sociedade, que seu cinema apresenta uma estética à margem do cinema oficial? Isso diz pouco. Além do mais, seu cinema – apesar dos esforços feitos por Fernão Ramos para parecer que não1 – não tem muito a ver com a já canônica estética do "barato", do desbunde, das drogas e da liberação sexual tão comuns aos filmes de Rosemberg, Sganzerla, Bressane e Reichenbach da época2. Seu cinema está muito mais próximo da idéia de uma estética da brutalidade: não uma brutalidade com o espectador ou com os personagens, mas com o próprio cinema. A beleza do cinema de Ozualdo Candeias reside no gesto de agressão que sua câmera e sua montagem realizam no cinema como um todo, e nesse momento é impossível deixar de pensar nos cortes e arranhões feitos diretamente na película das 79 Primaveras de Santiago Alvarez: entupir com o feio pode ser muito mais belo do que imobilizar com o bonito.

A estética da brutalidade de Candeias não é uma grossura sem intenções. Trata-se, mais corretamente, de uma necessidade de passar por cima de todas as convenções do cinema, de utilizar técnicas nunca realizadas, de inventar procedimentos para dar conta de uma situação – a miséria material e a existencial – que, ao menos se não é nova, é sempre escamoteada ou embelezada para ir à tela. Em Candeias, não. Ela aparece tal e qual. Nessa brutalidade, nesse desrespeito, Candeias junta-se com Satyajit Ray, Godard, Tsui Hark, Glauber Rocha, Cassavetes... todos os grandes bárbaros do cinema, todos aqueles de quem se falou "eles não sabem fazer cinema", simplesmente porque tudo aquilo que eles apresentavam era brutal demais, emoção em estado puro, descomprometimento com uma fruição "burra", aerada, complacente e inútil. Candeias é grande porque seu cinema – e isso só se pode falar de poucos cineastas no mundo inteiro – engaja.

E qual seria o modo de Candeias rasgar a tela? Justamente aquilo que nele todo mundo acusa de ignorância técnica: na montagem. A montagem por excelência de seus filmes é aquela que corta de um plano em movimento para outro igualmente em movimento, causando na percepção do espectador um choque e um estranho sentimento de que ele não tem idéia do que está acontecendo. Há cineastas do plano (Mizoguchi, por exemplo) e da seqüência (Hitchcock, por exemplo), mas a lógica de Candeias não reside em nenhum dos dois, e sim justamente no corte. É no corte que ele se mostra ao mesmo tempo dialético e lúdico: dialético na forma com que faz seus planos permanecerem em tensão (Eisenstein) e lúdico na forma com que não monta nem para o plano ficar bonito nem para a seqüência equilibrar-se, mas simplesmente pela necessidade de experimentar, para atender a um imperativo de criatividade e dinamismo não do plano ou da seqüência, mas de todo o conjunto (Tsui Hark). É no misto de uma preocupação existencial em mostrar as mazelas, retratar os abandonados da sociedade, e de uma preocupação em realizar um cinema do desequilíbrio (formal e social) que a gênese do cinema de Candeias deve ser buscada.

Com três linhas-mestras: o sexo como economia, o poder como algo que deve ser abolido e a necessidade da existência individual dentro de um mundo infernal (esteja onde se esteja). Em Candeias o sexo não é psicológico ou interiorizado. Ele existe como aquilo que se troca (no caso do amor, mesmo que raro em seus filmes), se dá (prostituição) ou se toma (estupro). Presença constante nos filmes de Candeias, o sexo exprime bem o perfil dos seus personagens: nunca com um anteparo superior (a transcendência de Deus, o paternalismo do Estado) nem com um substrato psicológico (amor burguês, "ideais", consciência), ele desenvolve-se de acordo com as necessidades das condições vitais dos personagens. Um cinema materialista, um cinema da imanência. O poder não é encarado como a instância da maldade ou como a dimensão da falta de representatividade (duas imagens clássicas do poder na ideologia da esquerda clássica). Ao contrário, é contra toda forma de poder molar que Candeias se insurge: "Se não tivesse dotô, não teria matador", diz o personagem de Manelão. Muito mais do que a luta por um mundo socialista em que o poder seria representativo, o cinema de Candeias aproxima-se em diversos aspectos da nova luta política assim como formulada por Foucault: as linhas de subjetividade (os anseios e as necessidades dos indivíduos) contra as linhas de força (de um estado sempre totalizador, representativo ou não). Não a luta utópica por uma sociedade paradisíaca, mas a tentativa de criar o paraíso dentro de um inferno sempre já dado. Cinema do concreto, cinema do real como processo de produção, poderíamos ilustrar a obra de Candeias pelo paradoxal título Aopção: a opção do filme não é se dar bem ou mal (o que seria uma verdadeira opção), é se destruir no campo ou na cidade, porque você pode mudar de lugar, pode mudar de aflições, mas o inferno continua o mesmo (o que de forma alguma é uma opção). A única opção no cinema de Candeias é continuar vivo, se possível procurando uma saída.

Ruy Gardnier


1. Fernão Ramos, Cinema Marginal (1968-1973): A Representação em seu limite. Ed. Brasiliense, 1987.

2. Aliás, a própria idéia de cinema marginal como um movimento deve ser discutida, pois as características que se costuma designar por esse cinema apresentam sempre preocupações diferentes nos cineastas, sobretudo no caso de Sganzerla, Reichenbach e Bressane. Mas isso já é outra história.