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Plano
Geral Fevereiro/Março 2001 Crônica:
Dois psicopatas, um carnaval (Ruy Gardnier) CRÔNICA Um fim de carnaval pode realizar prodígios. Eu, convencido a não ver Hannibal ou Psicopata Americano, fiz deles minhas saídas noturnas da quarta de cinzas e do dia seguinte. Inútil dizer que esses filmes tiveram para mim exatamente o efeito que teriam. Hannibal, me parece, poderia ter sido mais bem feito, pelo menos. Conseguiu somente entrar para a antologia do patético. No mais, realmente pensei um pouco a mais na absoluta prescindibilidade dessa estética de idolatria do "irracional", do "insano" que há em Hannibal Lecter ou no personagem interpretado por Kevin Spacey em Seven. Estúpida mistificação daquilo que aparentemente excede a racionalidade humana, esses filmes são ao contrário absolutamente imbuídos de uma moral de classe média, "maravilhados" com uma coisa que sempre esteve por aí para quem quis ver: a insuficiência do racionalismo em dar conta dos costumes humanos. Nada além disso. E também nada digno de glamour. Apenas um afã de cultura pop digno de um, digamos, Nine Inch Nails ou Marylin Manson, grupos pop que igualmente tentam flertar com o abjeto. E tão vendável, tão comerciável, tão diluível quanto. Se Hannibal toma o caminho da adoração do personagem, Psicopata Americano vai em direção oposta. Tomando por ponto de partida um operador da bolsa de valores – um mundo em que, segundo o próprio filme, nenhum é diferente do outro a ponto de todos se confundirem sobre quem é quem –, o filme vai mostrando o processo de alienação do personagem Bateman, (bem-)interpretado por Christian Bale. À medida que recalca o ódio de ver seus iguais com mais luxo e dinheiro do que ele próprio (é um cartão de visitas mais belo que o dele o desencadeador do processo lunático), Bateman encontra saída para descarregar seu ódio no assassinato serial: mendigos, prostitutas e seus colegas de emprego passam por suas mãos. Mas a verdadeira questão é: poderia um yuppie dos anos 80 ter representação narrativa num serial-killer? Improvável ou impossível que a figura da docilidade e da disciplina borra-botas de um operador de bolsas consiga realizar um processo de passagem ao ato (mesmo que em seus sonhos, porque o filme supõe tal hipótese). Essa é a absoluta razão pela qual Psicopata Americano ou mesmo O Clube da Luta são incrivelmente despidos de interesse: filmar pessoas sem desejo realizando coisas na tela (mesmo que essas coisas sejam frustradas, como em Felicidade ou Beleza Americana) é um projeto auto-contraditório e, por isso mesmo, jamais realizável. Ponto, então, para Kubrick e Todd Haynes, que em Eyes Wide Shut e A Salvo conseguiram filmar toda a falta de desejo, toda a falta de criatividade e a falta de vontade de um mundo cada vez mais bem-comportado. A contrapartida fílmica de uma geração tediosa é o próprio tédio e a falta de imaginação. Voltando ao Psicopata Americano, é impossível não compará-lo com o seriado The Street, ainda mais quando visto na quarta-feira anterior, uma quarta de cinzas em que a insônia cobra todos os excessos de madrugar brincando carnaval nos dias anteriores. The Street não é especialmente relevante; é apenas aquele gênero chato de seriado que se deseja bom entretenimento e nada mais. Mas, por ser um seriado que lida igualmente com operadores da bolsa, a comparação ganha força. Mesmo que em The Street nada brilhe muito (a não ser os olhos da bela Jennifer Connelly), há nesse seriado uma certa aquiescência de que a personalidade dessas pessoas é banal mas que, mesmo assim, eles não são despidos de interesse. Apenas esse leve toque, apenas essa leve constatação poderia fazer de Psicopata Americano um filme minimamente interessante, mas a diretora Mary Herron prefere fazer uma caricatura rasteira, tão interessante quanto as músicas que tocam no filme, de Huey Lewis & The News até Phil Collins, e tão insuportáveis quanto. O carnaval podia ter terminado melhor. Ruy Gardnier
CRÔNICA Quarta feira de Cinzas, 14hs, Largo do Machado 2: já na sua quarta semana em cartaz, Beatles – Os Reis do Iê-Iê-Iê (A Hard Day’s Night, de Richard Lester). O filme em si é uma inteligentíssima brincadeira com a própria imagem do grupo, num produto que ri de si mesmo como aproveitador da tal Beatlemania, que retrata aquele mundo de fãs alucinadas, imprensa sem muito o que dizer e diretores de TV e produtores, ao mesmo tempo em que o critica. Nos tempos de Brittney Spears e Tchan é bom lembrar quando os ídolos pelo menos sabiam rir de si mesmos e de sua imagem, e não levá-la a sério. Sem contar que as canções, mesmo não sendo da melhor fase do grupo, comprovam seu poder inigualável de permanência, todas encenadas com muito humor. Na platéia, dois fenômenos: primeiro que a cada canção o cantarolar ecoa pela sala. Ninguém deixa de conhecer as músicas dos The Beatles... E segundo, muitas mães e pais (e possivelmente avós), com seus filhinhos a tiracolo, crianças mesmo. E elas se divertem. Nota-se, além de uma nostalgia, um certo orgulho dos pais de mostrar às crianças os seus ídolos de infância. Em suma, o filme em cartaz de novo é ainda hoje um acontecimento. Tudo menos apenas mais uma sessão de cinema... Eduardo Valente A opção por pesquisas sobre cinema na internet é paupérrima. Se Winona Ryder anunciar que está disposta a trabalhar com Lars von Trier, em menos de dez horas os aficcionados por notícias saberão de tudo, graças a todas as redes de notícias que se espalham mundo afora. Entretanto, se precisarmos de informações sobre modos de produção e financiamento de filmes em outros países, o índice de informação é praticamente nulo, mesmo em sítios oficiais de órgãos públicos. Como um meio de comunicação recente, a rede tende a absorver mais rapidamente as novidades informativas que os dados de pesquisas históricas, e isso é bossa nova, isso é muito natural. Mas eu estive lendo, justamente na rede, um interessante artigo do ministro Weffort sobre nosso cinema, artigo este tirado de um discurso pronunciado no dia 13/07/00, ou seja, no ano passado. O artigo está no endereço http://www.minc.gov.br/textos/textos.htm (Na verdade, minha busca na rede é sobre cinema italiano e sobre cinema espanhol. Acredito que o formato de apoio ao cinema existente na Itália, até meados dos anos setenta, favoreceu a mais brilhante produção em larga escala de filmes fora da matriz, e que foi justamente quando esse formato de apoio caducava que surgiu o cinema espanhol como parâmetro alternativo. Ou seja, quando o mais forte cinema europeu desde o início do século decaiu, seu vizinho, até então quase inexistente, surgiu para tomar seu lugar. Mas isso seria assunto de outro artigo, aqui o tema é outro). Bem, eu falava sobre o discurso do nosso ministro. O fato é que em vários momentos Weffort fala da existência de um "cinema de arte", mas, feita esta ressalva, dele não trata. Trata, sim, da possível implantação de um ‘cinema industrial’. Na verdade, logo na primeira frase nosso ministro enuncia que nós, brasileiros, temos uma tenacidade constante em tentar sedimentar uma indústria cinematográfica cá nos trópicos, e seu assunto principal é justamente a defesa da necessidade de uma postura empresarial diante do fazer cinema. Isto, é claro, sempre respeitando o espaço do ‘cinema de arte’. Este detalhe o ministro não esclarece bem do que se trata, mas isso é normal, em se tratando de alguém com tantas ocupações. O que ele nos indica é que trata-se de "projetos que não visam o lucro, dependentes de patrocínio". O que está esquecido nesse raciocínio é que a imensa maioria dos filmes ‘comerciais’ da chamada ‘retomada’ não obteve lucro, e vários tiveram problemas em sua produção ou concepção justamente por esta ‘dependência de patrocínio’. E a possibilidade de desconto integral de patrocínio, somada ao interesse de exposição e retorno, favoreceu a concentração de financiamentos em torno de projetos caros, produtos ‘industriais’ de uma indústria que, a rigor, não existe, e só produz a partir de recursos de merchandising patrocinados, em última análise, pelo dinheiro de impostos. Ou seja, são produzidos com recursos públicos, e não há dinheiro para os ‘filmes de arte’, ou para os filmes baratos, que parecem se confundir com os primeiros na argumentação oficial. Não deveriam ser confundidos. Os filmes que o ministro chama ‘de arte’ são de fato fundamentais, e portanto devem sim ser contemplados com o célebre Fundo Nacional de Cultura, coisa que acontece em escala muito menor do que desejado. Mas também existem filmes "comerciais" de baixo orçamento. O tipo de filme que o estado trata como tendo "mérito artístico" (o que por si só já seria bastante discutível) pode muito bem estar ambicionando atingir um público bem mais amplo e diverso que o sugerido pela natureza do mercado desses filmes "nobres". Além disso, é natural num sistema de produção saudável a existência de filmes baratos e de forte apelo cômico, erótico ou seja o que for, e a tendência de se considerar esse tipo de obra barata "não-artística" apenas denota a elitização preconceituosa da postura governamental de fomento. Errado, muito errado no país que gerou as chanchadas, as pornochanchadas e Zé do Caixão, modelos de filmes baratos e populares, cujo reconhecimento só ocorreu muito depois das suas fases produtivas. Quando ocorreu, o que ainda não é o caso das pornochanchadas. Mas o que seria o modelo a seguir, a partir do discurso do ministro? Os "filmes para o Oscar"? Ou será que nosso ministro acredita ser possível a uma empresa produtora viabilizar uma série de filmes que se paguem no mercado interno? Nossos filmes, não custa lembrar, estão tendo uma média de espectadores próxima de cinquenta mil pessoas. O desejo do ministro é que a ‘indústria profissional’ passe a ser independente do estado, o que sem dúvida é muito desejável. Mas de que forma? Como os filmes se pagarão? Prosseguindo na tese oficial, os filmes patrocinados pelas Leis de Incentivo capitalizarão as empresas, que investirão na produção, distribuição e exibição dos filmes. É aí que encalacra a coisa, como a gente bem sabe. Não há distribuição, desde o furacão Collor. Há só a Riofilme para distribuir o que for feito, fora exceções ocasionais. A solução, parece ridículo lembrar, está sendo a criação de outras distribuidoras municipais ou estaduais, como a Sampafilmes. Ou seja, estamos tendo que recriar a Embrafilme disfarçadamente, de forma descentralizada e menos forte para resistir à pressão de lobbies, só para evitar que a imprensa adversária reclame. Nosso querido ministro parece não perceber a tendência concentracionista permitida pela Lei. O que acontece é que todos sabem que há mais espaço para que surjam por ano uns poucos filmes caros que centenas de filmes baratos. É mais fácil conseguir dinheiro para um mega-orçamento com nomes conhecidos que para baixos orçamentos. É mais interessante para uma empresa associar seu nome a um filme com uma mega-divulgação, recheado de artistas globais. Ótimo, ótimo, pena que este seja um dos motivos daquilo que o sr. Secretário Moisés chama de "canibalização" dos recursos, mas este motivo o sr. Secretário não notou. O que esta tendência reprime é a feitura de uma verdadeira produção constante e significativa de filmes, uma vez que dependemos da bilheteria de umas poucas obras, da disposição das empresas que pagam impostos e de algumas exceções heróicas um pouco mais ou um pouco menos fora do conservadorismo da casta consagrada de produtores de imagens. Essas exceções devem ser louvadas, sim, mas é preciso lembrar Brecht de novo, pobre do povo que precisa de heróis. Não que os filmes específicos dessa fase sejam todos ruins intrinsecamente, não é minha intenção afirmar isto, não o são de forma alguma. Ao contrário, hoje já é possível perceber que algumas obras de gênio surgiram a partir desse modelo de produção. Mas a totalidade destes filmes está longe de ser de fato representativa de qualquer coisa além de nossa capacidade para a concentração elitista. Vale como "retomada", mas suas regras estão entrando em crise, e parece que nosso ministro acredita que a solução para isso é uma nova dose de entusiasmo no empreendimento cinematográfico, a partir do financiamento da construção de novas salas e num estímulo à capacidade comercial de nossos filmes. Nem acho de fato que ele esteja totalmente errado. Apenas tenho a impressão de que somente isso não resolverá de nada. Se o lucro do mercado hoje se divide majoritariamente entre a distribuição em vídeo e a exibição televisiva, além das tradicionais salas de exibição, é preciso que o Estado imponha regras em ambos os casos para a produção independente nacional. Briga de cachorro grande. Nesse caso parece ser mais simples e menos trabalhoso aconselhar mais entusiasmo para produzir, e mais empenho na feitura de projetos. Ou, como diz ele mesmo: "Não é este, porém, o caso do cinema, atividade cultural típica da época industrial. Exceção feita ao cinema de arte, o cinema só poderá existir como atividade continuada, na sua peculiar mistura de arte e entretenimento, se transformar-se em indústria, se crescer para o mercado. É aqui que topamos com as nossas maiores dificuldades no setor." E a função do Estado é estimular através de financiamentos subsidiados (ou seja, dívidas a serem pagas com o lucro do investimento). Para seguir que modelo? " É inteiramente apropriada a expressão do pessoal do cinema americano quando se refere à sua atividade como um sistema, algo que de modo permanente liga as diversas partes de um setor de produção. Eles dizem "the industry" e é exatamente disso que se trata (2). No Brasil, o que temos de semelhante é a produção de novelas para TV. Quem for ao Projac, da TV Globo, no Rio, perceberá que está diante de uma grande fábrica. Todos os estúdios de TV têm essa característica, mesmo que não se dediquem a novelas, e trabalhem numa escala menor. Como os estúdios de TV, os estúdios de cinema são fábricas, embora não tratem com coisas materiais, como ferro e aço, mas com imagens, sons, idéias e emoções. E o sistema que os une é uma industria, um setor industrial (3). " Combinado. Dize-me quem citas e te direi quem és. E o ministro defende que há dinheiro para investir no cinema, o problema é fazer o coelho sair da toca: "Não são poucos os empresários interessados em investir em salas de espetáculos, pelo menos no Rio e São Paulo, com o olho no enorme mercado da musica popular. Alem disso, as quantias que se investem em marketing na área cultural são bastante razoáveis. Pretendo sugerir que existe mais gente do que se imagina interessada em ganhar dinheiro com cultura. O problema, a rigor, não é de falta de dinheiro. Não pelo menos na medida, modesta (muito modesta, se comparada ao cinema americano), que se faria necessário para dinamizar aqui uma industria. Dinheiro existe, a questão é como atraí-lo para o cinema nas doses necessárias." Daí essa beleza de programa, o Mais Cinema, para emprestar dinheiro. Será que esse filme se paga? Nos conta o ministro: "De 1995 a 1999, o cinema brasileiro realizou 114 filmes de longa metragem e cerca de 80 documentários. E estes números deveriam ser suficientes para aplacar as duvidas em torno de alguns casos de alegada aplicação irregular de recursos, os quais se acham, por outra parte, submetidos aos controles da lei. Deixando para traz a estagnação dos anos 1990-1994 quando produzimos apenas 12 filmes, de 1995 a 1999, o cinema brasileiro movimentou cerca de 350 milhões de reais, sinal de uma saudável abertura do mercado. Anote-se que no lançamento comercial destes filmes, estima-se que investimos cerca de 150 milhões de reais em publicidade e promoção." Beleza, beleza. Mas vem cá, essa movimentação de 350 milhões foi quanto em gastos e quanto em ganhos? Sim, porque é a partir dos ganhos que os empréstimos serão pagos. Se o filme der prejuízo, danou-se. Enquanto isso, na Lei do Audiovisual... O que acontece é que estas leis que estão funcionando razoavelmente para estimular essa "retomada" fazem um filme estrear já pago, e este tipo de apoio, pelo que suspeito, precisa ser direcionado para produtos baratos. Mas os filmes caros são um fato concreto, e, sendo estimulados da forma adequada, podem representar um sinal de saúde da produção. Só tem algumas coisas que às vezes a turma das leis esquece, e depois tem que consertar. Primeiro, que filmes sem intenção comercial não podem ser caros. E, segundo, que filmes caros devem ser um investimento como qualquer outra produção de objeto de consumo, e portanto passíveis de lucro ou prejuízo. O que sugere o ministério para estimular a demanda por filmes nacionais, além do empréstimo de dinheiro para a construção de novas salas? Salas estas que, diga-se, estão sendo construídas por empresas tradicionalmente ligadas à produção americana. Alguma lei em vista para disciplinar Tv e vídeo, ou apenas loas à produção global? A Lei do Audiovisual garante o filme já pago na sua estréia, e o que vier é lucro. A alternativa que o ministro propõe para a produção de mais filmes é de tomar empréstimos, para filmes que não conseguem se pagar no mercado, o que, com as atuais regras, significa prejuízo na certa. Contraria mais uma vez uma regra clássica da economia, afinal, se não há demanda que atenda à produção de filmes, o aumento dessa produção resultará fatalmente em prejuízo. Será que a nossa casta de produtores de imagens vai topar trocar de modelo? Daniel Caetano Assim como o texto do ministro Weffort, "Uma nova política para o cinema brasileiro", reprodução de um discurso do Secretário José Álvaro Moisés no Senado, está no sítio do MinC na internet, disponível conforme os humores dos provedores. Além disso, foi distribuído para os convidados do Primeiro Grande Prêmio, a festa do Quitandinha com nome de corrida de cavalos, que este ano já teve sua segunda versão. Apesar de já ser uma ‘versão revista’ de um discurso, há ainda uma porção de confusões gramaticais, que podem ser relevadas, até pela natureza de depoimento do texto. E é, sem dúvida, um discurso pensado, longo o suficiente para que as idéias sejam expostas. Se é um documento em que é possível entender a atual política e perceber suas falhas, temos então que reconhecer que é um passo admirável em busca da transparência. Certamente a postura democrática pode se aprimorar, talvez o sítio do MinC pudesse indicar textos não-oficiais, menos alinhados, assim como poderia publicar uma série de documentos de operações com dinheiro público. Mas deixemos isso de lado, o que quero lembrar é que as opções que segue o nosso ministério estão claras em grande parte dos problemas do cinema brasileiro. Se não concordamos com ela, é preciso explicar por quê. E esse longo relato para a comissão de cinema abre o jogo. Está numa linguagem empolada, pela natureza da situação, e toma a posição de defender com unhas e dentes as ações governamentais, pela natureza do cargo, como não poderia deixar de ser. Mesmo assim, é um documento que esclarece as opções da atual equipe do ministério, e ainda coloca na mesa o assunto que logo vai emergir, a prorrogação da validade da Lei do Audiovisual. Isso posto, vamos também lembrar que o Secretário lava as mãos quando se trata de reconhecer ações erradas. Lembra diversas vezes que herdou uma situação complicada, após aquilo que ele chama de "Desmonte" da era Collor (aqui já incorrendo na principal falha do depoimento, que é o não-reconhecimento das realizações do governo Itamar Franco, quando a Secretaria esteve sob o comando de Moacir de Oliveira). E, tendo em vista a complexidade da questão, afirma que não omitirá falhas, completando: "Não temo, portanto, que a menção a correções de rumos no audiovisual implique em qualquer demérito ao governo". Ok, tem sua razão em dizer isso, e dessa forma nós ficamos à vontade para, como diz o Secretário, mencionar possíveis correções de rumos. Ao olharmos o panorama atual de produção e as atitudes tomadas pelo governo, temos a imediata sensação de imobilismo, de crise à vista. Mas, mesmo que escondida por trás das comissões e dos depoimentos, uma nova relação institucional pode estar surgindo e se impondo, como já notou euforicamente o Secretário em outra ocasião. Agora a ‘classe’ tem, mal ou bem, seus representantes, indicados a partir do Terceiro Congresso, o governo compôs um "comitê executivo" para o assunto e o Legislativo tem uma comissão específica para a discussão no Senado. Ok, ótimo, e é a partir da ação no Congresso Nacional que podem acontecer as modorrentas revoluções do ambiente democrático. O sistema é lento e enfadonho, mas é o que temos, salvo intervenções eventuais de governos, não raro autoritárias e/ou pouco funcionais. Certo, mas é preciso observar resultados, notar os problemas e propor soluções. Quais são os resultados? O Secretário se orgulha de ter tirado a questão do fundo do poço. É o caso de dizer novamente, é uma pena que não se dê crédito algum à gestão do período Itamar Franco, há apenas uma rápida menção ao Prêmio Resgate. Mas tudo bem, até porque não haveria grandes considerações além disso. Apenas que a Lei do Audiovisual, talvez o sr. Secretário tenha se esquecido, foi aprovada antes de Fernando Henrique Cardoso ocupar a Presidência da República. Então temos um discurso em defesa de um sistema industrial de filmes, defendendo principalmente o investimento em distribuição, comercialização e exibição, e anunciando que o governo se dispõe a emprestar o dinheirinho subsidiado do BNDES para investimentos na área. Ótimo, ótimo, tudo bem capitalista, bem globalizado. Mas o resultado é que os exibidores estão construindo e reformando redes de cinema pra passar filme gringo. Ok, estamos misturando as coisas. Não estamos não. É ótimo que o governo aposte na difusão de cultura, e cinema é parte disso. Mas que cultura é essa? O problema é esse, não tem regras. Ou melhor, o ‘mercado’ impõe as regras. Com dinheiro público? A solução para melhorar a distribuição e exibição pode passar, provavelmente, pelo caminho de empréstimos para investimentos, e também pela descentralização do apoio estatal (como no caso Riofilme). Mas o problema são as leis. As regras do jogo. E esse é o problema maior da proposta do governo. Com tanta coisa para sugerir numa audiência na comissão do Senado que trata da questão do audiovisual, o nosso Secretário se limita a propor a prorrogação da validade da Lei do Audiovisual. Para não parecer modesto, ele compensa no entusiasmo, ao propor um novo período de, no mínimo, vinte anos. Em suma, a solução é prorrogar a Lei, e tudo vai muito bem. É pena, porque quase todos os motivos de crítica são bem lembrados no discurso. O Secretário lembra da onipresença dos filmes americanos no circuito de salas, vídeo e Tv, mas não pensa em formas de conter o problema. Na opinião dele, basta produzir que a situação se reverterá. Quando lembramos que a imensa maioria dos filmes produzidos não obteve retorno financeiro equivalente aos investimentos, o Secretário parece preferir acreditar que isto se deve, somente, à falta de salas e de dinheiro para publicidade. Infelizmente, não é bem assim. As distribuidoras compram o produto americano mais barato e em forma de pacotes, um "blockbuster" junto de outras porcarias. Isto é cada vez menos comum na parte de salas, mas em vídeo e Tv não há qualquer regra para legislar sobre isto. E isso é um procedimento que as leis americanas passaram a chamar de "dumping". O que sugere o Secretário contra essa prática? Não adianta esperar que nossos filmes sejam feitos, ganhem prêmios e passem em algumas novas salas. Isso é subsídio para uma cultura elitista. Não que isto esteja errado em si, de maneira nenhuma, filmes que não pretendem obter resposta imediata de público devem ser apoiados sim, de uma maneira que inclusive não é feita hoje, que é priorizando a quantidade e democratizando o acesso a equipamentos. Mas isso não basta. Uma imensa parte do "mercado audiovisual" do Brasil não vai mais às salas de cinema. Elas precisam de apoio, decerto, mas é preciso levar o cinema brasileiro a elas, e não só o cinema brasileiro feito em película, mas sim todos os formatos audiovisuais, com espaço para produções regionais na Tv. Isso depende de regras para telecomunicações. É tão importante quanto as várias reformas que o governo promoveu na constituição, mas infeizemente não obteve a mesma atenção dos deputados que o apóiam. O mercado das salas pode garantir alguns filmes por ano, até porque vez por outra vai aparecer um premiozinho aqui, outro acolá, para dar uma força na "visibilidade do produto". Mas não garante uma democracia na produção e consumo de audiovisual, isso com certeza não. E não adianta dar razão à "(...) observação usualmente feita por dirigentes de empresas americanas de distribuição, segundo a qual os produtores latino-americanos e europeus poderiam ocupar melhor seus próprios mercados se melhorassem a qualidade de seus filmes." Dizer que isso constitui um "problema real" é uma falta de bom senso diante da realidade dos enlatados e filmes de segunda lançados diariamente no mercado de vídeo e na exibição nas Tvs abertas e pagas. Além disso, é uma grosseria imensa com a década de "Amélia", de "Dois Córregos", de "Coração Iluminado", de "Estorvo", de "Santo Forte", de "Alma Corsária", de "O Primeiro Dia" e também de "Carlota Joaquina", de "Orfeu" e de "Central do Brasil". Sem dúvida, é a parte mais infeliz do discurso, e nosso Secretário bem que poderia ter passado sem essa. O fato é que no discurso também se menciona, além da prorrogação da Lei do Audiovisual, tanto a redefinição do conceito de audiovisual, para abarcar, por exemplo, a Internet (mas nossos problemas são antigos, ainda estão na distribuição em vídeo e Tv), quanto a necessidade de controlar e taxar minimamente a importação de produtos de outros países. Mas não há soluções apresentadas, simplesmente porque não há soluções pensadas. O Secretário aposta nas decisões do "comitê executivo" instituído, mas por ora nada propõe sob estes aspectos. Legalmente, não propõe nada além da expansão da Lei do Audiovisual. Menciona também, lá no final do seu discurso, a Lei da Cota de Tela, a defende e diz que é preciso encontrar um mecanismo para fiscalizar seu cumprimento. Nenhuma sugestão quanto a possíveis mecanismos. Nesse ponto fica difícil não lembrar da Lei do Curta, cuja vigência não está definida legalmente. O Ministério argumenta que ela já não vige mais, a partir das mudanças de Collor, enquanto outros argumentam que estas mudanças em momento algum mencionam a referida lei. O Secretário sequer comenta o assunto, quer seja para explicar a posição do Ministério, quer seja para defender a extinção ou a republicação da lei. Num texto tão atento diante de uma série de problemas (apesar de deficiente em propostas, como me parece), é pena perceber o desinteresse por mecanismo tão eficiente de estímulo à produção e à inserção das novas gerações no "mercado". Pois bem, falemos do tocante à produção. Da mesma forma que passa ao largo das possíveis soluções dos problemas eternos de distribuição e exibição, o discurso no Senado escapa de analisar com mais atenção os problemas e imaginar soluções adequadas na parte específica à produção. O secretário menciona a tendência dos orçamentos inchados, mas parece crer que a mão invisível do mercado terminará por dominar essa tendência. Ele está enganado, isso só vai acontecer quando houver um limite para orçamentos que vierem a descontar seus investimentos do pagamento de impostos. Enquanto isso não acontecer, o interesse dos investidores sempre será pelos filmes mais caros, com os astros mais conhecidos. É justo que este tipo de filme exista, mas ele é um investimento capitalista, e precisa ser protegido como tal. Ou seja, é para os filmes de alto orçamento que devem ser destinados os empréstimos do BNDES, e esses filmes devem ter sim o amparo legal para uma comercialização decente nos mercados externos e condições justas para disputar o mercado nacional. Com o descaso legal diante da parte de comercialização, é natural que estes grandes produtores não aceitem correr riscos junto ao BNDES e prefiram as doçuras da Lei do Audiovisual. Mas esta precisa usar seus recursos para a produção de filmes em maior escala. Mais baratos, portanto. Sendo assim, não adianta justificar o rigor e as exigências que vêm sendo instituídos na aprovação de projetos, para evitar aquilo que o Secretário chama de "canibalização" dos recursos. Sem regras para limitar gastos, este rigor servirá apenas para reservar os recursos para a casta de grandes produtores, em nada contribuindo para democratizar a produção, ao contrário, fechando ainda mais o pequeno grupo de produtores de audiovisual. Tampouco adianta dizer que o fácil acesso à lei fez com que "os produtores deixassem de incluir no seu planejamento a necessária articulação entre produção e comercialização", concluindo que "os realizadores perderam, muitas vezes, a perspectiva do ciclo completo de funcionamento do mercado" Se isso parece ter acontecido, é preciso lembrar que os filmes estavam (e estão) desamparados legal e institucionalmente (com a frágil exceção da Riofilme). O discurso faz distinção apenas entre dois tipos de filme, os ‘de arte’ e os normais. Não é bem assim. Fosse tudo feito sem dinheiro do governo e sem concorrência externa, até poderia ser. Mas, sendo a situação como é, é preciso fazer distinções para estimular diversos formatos. De imediato podemos concluir que os filmes caros precisam ser apoiados na sua comercialização e podem vir a utilizar verbas de empréstimos, mas não devem utilizar os recursos da Lei do Audiovisual, para que haja espaço para mais projetos de médio porte. Da mesma forma, não devemos confundir novamente filmes baratos com filmes ‘de arte’. Nem devemos nos contentar com os estímulos citados para estes (além do célebre Fundo Nacional de Cultura, o Secretário cita, a sério, a Bolsa Virtuose), nem podemos aceitar a discriminação da atuação do estado junto àqueles. Os filmes baratos devem ser estimulados, ponto. Sem distinção. Para isso, medidas simples poderiam democratizar o acesso aos equipamentos, mediante empréstimos e co-produções, o que muito baratearia os orçamentos, da mesma forma que concursos poderiam apoiar suas produções. (Parênteses. É evidente que são necessários concursos para complementar a ainda tímida utilização do Fundo Nacional de Cultura. Primeiro, concursos para projetos de iniciantes. Segundo, projetos de documentários. Terceiro, projetos de filmes baratos. Quarto, projetos de curtas. São coisas diferentes, com objetivos diferentes, e misturar tudo isso não ajuda em nada, só limita o alcance dos seus objetivos. Fecha parêntesis.) O Secretário percebe bem grande parte dos problemas, mas a sugestão de prorrogação da Lei do Audiovisual parece jogar por terra qualquer esperança de mudanças profundas partindo do Executivo, que viriam a partir das decisões do tal "comitê executivo". O título desse texto remete a uma piada soviética, do fim do período comandado por Leonid Brejnev. A piada é assim: "Estão num vagão de trem Josef Stalin, Nikita Kruschov e Leonid Brejnev. De repente, o trem pára, devido a um acidente nos trilhos. Stalin, contrafeito, dá ordens para que toda a tripulação do trem seja punida com um julgamento sumário e passada a fogo. Passa-se o tempo, o trem continua parado, e Stalin vira-se para os outros e pergunta-lhes o que fazer. Kruschov então manda que os fuzilamentos ainda não cometidos sejam suspensos, e pede desculpas às viúvas dos tripulantes. Passa-se mais um tempo, e nada do trem andar. Viram-se os dois então para Brejnev e lhe perguntam o que sugere. Ele caminha até a janela, vê o trem parado, observa a paisagem, fecha as cortinas e diz aos outros:
Por alguma razão, lembrei-me da anedota ao iniciar este texto. Daniel
Caetano Em janeiro deste ano, reabriu no Rio após uma reforma o cinema Estação Paço. Quando abriu, este cinema prometia uma alternativa interessante ao grupo Estação, uma sala menor, para eventos específicos, onde poderia haver uma viés menos comercial e mais de formação de público. No entanto, a sala nunca "pegou". Primeiro, sua localização não chega a ser inspiradora, embora seja talvez a de acesso mais fácil a pessoas de todo o Rio de Janeiro e Niterói. Nos fins de semana, a área fica quase deserta, o estacionamento no meio da rua é complicado. Problemas que enfrentam todos os cinemas do Centro. Além disso, logo depois de sua abertura, o cinema mudou de caráter passando a fazer a rebarba do circuito, os filmes em fim de carreira, se igualando na programação ao Estação 2 e ao Museu. E mais, suas instalações eram bastante precárias com as extremamente desconfortáveis cadeiras, mais adequadas a um auditório do que a um cinema, e o som eternamente problemático. Como se não bastasse, a proximidade da Rua Primeiro de Março fazia com que algumas projeções fossem sempre premiadas com os sons do Centro: buzinas, arranques de ônibus, apitos de guardas. Nesta reabertura, o grupo Estação acenou com um retorno às origens bastante interessante na parte da programação, voltando aos ciclos temáticos e de formação de público, além de instalar efetivas poltronas de cinema. O som continua muito ruim, mas tem sido melhorado aos poucos. No entanto, o público diminuiu ainda mais. Pude ver sessões de Humberto Mauro e Roberto Farias sozinho na sala, assim como dividi com uma ou duas pessoas várias sessões. Há notícias de várias sessões canceladas por falta de público, mas a estas, é óbvio, não compareci. O fato importante nisto tudo é pensar de que forma pode-se aprender lições com a experiência do Paço no que se refere a exibição de formato cineclubesco no Rio de Janeiro de hoje. E há algumas conclusões:
O fato é que, infelizmente, os filmes por si só não chamam o público. Não adianta programar filmes raros ou em ciclos e achar que é só colocar para passar. O público tem que ser procurado, atraído, encontrar um ambiente que se diferencie. Se for para exibir Humberto Mauro ou Andrzej Wajda como um outro cinema exibe Gladiador ou Woody Allen, é claro que o público não vai. Ele pede um mínimo de criatividade que ultrapasse a programação e chegue na esfera da propaganda, e enquanto isso não for enfrentado pelos que ainda se propõem a criar programações diferenciadas, serão apenas valiosos tiros n´água, como a atual ocupação de público do Paço. Eduardo Valente CRÔNICA Quando um filme é realizado, especialmente a partir de um certo momento na década de 80/90, os cuidados técnicos com a sua finalização, seja na parte de imagem, seja na parte de som, ultrapassam toda e qualquer idéia que um espectador comum possa ter. Cada mínimo som é trabalhado em termos de volume, posição nas pistas estéreo, cada efeito sonoro é motivo para discussões muitas vezes longuíssimas entre editores de som e diretores. O que se sabe hoje é que, se bem projetado, cada um destes estímulos pode ter papel fundamental na apreciação do filme pelo espectador, saiba ele disso ou não. Em contraste com esta preocupação que muitas vezes adquire um caráter efetivamente surreal de detalhismo, a imensa maioria das nossas salas de exibição continuam demonstrando um completo desrespeito ou falta de interesse com estes "detalhes". Se os realizadores sabem que a percepção do filme pode ser alterada, os exibidores no geral pouco se importam com isso, pois sabem que, uma vez dentro da sala, ínfima é a porcentagem de espectadores que poderá julgar se está diante de uma boa projeção ou de um bom som, e muito menos o quanto disso pode ser culpa de realizadores ou da sala de cinema em si. Esta discussão torna-se especialmente pertinente hoje, pois com a entrada em cena de UCIs e Cinemarks há uma nova valorização da "qualidade" de uma sala (infelizmente ainda muito mais vista pelo público na qualidade da pipoca e no quanto a sala pareça "coisa de primeiro mundo" do que na substância mesmo, ou seja, na projeção dos filmes), e uma venda de um novo projeto de "qualidade" que deve ser bem esclarecido. Por isso, vamos correr rapidamente por algumas salas, divididas em algumas categorias, para dar exemplo do que se faz hoje em exibição no Rio de Janeiro:
A verdade é que, seja qual for o tipo da sala, conta-se nos dedos as projeções que realmente resolvem a equação tamanho-qualidade com sucesso. Irretocáveis mesmo, talvez só o UCI, o Estação 1, Espaço 2, Casa França Brasil, e, grande surpresa, o Bay Market em Niterói. O São Luiz tem potencial, mas precisa ser avaliado mais tempo, assim como Estação Ipanema e Barra Point. Há outros cinemas minimamente adequados, é verdade, mas é uma pena que não pareça haver uma preocupação geral em solucionar os problemas existentes, que reflete uma despreocupação com o ato da projeção, que afinal, devia ser o principal. Eduardo Valente |
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