Omeleto, Arroz e Feijão
São Paulo Shimbum, 4 de março de 1971

 


A Herança de Ozualdo Candeias

Laboratório Líder: 1º de março. Candeias dá uma sessão especial de seu prato do dia: A Herança, o branco no preto, arroz com feijão bem temperado. Menos salgado que Tonho, bom de alho como A Margem, dosado no óleo como O Acordo. O bom prato do brasileiro. Um dos melhores cozinheiros das almas da nossa Boca, Ozualdo busca em Hamlet a maneira certa de virar o omeleto na frigideira. Almoço simples mas com raro sabor. Comidinha do interior que infelizmente ainda não alimenta 20% dos 100 mil. Mais uma confirmação do talento de Candeias, a mise en scène total. Tal como Trevisan (Orgia), Candeias não tinha recursos de produção pra começar o filme. Vontade de ferro, as filmagens foram até o fim e o resultado é o filme melhor acabado de Candeias. Como se explica isso?

Figura arretada da gota serena, Candeias é um cineasta de raça. Como Marins, do nada ele arranca cinema, linguagem que respira com espontaneidade. Com as figuras depauperantes da Boca, faz um admirável painel lírico-crítico do folclore. A tela branca, o diafragma correto no Orwo, surge o carro de boi contrastado, carregando o caixão do pai de Omeleto, personagem central (a melhor aparição de David Cardoso). Shakespeare diria que não é nada disso, mas bem que ficaria fascinado com o estranho clima em que Candeias envolve seus personagens. Um ritual fúnebre, Hamlet é só uma dica, vaga inspiração, já que Oswald não foi aproveitado em seu tupi or not tupi. Não tem problema não: Candeias é tão pessoal que prefere uma má citação sua que uma boa de outros. Todos seus filmes se complementam, caem numa redundância típica do ritual, mas sempre autenticando uma visão peculiar do ramerrão interiorano.

O sertão não vira mar. Vegeta. Nada acontece. Embora se fale muito no interior (comunicação tribal, auditiva-tribal), em Candeias os personagens quase não falam: 1º porque como linguagem ou inovação não têm mesmo nada, 2º porque dublagem encarece e enche o saco, 3º porque o som da Odil é uma (§), 4º porque os cinemas continuam sabotando o som. Um narrador discreto e conciso dá a informação complementar. Como história é o filme mais linear e entendível de Candeias. Essencialmente visual, com um [trecho apagado].

Uma vez Almeida Salles comparou Tonho a Limite do Mário Peixoto. Para uns Candeias é um primitivo, para outros um erudito, já que fala a dar com pau dos comportamentos paranormais. Marginal entre marginais, ninguém ousa negar a enorme carga da chamada brasilidade que seus filmes fazem explodir. Em primeiríssimos planos invadem a tela caras de caboclos que fazem muitos pintores babar. Os planos gerais com os personagens inseridos na paisagem são antológicos como plasticidade. Detalhes das costeletas, orelhas, dedos, olhos, bocas, dentes – tudo faz parte da marcha fúnebre. Desta vez os personagens emitem ruídos, cantam como passarinhos ou rosnam como leões (Agnaldo Rayol surge também em seu momento mais cinematográfico).

Em suma: A Herança é uma saborosa crônica de costumes rurais, politicamente despreocupada, mas que não esconde um definhamento social, com dados poéticos estranhos e dignos de estudos mais detalhados. O falecido cinema político não tinha nada disso. Algo de novo está surgindo, e vem das entranhas de personagens como esses de Candeias. Daqui 20 anos saberemos o que é. Por enquanto arroz & feijão & omeletos para todos. Aguardemos o lançamento...???!!!

Jairo Ferreira