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Meus amigos davam mais importância ao Mojica. Eu, bem pelo contrário. Ver A Margem pela primeira vez foi para mim uma experiência única. Eu não tinha nada a ver com cinema, e entrei no Marabá porque estava passando na porta e as fotos eram, em definitivo, muito atraentes. Lá dentro, tudo confirmava a estranheza, a força, o clima único que as fotos na porta propunham. Havia, se bem me lembro, uma moça negra com vestido de noiva, às margens do Tietê. E um homem meio nanico (era Bentinho) que espantava os urubus. E Mario Benvenuti fazia uma espécie de mendigo, mas um tipo alinhado, com um terno, ou um arremedo de terno. A vida à margem era olhada com tamanha força, ternura e originalidade que seria impossível tirar os olhos da tela. Os personagens eram ao mesmo tempo reais e irreais, concretos e sonhados. Não eram operários nem camponeses. O que eram? Eram gente sem lugar, sem encaixe. Sobreviviam num mundo que deteriorava, putrefato, afirmavam uma dignidade inesperada num mundo plenamente hostil. Aquelas imagens traziam coisas novas em relação ao Cinema Novo, e eu penso hoje que era em parte por não transmitirem nenhuma necessidade de se justificarem, de serem brasileiras, de serem sociais. Elas eram e ponto. Pareciam surgidas de nada, sem influência alguma, sem passado, mas com uma concretude esmagadora. Não era um filme sobre marginais, mas entre eles, com eles. O Cinema Novo discorria sobre o povo, mas o povo era antes de mais nada um elemento de discurso. Em A Margem, não. As pessoas estavam lá porque estavam, simplesmente, e essa qualidade para mim estabelecia um novo patamar para a maneira de fazer cinema. Olhando retrospectivamente, me parece que ambos, Candeias e Mojica, têm essa virtude central: não pedem desculpas por fazer seus filmes como fazem, não precisam se explicar ou constituir um discurso que sustente seu trabalho: ele está lá e isso lhes basta. É uma coisa com que nós temos dificuldade de conviver no Brasil. O desejo de mostrar alguma coisa quase sempre precisa de uma causa, de uma justificativa. Candeias não tinha causa alguma, nem Mojica. E penso que essa qualidade é que nos deixava siderados. O segundo filme do Candeias, Meu Nome É Tonho, foi uma decepção para muita gente, inclusive e sobretudo para o Rubens Ewald, que já era crítico do Jornal da Tarde e trabalhava ao meu lado. Éramos ambos copy desks. Ele escreveu uma crítica esculhambando o filme. Eu disse a ele que, pelo que ele dizia, o filme devia ser bom. "Vai ver, eu acho que você vai gostar", ele respondeu. Na verdade, Tonho me impressionou mais ainda que A Margem, com aquele jeito meio faroeste, meio caboclo, que ia para todo lado, menos para o que se esperava. Era um filme surpreendente a cada minuto. Pela primeira vez na vida eu, que até então só gostava de escrever, achei que devia me meter com aquilo. Eu queria fazer aquilo. Foi o Rubens mesmo que me levou à Boca do Lixo e me apresentou ao Candeias. O Candeias estava lá, como sempre. Eu não sabia o que dizer a ele. Uma hora ele virou pra mim e perguntou se eu não queria trabalhar no seu próximo filme. Topei na hora. A experiência de ser assistente do Candeias é certamente uma coisa única. Primeiro, porque você não ganha um tostão furado. Todo mundo, da estrela do filme ao mais humilde assistente – eu, precisamente – trabalhava de graça, pelo prazer de estar metido naquela empreitada. Em segundo lugar, quando você é assistente do Candeias, faz isso mesmo: assiste. Ele faz literalmente tudo. Dirige, fotografa, faz câmera. A equipe está ali meio que pra constar. Às vezes, batia uma claquete, outras segurava um rebatedor. Ninguém dava um palpite, nem o Davi Cardoso, que estava botando o dinheiro para o filme sair. Candeias é o mais só dos diretores. Não solitário, porque ele se passa da presença dos outros, aparenta uma confiança infinita no que faz. O filme se chamava A Herança. Era uma versão cabocla do "Hamlet". Cabocla e muda, porque não havia dinheiro para dublagem, de maneira que tudo tinha de se resolver na imagem. Depois, na montagem, se pôs música e ruídos, uns ruídos que substituíam as falas. Não havia roteiro propriamente dito. Todo dia, depois que a equipe chegava à locação (o próprio Candeias dirigia a perua), ele se afastava com o livro, o Hamlet, na mão e ficava sentado, sozinho, afastado de todos, lendo a seqüência que ia filmar. Depois levantava, chegava para junto dos outros e começava a dar ordens. Na época, o resultado não me impressionou demais, embora também não tenha me aborrecido. Mas era menos do que A Margem e menos do que Tonho, sem dúvida. Talvez eu percebesse isso, de maneira que um dia perguntei ao Candeias por que ele dava mais ênfase a tal aspecto e não a tal outro, que me parecia mais interessante. Ele me olhou de alto a baixo e respondeu assim: "Falar é fácil, fazer é outra coisa". O Candeias, dirigindo ou perto do campo de filmagem, é extremamente seco. Tem um lado disciplinador, digamos assim, que acho que deve ser meio ligado ao fato de que quase todo mundo trabalha de graça nos filmes dele. Havia um ator, creio que o nome dele é Clemente, que se atrasou para a filmagem dois dias seguidos, porque estava ensaiando uma peça ao mesmo tempo. No terceiro dia, quando ele chegou, o Candeias o dispensou sumariamente. E adaptou o roteiro para que o personagem desaparecesse, acho que durante uma viagem, e não voltasse mais. Também tenho a impressão de que ele gostava de pegar no pé de algumas pessoas. Já não me lembro de nenhuma situação específica, mas o Dadá, que era outro assistente meio como eu, meio aspone, vivia levando esporro do Candeias por conta de tudo e de nada. Era uma marcação pessoal. Tenho a impressão de que o Candeias achava ele um idiota, o que não era verdade, era tudo muito injusto, uma antipatia gratuita. Tanto que o Dadá se tornou mais tarde um montador de primeira linha. Como ele foi morar no Rio eu não o encontrei mais e não sei se ele deve alguma coisa ao Candeias. Está aí uma coisa que não entendo muito bem: é essa necessidade que a maior parte dos diretores, bons ou ruins, têm de se afirmar no campo de filmagem. Existe quase uma mitologia do cara que grita, se impõe aos berros. Não creio que isso seja necessário para fazer bons filmes, afinal de contas, mas no caso do Candeias talvez fosse necessário. Ele se impõe tantas tarefas que qualquer coisinha que saia fora dos eixos, mesmo que insignificante, mesmo que puramente pessoal, perturba o trabalho. O "sistema Candeias" também não admitia palpite, isto é, colaboração. Ele organiza as coisas de tal modo que ninguém, exceto ele, sabe o que estava acontecendo. Na Herança, o ator era, 80% do tempo, levado como um boneco. A rigor, a atuação contava muito pouco. Daí o Candeias trabalhar com freqüência com os piores atores do mundo e tirar resultados às vezes ótimos: não existe representação, no sentido clássico da palavra, e sim uma relação daquela figura com a câmera, por um lado, e com o cenário, por outro. Acho que um dos segredos do Candeias é conseguir essa integração tão harmoniosa entre ator, câmera e ambiente. A câmera em boa parte é o grande intérprete dos filmes do Candeias. Acho que do ator propriamente dito o que ele mais usa é o tipo. Daí ser tão importante ele fazer a câmera. O Khouri também faz câmera, por gosto, o Carlão fez câmera durante muito tempo, por necessidade (econômica). Claro que no Candeias a questão econômica também conta, mas não penso que seja primordial. A câmera dele não apenas registra, mas sobretudo inscreve o personagem no filme, determina sua movimentação e sua gestualidade bem mais do que em qualquer outro diretor que eu conheça. Minha impressão é de que, depois de ZéZero, o cinema de Candeias se torna menos interessante. Talvez por ter sido incensado pela crítica, ele passou a enfatizar um aspecto político que, até então, estava no seu cinema de maneira mais visceral e menos consciente. Tenho a impressão também que um excesso de autoconfiança levou-o a exacerbar no minguado das produções, que tenderam, não raro, a se fazer com migalhas, enquanto Candeias assumia um número inverossímil de tarefas: escrever, produzir, dirigir, fazer câmera, fotografar, montar. Ao longo do tempo me parece fazer falta no cinema de Candeias um pouco de diálogo, para resumir em uma frase. Pelo menos uma parte dos grandes diretores é assim mesmo, de maneira que não vejo como condená-lo, por se julgar um pouco o centro do mundo. Quando via os filmes dos colegas ele era um crítico, me parece, excessivamente severo. No fundo, era como se dissesse: olha aqui, bom sou eu. Não é raro os cineastas criarem ou adotarem um mito em torno de si mesmos no qual terminam por acreditar. Humberto Mauro, por exemplo, encampou a imagem de "cineasta da terra". Candeias encampou a idéia de pobreza, do sujeito que é capaz de fazer com muito pouco, por um lado, mas também o de uma negação radical do sistema, de qualquer sistema. Esse tipo de pensamento tenho a impressão de que ele desenvolveu sobretudo no começo dos anos 70, na era Médici. Fixou-se como um cineasta "puro", que não entra em acordo (com um exceção de um filme de encomenda que fez com o Davi Cardoso e que é um dos mais interessantes que fez dos anos 70 em diante). Acho que um exemplo muito claro disso é sua fidelidade à Boca do Lixo, um lugar que decaiu muito a partir dos anos 80. Hoje não se encontram mais por lá técnicos, nem atores. Encontra-se o Candeias, no entanto. Acho que até o Serafim fechou ou vendeu o bar. Candeias tem um lado turrão, conservador, e mesmo superficial na observação política do país. O Brasil é uma desgraça, não há dúvida. Mas a desgraça dos anos 60 ou 70 é diferente da dos 80 ou dos 90. Tenho a impressão de que Candeias não observa muito essas nuances, quando se quer um cineasta político. Naquele momento, entre os 60 e os 70, o belo e o feio eram coisas que se confundiam. Ou melhor, acho que um tipo de cinema, o que surge no fim dos anos 60, desconfiava muito do que até então se acreditava ser a beleza e não raro investia contra esse tipo de convenção. Tenho a impressão de que o Candeias era um cineasta único porque transitava do belo ao feio sem nenhuma cerimônia. Isto é, sabia discernir muito bem as duas coisas. Filmava o feio com enquadramentos às vezes tão bonitos que aquilo se tornava sublime. Uma boca sem dentes pode ser uma coisa horrível, mas diante da câmera dele mostrava qualidades tão insuspeitadas, tão raras, que o belo absorvia o horror e nos introduzia a um patamar diferente de relação com as coisas. Isso eu acredito que seu cinema perdeu um pouco depois que adquiriu uma consciência mais política. Mesmo se o cinema mais recente dele me parece ter perdido com isso um pouco do vigor que tinha na primeira fase, tenho a impressão de que Candeias é um dos talentos mais interessantes e originais que o cinema brasileiro produziu desde os anos 60. Não vou dizer aqui que ele me ensinou o que é cinema. Trabalhar com ele me deu sobretudo a satisfação de aprender um pouco o que é o Candeias, com sua complexidade, sua amplitude, sua inteligência e também suas contradições – que não são tão poucas assim. Inácio Araujo |
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