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Entrevista
com Ozualdo Candeias
V. CINEMA, PRIMITIVO, MARGINAL Uma pergunta que eu queria fazer também é relativa a você filmar alguma coisa que geralmente o brasileiro não quer ver, quer esconder, quer botar por debaixo do pano, que ele até admite que tenha na esquina dele mas que ele não admite ver num filme. Nesses meus filmes eu fui um pouco além disso ainda. As pessoas além de não quererem ver, ainda se aborrecem. Mas eu tenho dito pra muita gente que às vezes me perguntam, gente bem intencionada até, e que me diz "poxa, por que que você faz um negócio desse, o Brasil com tanta coisa bonita...", aquela história toda. E a minha resposta é sempre mais ou menos a seguinte: "olha, se ninguém mostrar o que está no Brasil pra ser feito e que deve ser feito, um dia os responsáveis podem alegar ignorância, né?" Então eu fazendo isso e outros de outras mídias fazendo, pelo menos pode até ajudar os caras. Ainda eu sigo, por exemplo. Eu estava falando que o governo não toma uma série de providências objetivas com relação ao mercado pra fita brasileira, e um cara chegou pra mim e disse: "mas o que é isso? por que vocês não vão falar isso pro governo porque vai ver que eles não sabem?". Eu falei que eles têm obrigação de saber porque isso que eu estou criticando, esse trabalho que foi feito tem quarenta anos, que uma vez virou Instituto Nacional de Cinema e depois virou Embrafilme, de maneira que o governo está sabendo de tudo isso. Normalmente as pessoas aceitam. É que a minha maneira de apresentar é um pouco crua. As pessoas parece que ficam um pouco chocadas. Você faz pra chocar? Eu faço sim. Não é beeem assim, eu faço porque acho que aquilo tem que ser feito e eu acho que quando eu faço as coisas meio documentais, eu faço elas mais ou menos como são que é para que possa se ter referencial hoje ou daqui a cinqüenta, dez anos, ou quem for lá para trás também. Porque se eu puser já a minha estilização, cor, puramente na minha visão, seja maniqueísta ou não, eu acho que não é bom. Então eu acho que toda coisa que é um pouco documentária tem que ser meio crua, que é para você poder trabalhar em cima dela. Se você elaborar ela muito, fica meia-boca. O Cangaceiro do Lima Barreto... Na verdade foi um cangaceiro muito bem elaborado que aquilo não é cangaço. Mas a estilização dele parece que resultou muito bem... Não fosse aquilo não haveria tanta fita com o cangaço. Tem uma diferença, porque os seus filmes têm um conteúdo político muito forte, e o filme do Mojica, O Despertar da Besta, tem um conteúdo político muito forte também. Mas ele pode ser interpretado como só um filme de terror, uma ficção de terror, enquanto o seu não, o seu tem que ser exigido como aquilo que tá lá, porque você está filmando a rua, e não um delírio, está filmando as pessoas do jeito que elas são... Até eu acho que os meus filmes não têm muita semelhança com nenhum do Mojica, que eu conheço bem as fitas dele, e o Meia-Noite fui eu que preparei toda produção pra ele fazer. Para ele, não, para o sócio dele, porque ele tinha um sócio... o sócio é que fazia, o sócio era o mauzinho e ele era o bonzinho. Pra tomar o dinheiro do pessoal por aí. E o sócio dele arrumava dinheiro emprestado, e o Mojica quando a gente passou a tratar da produção, eu levei eles para ver locais, e o Mojica gosta muito de andar de carro, mas na época tinha um certo receio e tal. Depois de eu ter preparado todo o roteiro pra produção, eu fiquei sabendo que ele queria fazer um horror inglês... Ele andava comigo dizendo que eu tinha que arrumar um castelo para ele, que era horror inglês, com mordomo e tudo. Eu falei "Mojica, tira isso da cabeça. Primeiro que não tem castelo, vocês não têm dinheiro pra fazer isso, e vai daí afora." Aí eu levei ele pra ver um casarão e tudo mais, e aquelas coisas de objetos de cena que tem dentro da fita fui eu que arrumei tudo. A sala dele, aquele negócio de parede ornamentada com membros humanos, cabeça, isso e aquilo, a cenografia como fizeram, o cara não entendeu e deve ter ficado melhor do que eu tinha pensado. Mas tudo isso eu já dei, mas era pra pintar o personagem. Uma coisa de cinema acadêmico mesmo, né? Agora, dado um certo primarismo dele e da pobreza da produção, resultou naquilo que foi feito. O Meia-Noite ou o Esta Noite? O Encarnarei (Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, n.d.e.) Eu também tinha feito pra ele a produção de uma fita chamada Meu Destino em Tuas Mãos. E vai daqui vai dali e o produtor dele queria fazer outra fita. O primeiro filme dele, que é o Na Sina do Aventureiro, foi lançado e deu um dinheiro muito bom no relançamento. No lançamento não deu praticamente nada. Então na segunda vez eles queriam fazer o Destino. O Meu Destino também não deu nada, aí começou a não saber o que fazia, se fazia Marcelino Pão e Vinho, se fazia fita religiosa, e eu escrevi um negócio que eu queria fazer, que é o lobisomem. Mas um lobisomem brasileiro, com toda tradição cultural brasileira. E eles gostaram mais ou menos só que o Mojica gosta mais da coisa espetacular e disse: "olha, vamos fazer um negócio aqui com o teu argumento, topa?" Eu falei: não, no meu argumento, não, eu já sei que não é o que você quer. Aí ele inventou o Meia-Noite. Quer dizer, não foi ele que inventou, quem faz o negócio é o Luchetti, é ele que faz o roteiro. A idéia foi dele fazer isso, mas eu que soprei primeiro. Mas a idéia de fazer um personagem brasileiro, mesmo... O meu é um lobisomem brasileiro. A idéia do personagem que ele fez é dele, não é minha. A minha é de fazer o horror. Na minha opinião, não é também horror assombração. Foi ele que começou a falar em horror. Como ele é um cara de periferia e chegado nessas brasilidades, lia muito gibi, então lá no bairro dele o dono da funerária chama Zé do Caixão, o cara que trabalha na feira é o Zé da Feira, e vai daí por diante. E ele pôs então o Zé do Caixão, que é um negócio muito bem achado. Te agrada o estilo do Mojica? Não, eu não gosto. Primeiro que o estilo dele é o cinema de ninguém. Por duas razões, ele fez uns dois ou três filmes razoáveis. Isso no momento em que ele estava mais ou menos começando, e ele queria fazer um filme de horror. Mas esses horrores saíram, na minha opinião, dados ao pouco conhecimento de cinema que ele tinha. Por isso que saiu essa coisa meio primária, no caso do Meia-Noite e do outro. E essa linguagem é que agradou. E teve o momento político que isso era importante. Hoje essa fita podia ser uma merda, não ia acontecer nada. O Glauber, no livro dele que você deve ter lido, ele disse: "O único cara que presta em São Paulo é o Mojica". E ele nunca viu a fita do Mojica. Aí o Mojica ficou lá em cima. É aquela coisa do paternalismo da classe média que precisa exercer as suas caridades. Mojica é o coitadinho genial, porque o Glauber falou. E todo mundo passou a endeusar o cara. E ele, muito esperto e competente, adotou isso. Encarou, adotou e aceitou. E aceita até hoje. Eu, como motorista de caminhão, tentaram isso comigo. Eu falei: "Péra um pouco, vamos acabar com esse negócio. Motorista de caminhão é ignorante, é idiota, o que que é?" "O cara era motorista de caminhão e agora fez uma fita..." O que que isso tem de extraordinário. "Saiu da boléia e fz um filme" E eu falei "isso não é bem assim não". E eu desmanchei tudo isso. Senão ia ter que competir com o Mojica. Muita gente quis dizer que a fita era primitiva ou primária. Não é. Porque a primeira parte dela é o resultado, a estrutura de um roteiro que nunca ninguém fez. Ela caminha só de subjetiva em subjetiva (ele está falando do longa A Margem). A fita do Mojica é de qualquer um. A tomada entra quando acha que tem que enfeitar. E a minha não: um cara tá olhando pra um e aquele olha pra um outro, se os dois aparecem tem um terceiro, se ele tá sozinho... se por exemplo eu quiser fazer uma fita, eu estou aqui só (e começa a demonstrar um movimento de câmara subjetiva). Isso é um puta raciocínio. E isso te limita, ou você arruma o que contar ou está fodido. De repente eu estou aqui conversando com você e, pra dizer que é um boteco, estão lá os caras jogando sinuca, mas se eu tiver que mostrar que tem alguém jogando, eu ponho a mão aqui (de novo, n.d.e.), a máquina vira e pega os caras jogando. Aí, o cara quando olha pra bola, aí eu corto. Mas aí pra eu voltar pra ele alguém tem que olhar pra ele e eu volto. Isso aí é uma questão de linguagem, de tentar mostrar sem ser supérfluo... Não tem nada supérfluo. Isso foi tudo que não teve, muita gente ficou surpresa com isso. A primeira parte é inteirinha assim. São duas histórias e quatro personagens. Os personagens da primeira história são o Mário Benvenutti e aquela negona. Eu desmancho isso um pouco quando eu mostro aquela parteira, que aquela é um ente meio mítico, porque ela vê de costas, ela vê de qualquer lado, então quando ela olha pode mostrar qualquer coisa, necessariamente ela não tem essa limitação. É quando eu escapo da coisa, de propósito, não é por preguiça. A outra parte do filme já vai mais como deu certo. Mas também não está cheio de tomadinhas, assim, o que está lá tem sentido. Então logo não parece nada com o Mojica ou coisa nenhuma. Mas quase ninguém entendeu isso. Esse negócio de primitivo em cinema eu também acho meio difícil. Ser primitivo em pintura, vai bem. No cinema tem que controlar muita coisa, se filma primitivo tem que montar também... Tem um monte, você depende de um monte de equipamento, um monte de cara que você tem que levar... Aquilo que um crítico, não sei se é um tal de Bernardo Carvalho disse, falou que uma fita do Babenco era a fita de qualquer um. Eu achei isso meio bom pra esclarecer umas tantas coisas. Porque tem filme que é isso, qualquer um que fizer bota o nome lá... Porque no cinema brasileiro pouca gente tem personalidade cinematográfica. VI. BOCA DO LIXO, CINEMA Quem você acha que surgiu desse movimento - nem foi um movimento, mas foi uma coisa que comercialmente teve um peso - da Boca, quem que você acha que apareceu daí que realmente tem valor? Nas entrevistas você fala que não existe um movimento da Boca, uma linguagem da Boca, que existiam várias pessoas fazendo cinema. Quem você acha que surgiu de valor daqui? É, porque não há bem uma linguagem. Há um tipo de cinema porque por razões econômicas, ele teria que ter aquela característica e naturalmente tinha o problema que estava vendendo e que era a moda - o que há anos já tinha acontecido na Europa e que estava acontecendo aqui - essas liberdades sexuais, então passaram a usar o pornô. Então a crítica, pra avacalhar, começou a chamar pornochanchada, por causa da proposta erótica e a condição de produção mímima. Isso aqui me faz lembrar Almeida Garret, que disse: "Para se ser escritor, é muito simples. Basta ler fulano, ler fulano e ler fulano". Então você arruma um vilão, uma mulher bonita, uma bruxa e depois vai escrevendo que costuma dar certo. Você pode falar de Lisboa, você pode falar de Paris sem precisar ter ido lá, você vê os nomes dos botecos e escreve. Eu acho que isto muito se aplica a este cinema da Boca. Porque ele foi feito mais ou menos desse jeito. O cara ia no cinema, via lá um negócio e botava, ia em outro e assim por diante. Até certo ponto o cinema brasileiro é um pouco isso. Com algumas exceções, acho que com uma exceção de no máximo 20%, porque o resto é meio isso. Aqui tinha gente que chegava na moviola com cópia de filme para ver como é que dava para ir fazendo as tomadas. Então eu acho que o que o Almeida Garret fala da literatura serve aqui para um bocado de gente, porque você vê uma fita, são quase todas do mesmo jeito. Todas elas têm aquele negócio, o cara trepa na cama, o cara trepa em pé, o outro vai trepar na areia, a outra trepa no mar. Ou é traição. Tem uma estatística, esse tipo de fita mais ou menos chegou em 78 a pelo menos 4 milhões de espectadores. Coisa que hoje quando fala em milhão fica todo mundo de olho aberto. Então, o Mazza levava 10,5 milhões, a Xuxa numa delas 9 milhões, Trapalhões levaram quase igual numa das fitas... Pedro Rovai deve ter uma média, só ele, de 4 milhões. O Pedro parece que descobriu bem esse tipo de fita, ele começou com Adultério à Brasileira, que teve o Adultério à Italiana e parece que deu... Ele sabia como escolher o título... Agarro Essa Vizinha... e aqui o negócio era descobrir o título... Tanto que quando eu fiz Aopção, isso aqui já tinha ido pro buraco, um cara perguntou pra mim: "Qual é o nome dessa tua fita". Eu falei: "A fita é Aopção." "Opção?" "É." "E esse nome vai passar na censura?" Você vê que o cara pensou que eu arrumei um nome pra botar na fita... (risos) Andava por aqui um tal de Roberto Mauro, andou fazendo umas coisas, e agora parece que é pastor igual o Jece Valadão, sabe? Até eu vendi um roteiro pra ele e um produtor aí, e ficou até boa. Era uma fita de dupla personalidade. Claro que é um negócio meio complicado mas não ficou mal. Qual é o filme? Eu não me lembro o nome. Quem dirigiu foi o Roberto Mauro (trata-se, de fato, de Desejo Violento, de 1978). Eu vendi o roteiro para eles e a fita não ficou mal. E depois, teve aquela história dos marginais, etc. Quem começou meio com isso foi até o Roberto Santos. Ele chamava essas fitas, a minha também, de malditas. Então começou esse negócio de maldito e de repente virou marginal. Então eu acho que essas fitas deviam ser marginais porque tratavam de personagens marginais. Mas isso também foi uma, duas vezes, e aí acabou a coisa. Foi um período curto. Foi curto, tem uma meia-dúzia de fitas só. Eu acho que as minhas continuaram mais ou menos dentro dessa proposta. O Sganzerla e o Reichenbach fizeram filme aqui. O que você acha do trabalho deles? O Carlão fez uma produção aqui com o dinheiro do bolso dele, o segundo ou o terceiro longa dele, eu acho muito bom. Lilian M? Isso, Lilian M... Mas eu acho esse A Corrida em Busca do Amor a melhor coisa, sabe? Mas não serve muito de referencial porque é uma fita feita num tapa com ele e o Jairo Ferreira, mas que eu acho engraçada pra caramba eu acho. Acho bom pra burro aquilo. Ele e o Antônio Lima. Do Sganzerla eu tenho as minhas restrições porque não é uma fita feita com certas liberdades. E depois me parece que ela como um todo é um filme razoável, mas dependente muito do texto, sem o texto ela pode se acabar. E depois tem o referencial dela que é o cidadão da França... a fita é parecidíssima com Pierrot le Fou. O que é interessante na fita do Sganzerla é o comportamento dos atores, o assassino, o marginal, o malandro, o vagabundo, não é esse estereótipo que tem por aí. É um cara como outro qualquer, com as mesmas tristezas e as mesmas alegrias. E o Godard fez isso muito bem, eu gostei do filme dele. Acontece que tem uma fita, do cara que fez Bonnie and Clyde nos Estados Unidos. Arthur Penn. É, o Arthur Penn. Em Bonnie And Clyde ele já faz exatamente isso. Eu não sei se foi o Godard quem adotou esse comportamento marginal, ou se é o Arthur Penn. Nunca ninguém questionou isso, mas eu presto muita atenção nas coisas... O forte do Godard nessa fita é isso. Não é porque o cara está todo fodido, todo mundo querendo matar que... não! Você pega aqueles dois pós-adolescentes que são Bonnie e Clyde, e parecem de classe média em todas as suas atitudes, até morrer. Eu acho que isto é uma colocação, e que depois o Sganzerla fez a mesma colocação. É meio besteira minha, mas o que eu gosto mais dele é A Mulher de Todos. Me pareceu melhor e mais dele. Mas falam do Bandido, Bandido... e outra, a fita foi feita de bandido não foi por causa do bandido (o verdadeiro bandido da luz vermelha, caso dos noticiários da época), foi por causa da publicidade que estava nos jornais em cima do bandido da luz vermelha. Este pessoal, falavam que as fitas desse pessoal eram meio subterrâneas, e que começaram a chamar de udigrudi, de underground, e eram fitas com propostas acentuadamente comerciais e que iam pra censura e que nada tinham a ver com seu referencial que era o underground dos Estados Unidos. A única coisa que poderia ser com cara de underground são o ZéZero e o Candinho. Você tirava elas da censura. Não era nem oficial a exibição delas... Eu convidei esses caras pra gente trabalhar juntos, fazer uma meia dúzia delas, pra fazer frente à censura dos militares, mas ninguém topou. Falei com todos esses aí. Então eu pus a máquina nas costas e fui embora. Agora o Carlão (Carlos Reichenbach, n.d.e.) ainda me emprestou o estúdio dele, me emprestou moviola, uma porção de coisas. Um outro cara me emprestou a câmara pra eu filmar e a coisa foi feita mais ou menos assim. Fiz nas escolinhas do Mojica, fiz com outros atores, essa coisa toda, mas ninguém quis entrar comigo. Foi feita sem entrar na censura, era escondida. Quando era passado na faculdade eu levava outra fita... tinha um olheiro e, se ele desse o sinal, tirava o filme e botava desenho animado. Eu sabia que não ia dar certo. (fala de ZéZero) Os militares fizeram a loteca como uma grande coisa. Então o cara pra poder jogar na loteca, no caso de um operário, tem que jogar todo o salário e morrer de fome. E já antes tinha dito, essa loteca dá ou não dá? Então quem é o responsável? Essa loteca era uma enganação, não tem outra, sabe? E o Candinho é um cara que eu ouvi dizer, que o padre disse pra ele, que quando ele estivesse fodido, que procurasse Deus e ele resolvia. Isso é baseado numa música peruana. Mas não é muito incaica, é misturada, entre espanhola e inca, que fala desses mineradores. Então eu fiz isso, tem um cara que está com a família fodida, o dono da família joga ele fora, ele sai e o padre dá um santinho pra ele, ele olha a reza, faz, vai na igreja. Então ele, com o santinho, anda por São Paulo, por todo canto, e um tipo de chola anda com ele também. Chola é uma mestiça de incaica com espanhola. E andam os dois juntos para verem se resolvem a vida. E lá num dia ele desiste, sai andando e ouve Jesus Alegria dos Homens e segue a luz, essa música, e entra no lugar que foi no estúdio do Carlão. Como não tinha dinheiro pra fazer cenografia, disse então tá, e fiz com fundo infinito, aquela coisa toda que visualmente ficou bom. Quando ele vê o lugar onde tocava aquela música está o fazendeiro que tinha chutado ele pra fora estava falando com alguém que parecia com Deus, estão tomando café, numa boa, e os capangas estão juntos. Ele é meio imbecilóide e aleijado. Ele chega, vê aquilo, corre lá e Deus dá a mão pra ele, ele põe a mão, fica deslumbrado, vem o café e não dão café pra ele. O fazendeiro vira para o Deus, fala qualquer coisa, os caras ficam olhando. Quando ele sai ele já nem manca mais e já não está mais imbecil. Ele olha assim, vê longe uma cruz com uma metralhadora dependurada. Ele sai andando e chega na cruz e fica olhando. E a chola também chega. Aí eu ponho som de rajada de metralhadora. Só que ninguém teve coragem de fazer uma crítica de cinema. Agora eu vou mandar isso pra censura? (risos) Eu gosto muito mais do Candinho, bem mais do que o ZéZero, mais que o da loteca, bem mais. Por causa dos meus personagens eu fui preso, a polícia me pegou, mas tinha um cara que estava de longe vendo, ele escrevia no Estado, correu na polícia que eu já ia pro DOPS. Ele chegou na polícia e falou: "ele tá fazendo filme, não é nada disso não, eu estou assessorando ele", e me soltaram. Outra vez foi num viaduto, uma mulher chegou e perguntou "por que você está fazendo isso?" Só pra você ver, eu estava filmando, não foi com a exibição do filme não. Você filma muito por aqui? Não, só quando comporta. Por exemplo, em Aopção, dá pra entrar aqui. Na parte da cidade... Isso, tem aquele cara que anda com as duas pernas só pra cima, eu fiz aqui num boteco. E engraçado que todo mundo tem medo de falar de aleijado, mas o aleijado está nos meus filmes porque o único lugar onde ele pode se relacionar como aleijado é onde ninguém o trata com paternalismo nem com dó, que é onde ele pode existir. Tem um negócio que eu estou pra fazer, que se chama O Caixeiro Viajante Que Não Morreu, que eu dou idéia e explico que em todo lugar da zona, no tempo que viajante era o tal, os caras iam pra zona, porque lá não há muito preconceito, todo mundo vive lá e ninguém tem paternalismo. Nesses meus filmes, tem isso. E tem As Bellas da Billings, aquele cara que pede esmolas, ninguém entende bem. Pois bem, um cara todo fodido, pede esmola e tem empregado um cara que podia estar na produção. Quer dizer, aonde está o defeito? É numa sociedade toda errada. E este cara que podia estar trabalhando, não, está de óculos de walkman, e todo mundo ficou puto da vida comigo, porque ele vai na cama, põe ele nas costas, leva ele na privada... É onde o Calil fala, "como é que você põe um negócio desse?" E isso acaba chocando, porque ninguém quer ver isso, porque eu também trato esses aleijados sem paternalismo, está aí. Você trata ele como um humano, como os outros não tratam até... Em Aopção, ele está na mesa e o cara diz: "Lê essa carta aí pra mim", quando ele recebeu uma carta da Bahia. E o cara pergunta para ele "Escuta, mas você não sabe ler não?" E o outro responde "É que eu não trouxe os meus óculos..." Quer dizer, é um analfabeto. E tem aquele negócio, que baixinho, aleijado, só serve pra levar recado pra puta, né? Aí ele fala "Então leva isso aí pra fulana." E ele sai com aquilo na cabeça e a mãe disse: "É, a sua irmã vai bem, agora arrumou um emprego, disse que vai trabalhar lá em baixo, vai ser 'maratriz'". São coisas que acontecem, ele fez o serviço dele, foi levar o recado pra puta... enquanto o outro bebia, comia... Mas num dia em que eu já estava fazendo a fita, cheguei ali e tinha um cara que não tinha braço nem perna, um toquinho de gente, ele estava comendo lá aí eu paguei a comida dele e filmei. Mas comporta. No Vigilante é diferente, não tinha, eu não vou fazer esse negócio. E tem aquela homenagem aos caras que eu faço, que tem o Carlão, tem não sei quem, e o cara fala: "Esses são os marginais", tal e coisa... VII. A HERANÇA, MANELÃO, A VISITA DO VELHO SENHOR Tem um filme que permanece para mim um mistério, que é A Herança, que eu não pude ver, que se diz que é baseado no Hamlet. Queria que você falasse sobre essa relação que você faz no filme. A fita foi mal, já estava começando tudo a ficar mal. O Jack Valenti já tinha estado no Brasil e proibido de passar fita brasileira, e já se estava aceitando isso, sei eu bem por quê. O caso é que nesse filme eu tinha um pouco de dinheiro do governo do Estado para fazer uma fita, éramos eu, Pedro Rovai, Roberto Santos, deram um pouquinho de dinheiro para dez caras. Mas eu resolvi fazer o Hamlet, e claro que sem dinheiro eu resolvi fazer uma fita sem diálogos, sem nada. E eu fiz uma transposição de espaço e tempo e parece que agradou. Não agradou o pessoal de teatro, o pessoal de teatro achou ruim, achou uma merda a fita. E eu fui na Eca falar sobre isso, e os caras me malharam, disseram que eu não tinha feito a fita como era. E eu falei, não, isso é uma transposição, coisa e tal. E eu disse: "Olha, tem mais uma coisa. No orignial, quando ele morre, toda a herança dele fica pro primo, parece que é o Fortimbrás, não sei o quê. Na minha não, ele teve a decência de fazer uma doação de todas as suas terras aos seus colonos. Pelo menos isso eu fiz." E isso era a maior sacada na época. Porque na verdade o Hamlet é um puta babaca. E aqui eu livrei a cara do sujeito. Eu imagino que o pessoal deve ter ficado fulo. E a turma entendeu mas não teve jeito, e parece que aceitou. Porque naquele momento não aceitar um negócio desse, meio pró sem-terra, quem não ia aceitar? Porque esses caras gostam de encher o saco, mas é isso mesmo, eu já estava meio politizado e fiz esse negócio. Mas qual era o enredo do filme? Era o Hamlet, eu não mudei nada. Aqui, ele era o filho do fazendeiro que foi estudar na cidade e depois voltou. Depois gostou da Ofélia. Agora, Ofélia que por razões de liberdades étnicas, é mulata. O irmão dela, não me lembro o nome dele, é um negão. E o pai é branco, é capataz. Era para pintar um Brasil. Na hora do duelo, é no tapa que eles brigam... O veneno é representado por um capanga que estava escondido, e na hora de atirar no Hamlet, quando o cara dá um tiro no Hamlet e pega a mãe, então tá tudo resolvido desse jeito. Os saltimbancos, que ele escreveu uma peça para eles fazerem, eu fiz uma moda de viola. Então ele chega no circo da cidade e pede para o violeiro cantar e aí a família rica vai ao teatro ver espetáculo só pra ele. Quando ele começa a cantar a moda, eu começo a cortar para as reações da mãe, do pai, dos outros personagens... Isso é o que eu gosto mais na fita, e agradou pra caramba isso. Porque o tio dele saca que ele está sabendo. Como só tinha a música, eu acabei pondo texto. Eu fiz um papo por baixo da imagem, só que ficou tão ruim que eu sumi um pouco com ele, e acabou que na gravação sumiu foi tudo mesmo. E eu falei que se dane. Aí botei legenda, e ficou bom. Ficou um negócio besta mas eu ganhei uns dois ou três prêmios com ele. Outra: em Curitiba, há uns anos atrás, foi o Valêncio (Valêncio Xavier, poeta visual e grande admirador do trabalho de Candeias, tendo inclusive produzido A Visita do Velho Senhor e Lady Vaselina, além do especial de televisão "A América do Sul por Ozualdo Candeias") que me falou. Ele pegou a fita e mostrou para o pessoal da embaixada inglesa, e o pessoal resolveu fazer um concurso da melhor adaptação de Shakespeare para o cinema. E foram buscar todas as fitas que têm Shakespeare. Então foi Kurosawa, foi Laurence Olivier, sei lá mais quem... E foram todos. "Mas já acabou o concurso?" "Já. E tem mais uma coisa. Senta." "Por quê?" "Senta. Porque você ganhou. Lá eles acharam que a tua foi a melhor adaptação". Porque foi uma transposição que foi uma visão minha. Eu falei para o pessoal do teatro: Por que se tem que fazer Shakespeare exatamente como vem todo mundo fazendo, faz na China, faz na Europa, faz na Rússia. Por quê? Será que isso seria Shakespeare? Será que no tempo dele era isso? Eu pelo menos fiz o seguinte. Não pretendo ter violentado o cidadão, mas hoje seria uma coisa como essa que eu fiz. Isso se fosse no Brasil. O pessoal desse concurso percebeu exatamente isso. Isso que eu achei curioso. Por que eu vou ter que tentar fazer - essa é uma das vantagens dos meus negócios - por que é que eu tenho que fazer o que o Kurosawa fez, o que Orson Welles... e daí? Mas teve gente que só faltou me bater, uma vontade de me dar um couro... Falta falar só de dois filmes, que são A Visita do Velho Senhor e o Manelão. A Visita do Velho Senhor foi o Valêncio que produziu. Era um conto gráfico do Poty. Eram cinco cartõezinhos e cada um tinha uma figura, mais ou menos que representava na minha opinião um cara indo na zona. Mas depois, num dia, quando eu conheci o Poty, eu estava em Curitiba e estava zero grau. E nós fomos na zona. E lá na zona eu fiquei fazendo que lá naquele frio a mulher não gostava de ir pra cama, o sexo tinha que ser oral. E na história gráfica do Poty é mais ou menos isso mesmo. Eu entendi assim. Eu arrumava os meios, fui pra Curitiba e o Valêncio bancou a produção, arrumou um dinheirinho aqui, fita na cinemateca de lá e ele fisicamente fez a produção, fez assistente de câmara também, me ajudou na iluminação e eu fiz tudo em cima do tablado, em dois pedaços de noite, com a câmara na mão, andando. E teve uma virtude essa fita: agradou muito. O Poty depois que soube disse que queria os negativos porque não tinha autorizado nada. Aí o Valêncio mostrou a fita e ele ficou maravilhado e disse que queria me conhecer. Eu estava no Rio e ele me telefonava, "vem cá, vamos jantar" e tal. Mas acabamos não nos encontrando. E a fita foi para aquela mostra internacional de Salvador. Mas a censura quando viu a fita brecou até o festival, parou, tirou a fita e ia mandar pra Brasília. Aí a imprensa veio e a censura resolveu: "então tudo bem, fica com a fita mas nem prêmio nem exibe mais. Senão fecha". Então nem prêmio e nem exibe mais. Eu tenho uma outra, eu não sei onde está, eu perdi a cópia, acho que deixei em Curitiba: se chama Senhor Páuer, que é produção também do Valêncio... não, essa não é do Valêncio, é da Cinemateca. O argumento é o seguinte: houve uma greve em Curitiba e não tinha ônibus. Estava passando uma carrocinha de catar papel, e um cara pega a carrocinha e obriga o cara a levá-lo. Aí o cara na carrocinha tinha uma criança, vai dali, vai dali e a carrocinha fura o pneu. O cara vai consertar o pneu e quando ele volta não tem mais a mulher, o cara também já tinha levado a mulher em casa. O cara sai procurando a mulher, passa numa favela e o cara diz pra ele: "Olha, vem cá" e ele passa a mão numa 165 e deu pro cara... Eu dou uma idéia meio de terrorista nessa coisa... não tem fala nenhuma... O cara passa a mão na arma, bate na porta, pega a arma, aponta - está mais bem feito do que eu estou contando - e o cara não tem coragem de atirar (o ruído de fundo impede que a conversa fique audível). Eu acho muito bom esse Senhor Páuer. Mas muita gente não entendeu muito bem não. Esse filme não passou muito não, né? Não, passou por lá. Sabe o que é, tem coisa demais, você tem que andar cobrando... Mas o pessoal da Eca gostou muito. Mas é muito boa, os atores estão muito bons. O cara pegou a carrocinha do outro, vendeu a mercadoria, pegou todo o dinheiro, tomou a mulher do cara e quando ele descobre onde está não tem coragem de fazer nada. É por isso que muita gente não gosta dos meus troços, ou entende e acha que isto não está certo. E quanto ao Manelão? O Manelão é o seguinte. Porque todos os meus filmes são meio vivência, coisa que eu conheci gente, coisa que eu vi de toda essa regionalidade. Eu queria fazer por exemplo um matador profissional desta região que todo mundo conhecia, era uma lenda, e eu disse que não, que era um fodido que de repente entrou pra ser matador sem querer. Porque tinha a história do cara que era tropeiro, trabalhava com a tropa, e pegou uma gonorréia. Ele vai na farmácia e um cara propõe a ele, não fica assim tão claro, o cara diz: "Fala pro cara que eu curo a gonorréia dele, mas ele tem que me matar um fulano", um cara que comeu a filha dele e não se casou. O cara faz isso, vai lá e mata, depois mata mais alguns. E aí eu faço ele contracenar com um cara que paga e este outro cara é o capanga de um fazendeiro. Mas nessa fazenda a população masculina é maior do que a feminina então o fazendeiro arruma uma mulher da zona e diz que era mulher do capanga. Pra resolver o problema sexual das pessoas, assim, dentro dessa moral remendada. Nisso eu vou mostrando um monte de coisa de regionalidade. Nisso o cara acaba gamando na mulher. Um dia pega o cara trepando com a mulher, quer matar o cara, manda o cara correr e tal. Ele fica sem saber o que é, aí procura o patrão. O patrão vem e ele mata. Aí ele fica com remorso e tudo mais. E os matadores levavam a orelha para saber que o serviço tinha sido feito. Mas como ele também era matador ele matou o patrão e cortou a orelha. Aí ele pegou a orelha do patrão e pôs na mão dele. Disse: "Isso aqui é para o senhor. O senhor me desculpe, eu não sei para onde o senhor vai, mas quando chegar lá...". Aí ele saiu correndo, pegou a mulher e fugiu. Pegou a mulher e disse: "Olha, vamos fugir". Aí tem o final. A peonada da fazenda sai a cavalo mas eu mostro eles a cavalo e depois só primeiro plano eles gritando "Mataram o doutor! Mataram o doutor!" Aí tem um vagabundo que anda por lá a pé, olha para eles e diz: "O doutor morreu? Morreu, tá bem morrido" E os caras lá: "Mataram o doutor!" Continuam os primeiros planos e o cara fala de novo: "Olha, quem morreu está bem morrido. Se não tivesse doutor não tinha matador". Vira as costas e vai embora. Essa também agradou muito aí. Passou muito no nordeste. Mas tem esse recado. Eu fiz aqui pro lado de Minas, o que ela tem é muito bonito, paisagem, carro de boi, todos esses troços. Tem este conflito, mas eu mostro a arquitetura, a paisagem, por exemplo, tem uma paisagem de cupim de dois, dois metros e meio de altura assim que é um monte. Os gaúchos viram isso e disseram um ficaram impressionados, porque lá não tinha nada parecido. A composição me parece boa, o andamento da coisa, o corte bom. E tem esse problema de mostrar a paisagem, mostrar isso, as pessoas, uma porção de coisas assim. Dá pra se ver que desde o começo você tem muito essa relação com a natureza, muita relação com filmar não só os personagens, mas com o ambiente. Você acha que se você mostrar muito o ambiente você acha que isso afeta a relação dos personagens com o ambiente? Não, não, eu acho que todos estão inteirados. Uns amigos do Wajda, aquele polonês, estiveram no Brasil, viram uns filmes meus e ficaram admirados com isso, com a integração. Tal personagem e a coisa. Porque eu não trato do personagem e você não sabe de onde ele é. Mas não. Então só podia ser aquilo mesmo. Eles que me falaram. Me parece um pouco isso. Eu acho que é isso mesmo, a questão de filmar o ambiente como parte constitutiva, o personagem é igual, junto Claro, está tudo inteirado, o que tem ali é isso. Você vê a paisagem, por exemplo do Manelão, é Brasil sudeste-centro oeste. Você vê, tem essa coisa, tem o cupim, tem a montanha, tem a porteira, tem a casa mineira, e aí eu faço questão de mostrar como é a casa mineira. E vai daí afora. E a outra da estrada é a que você viu (ele fala de Aopção), que eu mostro a estrada. Então eu acho que não vi fita nenhuma brasileira com essa espécie de retórica em cima de uma paisagem rural. E eu falo que essas fitas são caipiras, os caipiras dizem que não, que caipira é o Mazzaropi. Manelão é caipira, Hamlet é caipira. Porque o caipira não é aquele bocó não. Em Meu Nome É Tonho, os caras que gostam de Guimarães Rosa disseram: "Olha lá, Guimarães Rosa". Disseram que a fita é interessante. Pelos tipos, tipologia. E tem um drama, também, não é assim, sabe? Se mata pra burro. Ali também eu abusei. Mas ficou bom, não ficou gratuito, nada. Tem a arquitetura, uns caras a cavalo, e a roupa arruma por lá mesmo, não é esse negócio de country nem merda nenhuma... essa besteira que está aí. Bom já tá falado, né? Entrevista realizada na Rua do Triumpho 35, Boca do Lixo, por Ruy Gardnier em 25 de agosto de 1999. Clique aqui para voltar para a primeira parte da entrevista. Clique aqui para voltar para a segunda parte da entrevista. |
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