Candeias, Sob o Signo do Escorpião

 


Jairo Ferreira com seu Cinema de Invenção,
1ª edição, hoje objeto de colecionador

Conheci Ozualdo Candeias (Cajubi, SP, 05 de novembro 1922) em 1966 no escritório de Honório Marin, que alugava equipamentos de filmagem num casarão da rua Bento Freitas. O papo começava à tarde e se prolongava no restaurante Costa do Sol, na rua Sete de Abril. Ele estava preparando a produção de seu primeiro longa A MARGEM –- lançado em dezembro de 1967 no cine Paissandu. Antes fizera diversas sessões especiais e me lembro de uma a meu convite na Comissão de Cinema do Juizado de Menores da qual eu era membro. Houve um debate extenuante e falou-se no barco de Caronte da mitologia, mas Candeias em sua simplicidade (perspicaz) reduzia tudo a arroz e feijão.

Na verdade conheci Candeias um pouco antes, em 1965, quando eu e Ermetes Ciocheti (que morreu afogado nos anos 90) íamos rodar um sketch, A GERAÇÃO DOS INSETOS, em 35mm, e Candeias filmou os testes com uma atriz cujo nome esqueço, aliás, o projeto parou nos testes... Mas fizemos amizade com Candeias que nos mostrou um documentário sobre milagres em Tambau, enquanto nós lhe mostramos o média A CAMINHO DO ORION (1963, 16mm), de Ciocheti – experimental a ser resgatado. Aliás onde anda o produtor Paulo Meirelles?

Na Boca do Lixo, a partir de 1967, eu encontrava Candeias no restaurante Soberano e ele logo se tornou meu tipo inesquecível, parodiando sessão do Reader’s Digest. O homem falava e fala pelos cotovelos e me contou toda história do cinema paulista e sua experiência como cinegrafista de Primo Carbonari, entre mil outras coisas. Função de guru, maybe.

No Shimbun, jornal da colônia japonesa onde fiz 252 matérias (entre 1966 e 1972), situei A MARGEM entre os dez melhores nacionais do ano e, a partir de 1968, eu estava sempre na Boca do Lixo – conversava muito com Candeias e Carlão Reichenbach. Escrevi sobre O ACORDO, episódio de Candeias em TRILOGIA DO TERROR; aliás escrevi muito sobre (quase) todos os filmes de Candeias, sempre figura atlética usando camisa dois ou três botões aberta no peito tostado de sol. Rei das ninfas!

Vou contar um episódio pitoresco que revela bem o gênio do gênio, marginal entre marginais. Em 1982 fui diretor de produção do curta A BOCA DO CINEMA PAULISTA (prêmio Estímulo da área estadual), de Tony Souza (hoje, ditador do SINDCINE, um sindicato patronal conivente, portanto, com as majors). Candeias sempre tem intuição e parecia saber que o carinha estava afins de poder. Não deixou que Tony olhasse no visor. O que você quer ver aqui? Vamos rodar ou não? Senta aí que faço essa merda sozinho – e não me encha o saco! Vai lá preparar os sandubas!

Mas o máximo foi quando eu tive que dar meu depoimento e Candeias queria saber o que eu ia dizer. Eu disse: olha aqui, vou falar o que eu quiser. Ele ficou brabo (tipo Charles Bronson, melhor, aquele do Paladino do Oeste, Richard Boone). Candeias disse: então eu não filmo. Tive que mostrar meu texto por escrito e ele pediu que eu não falasse em Glauber Rocha. Concordei, mas na hora de rodar falei que o Cinema Novo tinha acabado como movimento em 67 com TERRA EM TRANSE, 1967, ano em que a Boca nasceu com o próprio Candeias no pioneiro A MARGEM, também de 67. No curta do Tony não tinha som direto e fui, meses depois, dublar minha própria fala num estúdio em Perdizes. Não havia como dizer Candeirocha em lugar de Glauberdeias...

Candeias tinha mania de fotografar todo mundo que aparecia na Boca e, anos depois, veio me dizer que Glauber o procurou na Boca e que vestia camisa verde-oliva em homenagem aos milicos. Perguntei: por que você não o fotografou? Ele disse que naquele dia estava sem câmera e Glauber tava com pressa. Verdade ou mentira? Ou nem verdade nem mentira?

Geralmente não gosto de falar do autor e sim da obra, mas no caso a personalidade de Candeias é muito forte e revela seu processo criativo:

– Roteiro eu escrevo mas não levo nem para passear.

De fato. Fui ator co-adjuvante em AOPÇÃO – AS ROSAS DA ESTRADA (1979) e comprovei. Ele fazia umas anotações um pouco antes de rodar – uma espécie de decupagem in loco. Foi o papel mais difícil de minha vida, na pele de um missionário que vai pregar o evangelho numa zona e acaba nu. Foram 4 ou 5 dias de filmagens. Eu fazia do meu jeito e ele bronqueava:

– Isso aqui não é filme de Samuel Fuller não, nem do ROARD ROQUE nem do caralho de RÓLIUDE, isso aqui é filme de Candeias!

Aí senti a barra & fiquei na minha. Confiei no tipo inesquecível.

Lamentavelmente não guardei quase nada do que escrevi (claro que tenho um índex com os títulos e datas) sobre Candeias, mas tenho em mãos um exemplar do magnífico tablóide TELINHA (fevereiro 1992), editado por Diomédio Morais. Cito só a primeira frase:

– Planetariamente Ozu é que acertou no milhar.

Eu havia feito outro papel em O VIGILANTE e aí Candeias foi mais ameno. Carlos Adriano me criticou porque numa lista dos melhores do SESC votei em mim mesmo como melhor ator co-adjuvante em AOPÇÃO. Mas fui sincero, pois já fiz umas 30 aparições nos filmes dos amigos e a melhor eu acho que é essa mesmo. Não garanto, pois ano passado fiz o papel de um faquir no curta A BELA E OS PASSAROS, de Marcelo Toledo e Paolo Gregori e imagino que tenha ficado forte.

Noto que de certa forma sou a carta zero do Tarot, pois vivo fazendo de tudo em filmes de todos os bons amigos. Como diz Raulzito, o pessoal tá preocupado com os galhos e esquece que e lá no tronco que tá o coringa do baralho – & pra mim o melhor baralho só poderia ser aquele do mago inglês Aleister Crowley.

Aliás Candeias também é místico como a maioria dos experimentalistas – fiz uma abordagem sobre isso na revista do Unibanco (numero 9, capa verde, 1997, esgotadíssima) & aliás só saiu porque o Ademar Oliveira consultou Carlão e Inácio para averiguar se eu não tinha demenciado demais...

Vale lembrar também que em 1993-94 fui programador do Centro Cultural São Paulo e sofri como cão danado pra conseguir as cópias – Retrospectiva Ozualdo Candeias – O Vigilante do Quarto Mundo. Havia um convênio com a Cinemateca Brasileira e os burocratas de plantão tentaram me sabotar. Pedi socorro a Candeias que me disse – dá um tempo que vou pegar a minha moto e em duas horas você terá a cópia que te falta. Não deu outra. Quer dizer, o homem é foda sem ph. Um bom titulo para a matéria especial para o CONTRACAMPO: CANDEIAS, SOB O SIGNO DE ESCORPIÃO. Um signo muito difícil, mas eu que sou virginiano sempre me dei bem com esse tipo inesquecível & registro agora sua extrema generosidade – tanto que me deu de presente uma boa máquina fotográfica nos idos de 90. A Boca tinha acabado há muito, mas Candeias mora ali perto e até hoje ainda dá uma passadinha por lá nos fins de tarde. A Boca é seu lar & seu apartamento é um verdadeiro pandemônio – tem de tudo, de cinema & som, computador, aparelhos de halteres, motor de barco... E ele me dizia que ia pendurar uma antena parabólica de três metros na própria janela! Mas isso ele não fez... Vem tendo dificuldades pra rodar um novo longa desde que surgiram as tais leis de repressão à invenção dos anos 90 – o tal renascimento do cinema brasileiro que não passa de balela, virou pra resumir censura econômica que como se sabe é a pior de todas.

Para não ir muito longe vou falar telegraficamente sobre o que fica pra mim nos filmes de Candeias – a alma cabocla sem nenhum primitivismo – isso faço questão de esclarecer. Primitivo seria o cu da mãe & Candeias fala disso n'AS BELAS DA BILLINGS (1985) – inventário com participações especiais em câmera lenta de alguns de nós, Carlão, Ody Fraga... Raja de Aragão talvez, eu também apareço...

Algo me lembra belo texto do Alcino na Folha de Sampa sobre quem? Aquele cineaszta da Índia – tem 30 anos & agora repete a dose com um filme chamado por aqui de CORPO FECHADO. Não cito por acaso, já que Candeias tem fissura por tais temas, vamos explicitar: Ozualdo sempre curtiu o gênero fantástico.

Nessas alturas do Everest fico por aqui com minipaideuma:

Amo A MARGEM – arrumarei tempo pra fazer um ensaio about;

Vibro com O ACORDO;

Adoro MEU NOME É TONHO – masterpiece cabocla;

Deliro com A HERANÇA – trinados de pássaros em vez de voz;

Pirei com ZÉZERO – cinema de transgressão; notai que eu tinha esse título na cuca sem saber do movimento americano pós-underground & já adianto uma sintonia com Robert Kerr num Super 8 dos anos 70. Coisas de ir ao fundo do baú.

Curto AOPÇÃO: AS ROSAS DA ESTRADA. Aliás não sei se seria o melhor filme de Candeias. Difícil escolher um só; bom isso, também não sei escolher qual a melhor peca de Shakespeare, sem forçar barra, pois Candeias deglutiu Hamlet e o transformou em Omeleto em A HERANÇA – no qual o hoje critico Inácio Araujo (seja dita a verdade que é meu sucessor na Folha de S. Paulo) de fato foi assistente de direção, ou seja, não deu um pio, só realmente assistiu Candeias e bem de longe, pois Ig era e continua tímido. Em A HERANÇA até Rubens Ewald Filho fez uma ponta & tudo, evidência que Candeias é mesmo um grande artista contemporâneo que se exorciza em seus filmes – reduzindo os que eventualmente vingariam a meros mortais de uma condição humana muito cruel no Brasil não-oficial. Reflito: país sem noção de nação. Não se trata de tristes trópicos mas de alegria da abulia. Ausência de thelema.

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Sorry se falei mais do homem que da obra – mesmo sabendo que os homens passam & a obra fica.

PS: Quero agradecer ao pessoal da CONTRACAMPO e em especial a Mônica que me apresentou ao JULIANO & RUY – e também gostaria de fazer meu marketing: meu livro CINEMA DE INVENÇÃO foi lançado em novembro 2000 pela editora Limiar –- se você não achar nas livrarias telefone ao meu querido editor Norian, (011) 3086-2604. Mas deixo claro que vou pessoalmente divulgá-lo neste 2001 em alguns festivais de cinema; e tem mais: o Itaú Cultural está telecinando meu primeiro longa Super 8 – O VAMPIRO DA CINEMATECA (1977) num lance que deve rolar mesmo a partir de maio a nível nacional – projeto do professor Rubens Machado, da ECA-USP – o título geral é MOSTRA ITINERANTE ITAÚ CULTURAL: O SUPER 8 EXPERIMENTAL NA DÉCADA DE 70. Fique ligado que vale a pena, cinemantena!

Jairo Ferreira