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2001. De dentro do pequeno carro observo o passar da historia pelas circunvoluções da Serra de Conservatória, Valença, Mendes, Ipiábas, Vassouras. Primeiro dia do século. Estou voltando para São Paulo e vou escrever para Revista Contracampo um artigo, crônica, texto acadêmico ou teórico sobre Cinema ou Cinema no Brasil. O carro avança e a experiência sensorial, imagética, dos dias do fim de ano, fim do século, das duas semanas passadas no Vale do Paraíba, do desbravamento dos oitocentos, me fez rever um pouco esta idéia de falar pura e simplesmente de CINEMA. Faço cinema, penso cinema, mas penso e faço cinema quando penso a História, o Homem, a Nação. Não a História dos que ao ver o Brasil procuram estrategicamente colocar a Nação, o Povo, o sentimento Nacional de lado. Não a histórias dos poderosos, das elites, mas a historia dos guerreiros, lutadores, anarquistas, independentes e transformadores. Penso nos poucos que continuam lutando para manter a Nação Nacional e o Cinema Brasileiro, forte, criador, autoral e fecundo. Viajando por curvas sinuosas, radicais, e na contemplação das casas de fazenda, dos pátios de café, das capelas com seus santos barrocos perdidos pelos altares, senzalas da casa, ambientes de estar, receber e de mercado, deparo-me com representações dos nossos dias. Com uma idéia muito clara de como o tempo passado interfere no nosso tempo e como compreender esta historia vai possibilitar a compreensão do agora, viajo na minha cabeça por Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. e tantos outros. No cinema vejo um Brasil pouco mostrado. Um cinema pequeno. Um Brasil pequeno. Um desamor para com os inventores, donos de uma força monumental, do ir ao risco total na vontade de jogar para as platéias filmes de significação, aposta, sentido, emoção, beleza, audácia, coragem e generosidade. Esses cineastas sempre submetidos a um esforço sobrenatural, empunham gloriosamente, as armas do Inventor. Diretores que trabalham contra esta mão funesta e destruidora do Mercado, entendido como um fim para tudo e todos. Cineastas de gerações diversas que procuram manter através de diversos modos de produção a idéias viva e circulante, envolvente e redonda, de que o Cinema deve ser sempre um provocador, instigador de platéias, cunha perfurante para cérebros mortos. Neste meu continuo caminhar na história, vou agora na direção de uma antiga tulha em fazenda de 1830. Nesta caminhada pelo tempo e memória passam filmes e nomes. Eduardo Coutinho que de forma percuciente navega pelos personagens da verdade, quando mergulha na vontade do desejo do discurso de seus entrevistados. Filmes como Cabra Marcado para Morrer e Santo Forte, entre vários outros, inauguram no documentário brasileiro a força crucial da palavra. Luis Rosemberg Filho, que do seu lugar na história, vergasta com a invenção o cinema pobre que rodeia nos todos. Autor de filmes belíssimos, extraordinários, austeros, como Assuntina das Américas, Crônica de um Industrial, Jardim de Espumas e vídeos didáticos na tradução das relações do Capital e o Homem, não desanima na sua luta diária pelo cinema. Resiste: ou relendo Jairo Ferreira "Luiz/luz gênio muito especial: generoso na definição GODardiana da cinevida. Antes de amar o cinema, o cinema o adora!" Arthur Omar, que com suas idéias e seu trabalho, varre o espaço/tempo fílmico como um Anúbis implodindo a tela dos anos 70 com Triste Tropico que no dizer de Ismail Xavier "Configura-se aí uma nova variante do cinema brasileiro em seu esforço de pensar o todo a partir da atenção às questões ardilosas, como os fenômenos de consciência e o estatuto das formações imaginárias no tecido social. Combinando o tema da viagem, o senso rigoroso da experimentação e a rara capacidade de articular um imaginário de ramificações seculares, Triste Trópico é um dos filmes mais instigantes que emergiram do cinema brasileiro moderno." Carlão Reichenbach, criador vigoroso, pessoal, cinematográfico que instaura na mesmice uma desordem caustica e afinada com um Cinema da Crueldade – filmes como Amor Palavra Prostituta, dono de surpreendente seqüência violentada pela tesoura da ditadura, onde o personagem lava com algodão o sangue da vagina da mulher que fizera um aborto algum tempo antes. Reichenbach, munido de um olhar penetrante, realiza um cinema que provoca nossa bonança e nossa ira.. Paulo Cezar Saraceni, com carreira marcada pela singularidade e a invenção, possuidor de filmografia de exuberante autoria como O Desafio ou Amor, Carnaval e Sonhos, onde Saraceni, possuído da coragem da experimentação afronta o tempo, ou de filmes fundamentais como O Viajante. Um cinema ungido de significados, para se pensar, estudar, ver e rever. Apreender. Ou lembrando Glauber em "Revolução do Cinema Novo": "Aprendi de tudo com meus amigos, mas Saraceni me conduziu ao fogo do Cinema e do Amor". Continuando minha viagem, vou da reta para curva entre fazendas e cafés, lembrando-me de cineastas em processo de cinema: Bressane, Mojica, Joaquim Pedro de Andrade, Glauber Rocha, Tonnaci, David Neves, Sganzerla, Candeias, Leon Hirszman, Vladimir de Carvalho, Aloysio Raulino e todos, vivos ou mortos, que na invenção lutam contra a pasmaceira do oficial, governamental, neo-liberal cinema brasileiro de nossos dias. Vamos pensar também as novas gerações e seus filmes, que de aposta em aposta, navegam na contra mão deste mar de merda. Janeiro 2001 Ricardo Miranda
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