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As Bellas Horrorosas. Ozualdo Candeias é um ótimo exemplo do que acontece com um artista versátil, criativo e questionador. Se ele não foi esquecido, chegou bem perto. Na sua trajetória fazendo filmes sempre ficou bastante claro, graças à sua variada produção de longas e curtas, que ele era capaz de tratar o cinema de outra forma, bem distanciada dos ideais e projetos que foram centenas de vezes colocados como padrão para o ato de realizar e pensar o audiovisual. Mas foi isso que Candeias sempre fez. Pensou a fundo o próprio audiovisual. A conclusão que se pode tirar ao ver os créditos de alguns de seus filmes, onde seu nome aparece como roteirista, diretor, iluminador, fotógrafo, câmera é que, além de ser envolvido até a medula com o que fazia, ainda poderia se colocar como um revolucionário da divisão de trabalho imposta pelo esquema usual de produção. Muito mais do que simples contenção de despesas, ocupando todos esses "cargos", a sua liberdade para criar e fazer do produto final algo de verdadeiramente autoral é ilimitada. Quando alguém assiste a esses filmes pode perceber a coesão formal que possuem, só alcançada ao se tentar submeter todas as fazes da produção a uma única personalidade artística que tem controle e conhecimento absolutos do projeto que está levando a diante. As Bellas da Billings, de 1986 é um desses filmes onde Candeias acumulou funções. Foi diretor, produtor, roteirista, diretor de fotografia e montador. Muito da capacidade de renovar o cinema, presente em seus filmes, está vinculada à liberdade que a multifuncionalidade permite. A idéia de filme mudou em Candeias ao se transformar, de simples organização temporal de imagem e sons, em uma construção profundamente manipulada dessas partes componentes do filme. O diretor faz o que quer. Filma, capta imagens, monta e costura um som, em outra etapa, que para ele funciona com mais eficácia e cumpre melhor o objetivo diegético. Não é errado afirmar que seus filmes, antes de ser cinema, são audiovisuais no sentido mais simples. Como resultado, surge um, agora sim, cinema de expressividade única por justamente se tratar de um estudo apurado das capacidades estéticas da imagem e do som, se completando de acordo com o que o idealizador determinou. Em Bellas... todas essas características próprias de Candeias estão presentes. Voltando a retratar a periferia e seus habitantes, o filme mantém uma linha de construção de personagens que não foge desse modelo Candeias de pensar os filmes e que pode ser atribuída a outras de suas obras. Nesse caso, os heróis se movimentam perfeitamente bem dentro do universo criado como figuras sem definição individual marcante rodeadas de outras figuras menos determinadas ainda mas que podem ser entendidas como uma generalização dos traços de uma população. O filme coloca esses seres disformes dentro de uma realidade igualmente generalizada. Mas o diretor, sem fazer um cinema fácil, compreensível dentro das normas usuais de se analisar cinema, cria um universo que trabalha com todos as distorções sociais, localizando-as, determinando-as, sem fazer uma obra inócua. Optando por manipular imagem e som do jeito que manipula, Bellas... não aceita ser compreendido da forma como qualquer outro filme seria. O paternalismo some, a verdade se perde, o cinema feito deixa de ser espetáculo de consumo imediato para as massas. Livre de uma carga ideologizante, ele é muito mais eficaz, criando um mundo onde o público, por estranhamento, coloca suas simples verdades em jogo. As Bellas da Billings é sujo. Impregnado de uma sujeira que está medonhamente grudada nos seus personagens. Trata-se de uma classe que se vê jogada no meio de um mundo transbordando de valores que ela não entende mas dos quais faz uso acrítico. São esses os valores que sempre determinaram a conduta social adequada referente a todas as esferas de nossas vidas, até mesmo à forma de se fazer cinema. No entendimento simples das pessoas tudo pode fazer sentido, mas a realidade na verdade é muito mais complexa. E no entanto, na tela, o julgamento dos personagens é raso, algo propiciado por uma aceitação plena do que vivem. Mas, como já foi dito, Candeias não deixa as coisas tão fáceis. Quando qualquer cineasta providenciaria colocações tão explicativas quanto esse excesso de irracionalidade, ele opta por não nos importunar com falsidades. Seu Bellas... nos joga nesse meio esquisito desarmados dos nossos valores. A capacidade de julgamento do público, imobilizada, pode então divagar para além do lugar comum e ver o que lhe é mostrado sem os preconceitos de costume. No fundo As Bellas da Billings é mais um lamento de alguém que, sem saber o que pode vir a ser a verdade, tem a certeza que ela não está naquilo que o obrigam a ser. Coisa que o cinema perdeu a capacidade de fazer, mas que Candeias mantém ativa em suas construções audiovisuais. João Mors Cabral |
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