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A Visita do Velho Senhor é um pequeno breviário das preocupações de Ozualdo Candeias. Feito em 1976, a partir de um conto gráfico de Poty Lazarotto (que é incorporado ao filme e seguido à risca), o filme mostra em 14 minutos a visita de um home ao quarto de uma prostituta. Como sempre em Candeias, há uma fissura irremovível entre imagem e som, onde a edição de som nunca é usada de forma realista ou naturalista, mas antes comenta e ratifica tudo que se vê na tela, produzindo uma estranha espécie de distanciamento. Em A Visita do Velho Senhor, a banda sonora é toda tomada pelo depoimento de uma prostituta, qua transcorre independentemente daquilo que vemos na tela. Ela relata, numa voz grave, dolorida e grossa, o que é receber na cama um cliente desagradável e de poucos modos. O filme começa com apenas uma fresta de imagem visível, ao centro da tela, esquerda e direita em negro. Lentamente vemos passando as figuras do conto de Poty, cujas imagens a câmera de Candeias tentará rigorosamente acompanhar (de todos os seus trabalhos de adaptação, é de longe o mais fiel): qual não é a nossa surpresa quando nos vemos diante de uma lanterna mágica! A lanterna exibe, então, um a um os desenhos do conto, apenas a voz da mulher acompanhando (e, na fita em que se viu o filme, um barulho ensurdecedor que impedia de se ouvir o que se dizia...). A primeira imagem propriamente diegética do filme nos mergulha no corpo da prostituta, que lava as partes pudicas numa bacia com água e sabão. E quando se diz mergulha, não é figura de expressão: é de fato um plongé (do francês, mergulhar: é a posição da camêra numa diagonal para baixo) que da mulher só nos mostra os peitos grandes e desgastados pelo tempo , as coxas e a bacia cheia de uma água espumosa. Nesse momento, a voz do áudio começa a cantarolar uma música desgostosa e cheia de palavrões, falando de um velho senhor. É ele quem, na imagem, aproxima-se da prostituta. Ela despe-se, primeiro tomando cuidado para cobrir a imagem da santa em sua mesa de cabeceira, e eles iniciam um enlace plácido e sem desejo, tanto de um como de outro. Na cama, ele puxa uma navalha, com a qual cortará a moça, numa cena em que mais uma vez somos privados de seu rosto, podendo ver apenas seu sexo impassível e suas coxas, que dão um espasmo no momento em que, fora do plano, o primeiro ferimento é feito. Depois de alguns momentos em que a câmera se fixa cruelmente no corpo ensangüentado da mulher, um travelling procura o homem que, como num ciclo, limpa a navalha na bacia, sujando a água turva de sangue. A Visita do Velho Senhor termina com uma cena misteriosa, em que a prostituta, ainda suja de sangue, abre a porta de seu quarto para o velho senhor sair. Apesar do alto poder evocativo dessa cena já presente, certamente, no conto gráfico de Poty , preferimos não interpretá-la segundo uma explicação óbvia (seria uma simples encenação de assassinato?) ou como uma metáfora mais óbvia ainda (a navalha como o pênis do velho senhor, mesmo que a hipótese não seja de todo ruim). Preferimos reter somente da história do filme a crueza da exposição, a puerilidade do sexo como mercadoria, do corpo prematuramente envelhecido da prostituta, da bacia como evidência do sexo barato, da violência profunda que é a vande do corpo. A Visita do Velho Senhor é ainda marcante pelo modo como perscruta o semblante miserável da mulher que se prostitui, seja nos leves movimentos de câmera ou nos tableaux vivants, quase inexistenes em seus filmes (mais se aproximando, contudo, de Aopção, que certamente guarda mais de uma semelhança com esse pequeno filme), mas aqui lembrando inclusive o vazio existencial das mulheres de Antonioni. Só que em Candeias, cineasta pouco ou nada psicológico, é de circunstâncias materiais que nascem as circunstâncias existenciais, e logo, a semelhança é rompida: o corte é brusco, nada elegante. A intenção de Candeias não é jamais o cinema como beleza, mas o máximo de beleza sendo o máximo de realidade que se consegue capturar. E realidade não é realismo. Ruy Gardnier |
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