Aopção ou As Rosas da Estrada

 

Aopção começa indo direto ao ponto: o filme mostra, documentalmente desde o primeiro plano, que abre brusco, lavradoras que cortam cana. A câmera de Candeias mergulha profundamente no cotidiano de suas personagens: observa em travellings lentos e doces o trabalho, a hora do almoço, o transporte da cana e o pagamento das trabalhadoras, sempre dado mais como favor do que como contrato social. Essas imagens não são despidas de significação: pela primeira vez em seus filmes, Candeias filma um a um todos os costumes da vida de seus personagens antes e tenta depois compreender como, de um determinado meio social, pode nascer um determinado tipo de subjetividade. Ao fim do dia, observando a estrada por trás dela, uma bóia-fria define sua condição: "êta vidinha de merda". Depois do trabalho, o lazer; só que na vida delas não há lazer: ir para casa significa novamente fazer esforço físico para conseguir água (de poço), lavar roupa e outras tarefas de casa. O sexo, que poderia ser uma atividade reconfortante para as trabalhadoras, deixa tudo pior: com anseios de casar ou encontrar parceiros que as respeitem, tudo que elas conseguem é relacionar-se com homens rudes que simplesmente não podem deixar de vilipendiá-las. Numa cena, um caminhoneiro despe cruamente uma das moças e dá com seu martelo nas nádegas dela, a fim de testar a dureza do material (o vocabulário procede: de fato, uma cena imediatamente posterior mostrará que esse é o procedimento do caminhoneiro para checar se seus pneus estão cheios e firmes). Em outra ocasião, um homem leva outra moça para um hotel, faz sexo forçado e, mais tarde, retira-a de um banho, nudez tímida, e joga champanha em todo seu corpo para saber se "com champanha fica mais gostoso", para todo constrangimento da companheira; depois, joga a champanha em seu próprio corpo e empurra a cabeça da garota para baixo, forçando a felação. Como sempre em Candeias, o sexo é questão de venda ou de tomada violenta, mas em Aopção ele atinge sua força maior: deixa de ser um incidente lamentável (ou seja, uma violência a um indivíduo) e adquire, já que as protagonistas são as "rosas da estrada", uma condição existencial (logo, de validade universal, ontológica), como em Mizoguchi ou no Godard dos anos 60.

E se sexo se vende ou se toma, é melhor que se venda: as moças partem, então, para a estrada, rumo à cidade, para tentar uma vida melhor, mesmo que recorrendo à prostituição – ser puta paga é melhor do que sê-lo de graça. Nesse percurso que vai do campo miserável à cidade luxuosa, Candeias sabe fragmentar a narrativa não em uma ou duas personagens interiorizadas, como existências particulares, mas como um tipo de determinação social: dadas as condições x e y, uma mulher em determinada situação tende à prostituição. Para demonstrá-lo, Candeias recorre a um procedimento no mínimo incomum e no máximo inédito no cinema: não tratar de personagens, mas sim de uma situação na qual diversas atrizes vão se encaixando. E de fato, as personagens femininas, fio-condutor da história, vão aparecendo e sendo abandonadas à estrada pela narrativa do filme. Aopção não é a saga de várias mulheres em direção à cidade grande e à chance de uma vida digna, mas a saga existencial de uma condição social determinada pela pobreza, pela ignorância, pela brutalidade das relações sociais e pela certeza – muito comum no Brasil – de que o homem tem direito ao sexo de sua acompanhante. O cinema de Ozualdo Candeias é um cinema da crueldade: seus relatos não mostram em heróis positivos ou mártires, mas apenas ocasiões de violência em que a vítima somente resiste, mas resignada. A câmera, tal qual espectadora impassível, não toma partido, cabendo à edição de som o possível comentário – por vezes, sons de animais raivosos ou ridículos. Mas seu cinema da crueldade não impede que haja ternura com os personagens: aliás, o mote geral do filme, mesmo em meio à abjeção e ao desrespeito do sexo feminino, é um plano fechado no rosto das rosas da estrada; inicialmente com chapéu de lavradoras e depois sem, Candeias mexe lentamente a câmera para tentar capturar, na miséria da vida das rosas – e nesses planos as mulheres estão sempre a olhar para o chão –, a doçura e o sofrimento de cada uma delas.

Se a marca ríspida da iluminação de Candeias é notável em todos os seus filmes – sempre em luz natural, quase sempre em externas e por vezes até com "perda" de informação visual, mas ao contrário fornecendo à imagem uma contundência da luz que faz falta em todo o cinema contemporâneo –, em Aopção Candeias consegue atingir seu máximo. Aproveitando a luz frontal e inescapável da estrada, o diretor da brutalidade tem a chance de criar fortes contrastes numa luz sempre abundante e que por vezes entope a tela. Não sendo um cineasta das meias palavras e dos meios atos, na iluminação Candeias também sabe evitar os meios tons, o equilíbrio falseador e indesejável dos filtros e da luz acadêmica do cinema oficial.

A regra geral em Aopção ou As Rosas da Estrada é a utilização das mulheres como objeto, mas há explicitamente um motivo principal, que acontece no meio do filme, na estrada, e se repete ao final, quando as rosas chegam na cidade. Trata-se das mulheres rodando, mostrando seu "material", primeiro para os caminhoneiros de modo a conseguiir carona, e depois na boate, já na cidade, para conseguir emprego: "vai rodando aí" é o que se ouve na banda sonora, crua e cruelmente. A cidade não apresenta a alguns rigorosamente nenhuma diferença qualitativa em relação ao campo: é uma miséria apenas quantitativamente diferente, porque só para alguns e aparentemente mais amena, porque disfarçada, porque ornada. Se se é rico, foge-se cinicamente do nojo da civilização; se se é pobre, não tem jeito, é ralar, ralar, se matar de sofrer para depoisi morrer. A cidade é também os maus-tratos aos aleijados, a presença marcante do analfabetismo, e rigorosamente a mesma crueza de relações. Nem campo mítico, terra da pureza, nem cidade mágica, terra da cultura: todas as localidades se equivalemte em Candeias, todos os lugares denotam a abjeção. No fim da estrada, as rosas perceberam que não há opção: penar no campo ou na cidade dá no mesmo, é da mesma vida que se trata. Algumas conseguem uma vida sofrida, talvez uma vida até digna. Outras conseguem a primeira página dos jornais, como defuntos ilustres de casos sensacionalistas. E como o mundo tem que continuar girando e a merda permanecerá a merda, o jornal com a rosa da estrada na capa acaba na lata do lixo. Haja opção.

Com seu quinto longa-metragem, Ozualdo Candeias alcançou o zênite da expressividade cinematográfica, criando uma pérola imprevisível, absurda, bruta como todos os seus filmes, mas construída milimetricamente em sua crueza, brutalidade em toque refinado. Aopção permanecerá como uma das obras mais impressionantes que algum cineasta pôde ter feito, uma barbaridade perpetrada com tamanha ternura; ternura que poderemos notar quando, no meio do filme, o próprio diretor aparece como um dos caminhoneiros, e acorda uma das rosas para dar-lhe de comer. Ele não a impedirá de morrer, porque sabe que isso está além dele, mas fará o máximo para ajudá-la em vida. Em candura.

Ruy Gardnier