Quando
Candeias viajou a América

Dono de uma obra de
ficção contundente e emocionante por seu verismo e por suas
preocupações documentais, Ozualdo Candeias estreou, entretanto,
no documentário. Depois do festejado Tambaú, Cidade do
Milagre, sobre religiosidade, em 1965 Candeias partiu para o exterior
como empregado de contabilidade de dois projetos bastante díspares:
um, a pesquisa para um longa-metragem que se chamaria O Filho da Luz,
e o segundo, filmagens para uma campanha publicitária de automóveis.
A equipe percorreu boa parte da América do Sul, passando por Peru,
Paraguai e Bolívia. Candeias não tinha nenhuma obrigação,
mas tendo conseguido um pouco de filme, achou por bem registrar o que
achava de interessante na paisagem, nomeadamente os aborígenes
e suas condições de vida. Esses filmes jamais ficaram absolutamente
acabados, porque, como o próprio Candeias mais tarde testemunhou,
ele estava muito mais interessado em partir para novos projetos (filmaria
seu primeiro longa, o premiado A Margem, dois anos depois) do que
em ficar remoendo os antigos. Acabou que esses filmes permaneceram inéditos,
sem qualquer espécie de exibição, até que
Valêncio Xavier, grande admirador de Candeias, soube da existência
desse material e decidiu exibi-lo da forma que fosse possível.
A solução: passar os filminhos – cada um em torno de 4 minutos,
filmados em 16mm, p&b e sem qualquer som – como um especial de televisão,
e já que o formato televisivo impede o vazio sonoro, colocar o
diretor como comentador de seus filmes e como uma espécie de guia
de viagens do espectador. O resultado acaba parecendo como esse procedimento
novo disponível nos DVDs, onde se pode ouvir os diretores falando
sobre suas realizações e sobre as peculiaridades das filmagens.
O primeiro filminho
tem como objeto de documentação os índios Urus, do
Peru, que vivem em pequenas ilhas num vasto espaço encharcado.
Candeias impressionou-se acima de tudo com o meio de transporte utilizado
por eles para sair de suas ilhotas, uma espécie de bote que ele
considera "o avô da prancha de surfe", porque além de servir
de meio de transporte, é brinquedo dos jovens. O segundo filminho
é dedicado aos Guaranis do Paraguai, ou ao menos ao que restou
deles. Olho documental atrás da câmera, Candeias assinalou
o que lhe pareceu ser um showzinho para homens brancos: uma espécie
de apresentação das índias, uma espécie de
dança marcial em que elas aparecem ornamentadas e com os seios
à mostra. Mais uma vez, a condição social dos grupos
aborígenes era o que mais interessava ao Candeias cinegrafista
e, anos mais tarde, ao Candeias comentador: na maior parte dos comentários,
o que mais se ouviu não foram anedotas acerca dos índios,
mas acima de tudo as relações de assistencialismo e a falta
de cuidados das autoridades do governo com os indígenas, e como
as tribos poderiam manter suas tradições num mundo em que
o dinheiro era a mola mestra. Se os Urus conseguiam viver sem precisar
de dinheiro, os Guaranis não tiveram uma sorte tão boa:
Candeias narra, em tom de farsa, como os machos guaranis vão à
cidade para deixarem ser fotografados pelos turistas em troca de um dinheirinho.
Até índio cai na sociedade do espetáculo.
Os outros dois filminhos
são sobre o Carnaval, um razoavelmente bem feito, e um pequeno
filme sobre Assunção, apenas montado mas sem qualquer interesse
maior do que o do mero registro, segundo o próprio Candeias...
a impossibilidade de se perder na cidade e filmar peculiaridades impediu
qualquer interesse pelo filminho, que é considerado pelo próprio
Candeias como jamais tendo sido dado por pronto.
Mas a segunda atração
mais forte, logo depois da filmagem dos grupos indígenas, é
um filme em cores realizado em meados dos anos 70, quando Candeias vai
à Bolívia e acaba sendo convidado pelo poderoso traficante
Soárez para filmar as festas populares, os costumes locais – entre
os quais uma curiosa rinha de galos onde apostava a fina flora da aristocracia
local – e uma festa da elite boliviana, onde a indicação
de Soárez era lei: filmar sua filha jovem filha. Também
sem som, esse curta foi o que mais empolgou Candeias, empolgado quando
reviu as cenas de festa popular em que touros e vacas eram jogados à
multidão para amansá-los. Perguntado sobre a possibilidade
de alguém morrer, Candeias conta que ouviu de Soárez que
antes as festas eram muito mais divertidas porque morria mais gente; os
locais consideravam que, se alguém morresse nas festas, era pelo
chamado da Virgem. A essa resposta, Candeias não julga, apenas
observa: trabalho de um verdadeiro olho antropológico. Ao fim do
relato sobre a Bolívia, Ozualdo Candeias conta que tentou convencer
Soárez – àquela época muito interessado em entrar
para a política do país – de realizar um documentário
de longa-metragem sobre a América do Sul pré-colombiana,
pré-incaica. Infelizmente, esse projeto nunca pôde ser realizado.
Mas nada mais Candeias: nunca o homem puro, purificado de civilização,
mas o homem em contato direto com a natureza, grande poder infernal. Se
o mundo ideal de Candeias é o mundo pré-civilizatório,
é mais porque o inferno deriva diretamente da natureza, da luta
que é permanecer vivo diante das intempéries, do que dos
poderes de exclusão social da civilização. Natural,
o inferno torna-se absoluto. E as chances de sobrevivência, sempre
mais sublimes. Pois Candeias é, mais que tudo, um cineasta da sobrevivência.
Ruy Gardnier
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