A Margem, de Ozualdo Candeias



Bentinho e Valéria preparam-se para filmar em A Margem de Ozualdo Candeias

Poucos diretores tiveram estréia tão ambiciosa cinematograficamente quanto Candeias em A Margem. Imagine-se: um jovem diretor aventura-se pela primeira vez num longa-metragem e seu primeiro filme tem os primeiros cinqüenta minutos realizados em câmera subjetiva, ou seja, cada imagem que vemos é o olhar de um personagem diferente. Mas assim como Godard e Welles, provavelmente as duas estréias mais ambiciosas do cinema, a aposta de Candeias é mais estética do que técnica (ou antes incorpora técnicas novas para expressar uma vontade nova): captar, no meio de um mundo de lodo, a graça dos olhares possíveis. Pois A Margem é majoritariamente duas coisas: a) um filme sobre olhar; b) um filme sobre o olhar que mata.

Um filme sobre olhar: A Margem segue a vida de quatro personagens à beira de um rio lodoso, numa localidade miserável. Ele começa pela estranha chegada de uma mulher de cabelo escuro, que vem descendo o rio numa canoa. Os quatro personagens do filme observam-na atentamente, enquanto ela se afasta. A simples chegada dessa mulher, tratada pela câmera como entidade mística – coisa que certamente o filme mais tarde confirmará – já estabelece o dispositivo do filme: sujeito a (visão da câmera) olha para sujeito b; corta para sujeito b (visão da câmera) que olhava para o sujeito a mas desvia o olho para o sujeito c, que será o ponto de vista do próximo plano. A atitude intrincada de estabelecer uma gramática própria ao uso contínuo da câmera subjetiva cria uma atmosfera jamais vista: uma certa tontura, uma certa incerteza, uma falta total de imparcialidade, além do lúdico jogo de "quem será que está vendo isso" que volta e meia aparece como recurso no filme. Não só a câmera subjetiva é utilizada para excluir do filme a totalidade do sentido como igualmente para criar momentos mágicos de campo/contracampo, como no beijo de dois personagens, onde os rostos crescem um após o outro até cobrirem a tela: o beijo se dá na montagem. Ou então quando um outro personagem, apresentado ao espectador como tendo um problema mental qualquer, empenha uma flor: quando a câmera apropria-se de sua visão, a flor em primeiro plano é remissível como elemento estético apenas aos primórdios da avant-garde no cinema mudo.

Mas Candeias não é avant-garde (embora tenha como ela o mesmo gosto por experimentações) nem cinema mudo (embora compartilhe com ele a necessidade de expressar um máximo pela imagem e um mínimo pelo som). Mesmo que sob diversos aspectos ele possa ser considerado um inovador, sua preocupação não é ser um esteta, no sentido de um homem que tenta, por seu brilhantismo e genialidade, aplicar sua visão particular ao mundo. Ao contrário, o gesto profundamente estético de Candeias é submeter à realidade a visão da câmera, ao invés de emoldurá-la numa visão naturalista (cinema clássico) ou expressionista (o cinema estetizante da burguesia arrependida). Se o cinema de Ozualdo Candeias é altamente estético, é justamente por não tentar sê-lo em momento algum. Suas intenções são muito menos para "ficar bonito" do que para identificar um problema – quase sempre a miséria social – e fisgá-lo com lente documentária – sem forte construção de personagens, psicologia, mostrando tanto os personagens como o ambiente que os rodeia. Só que nesse momento, surge não uma "a-estética", mas uma nova dimensão de percepção artística, divina e maravilhosa. Uma percepção que tira a beleza não do subjetivo, mas do diretamente objetivo; não de uma visão pessoal, mas de uma visão "do mundo".

E geralmente é por isso que Candeias é tão mal entendido. Quando Fernão Ramos vê em A Margem a luta do feio com o sublime, é porque de fato ele já parte do pressuposto de que o sublime é mais belo que o feio, quando em Candeias é impossível que se diga isso. E nem se trata de buscar o sublime pelo feio – como em Bressane. É jogar o sublime para escanteio para que tudo – já que não há critério de comparação – seja belo (ou feio, a partir daí tanto faz)1. O exemplo do vestido de noiva, onde Ramos sugere o contraste "vestido (limpo) X lixo" mais parece um caso justamente da contaminação de um sublime falso num mundo onde o sublime não é possível: a personagem negra observa uma noiva, rouba um sujeito para comprar um vestido igual e passa a usá-lo no lodo – é mais uma mimese social impossível (poder ser noiva na lama) do que uma possibilidade sublime.

Na segunda parte do filme, tudo muda: a câmera parte para a objetiva assim que o primeiro personagem morre. Poderíamos pensar que a visão subjetiva, a partir daí, é da própria morte. Daí em diante, a câmera não é mais uma visão da contundência, mas do assassinato. Ela persegue todos os quatro personagens e lhes assiste à morte, lenta e agonizante, um a um. Não uma morte sublime, santificante, mas uma morte à margem. Ao fim do filme, todos os personagens voltam para pegar a canoa, que partirá com sua dona (a mesma mulher de cabelos escuros). Se em Candeias quase sempre se acaba com morte (A Margem, mas também A Herança, O Vigilante, Aopção, Manelão...), não é para santificar seus personagens após uma vida de miséria, mas simplesmente para nos lembrar que o correlato da margem acaba sendo, no limite, a morte; e que de certa forma, não são apenas aqueles personagens que estão à margem, mas todos nós, sempre, inelutavelmente, à margem da morte; mas a morte, ela própria não é tão importante assim.

Ruy Gardnier


1. Fernão Ramos, Cinema Marginal (1968-1973): A Representação em seu limite. Ed. Brasiliense, 1987.